Toda a literatura americana moderna se origina de um livro escrito por Mark Twain, chamado Huckleberry Finn (…). Não havia nada antes. Não houve nada tão bom desde então.
Ernest Hemingway
Por e-mail, Ernani Ssó me envia duas colaborações para o blog — uma curtinha dele e outra um artigo do New York Times –, já que tenho discutido bastante por aqui o obscurantismo e o obscurantismo. Aliás, outro escritor, Gustavo Melo Czekster, fez referências ao mesmo tema nesta entrevista que fiz com ele. No artigo, Ernani Ssó inicia referindo-se às traduções de Huckleberry Finn feitas por Monteiro Lobato e Sérgio Flaksman. Devo ter lido a de Monteiro quando criança, mas reli o livro há poucos anos em tradução de Rosaura Eichenberg para a L&PM. Não lembro de como a tradutora verteu o “big nigger”, lembro apenas que era um excelente trabalho de tradução que invadia aquele terreno considerado inaceitável. Acontece que, deparando-se com uma bela história realista, gente do século XXI tem achado que ela ofenderia a religiosidade, os valores familiares e a moral. Seria inadequado para as crianças pois Huck não reza, detesta a escola e… E Twain ainda chama de nigger (the N Word!) o personagem Jim, talvez sua maior criação.
No blog Novo Resenhar Experientia encontro uma observação da própria Rosaura:
A palavra nigger incorporou com o passar dos anos uma carga de ódio que não tinha no tempo de Mark Twain, muito menos no tempo da narrativa. Àquela época, tratava-se apenas de uma forma comum de se referir aos negros. O próprio Mark Twain não empregava o termo, considerado de mau gosto pelas pessoas cultas (…)
Sim, ler Huck Finn e evitar a palavra nigger, a qual é indiscutivelmente degradante, é desejar que a América do Norte do século XIX seja bem mais limpinha, é desejar que ela seja como não foi. Twain não era racista. Pode ter sido educado no sul, porém, durante a maior parte de sua vida, ele criticou o racismo em cartas, ensaios e romances como uma manifestação maligna da desumanidade do homem para com o homem. Em uma carta escrita em 1853, Twain escreveu: “Eu acho que seria melhor ter meu rosto preto, pois nestes estados do Sul, os niggers são muito melhores do que os brancos”. Para terminar a lista de argumentos, tenho o que penso ser o maior deles: quem dizia nigger era o personagem Huck, não Twain. Se o menino sulista não utilizasse o termo, seria pra lá de artificial. Ou o religioso Dostoiévski representava ipsis litteris o ultra niilista Kirilov?
Finalmente, deixo Ernani Ssó e o NYT com vocês.
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A polícia da linguagem (por Ernani Ssó)
Em Huckleberry Finn, lá pelas tantas Mark Twain escreve “big nigger”. Monteiro Lobato traduziu por “negrão”. Sérgio Flaksman, nos anos noventa, por “escravo alto”, que pode ser uma opção muito bonitinha em termos políticos, mas literariamente é um desastre. Não é só que a expressão negrão seja mais forte. Ao alterar a frase, se altera o caráter do personagem que fala e, idiotia suprema, se confunde o autor com seus personagens. É mais ou menos a mesma coisa que acontece com essa gentalha que vê novela na televisão. Esses dias uma mulher deu um tapa na cara de uma atriz no supermercado porque a personagem dela na novela é muito assanhada, passa o marido pra trás.
Deu no New York Times
Trecho de um artigo de um tal Michiko Kakutani: “Será que ainda não aprendemos que retirar livros do currículo apenas nega às crianças o contato com obras clássicas da literatura? Pior, isso alivia os professores da responsabilidade fundamental de colocar esses livros em contexto – ou de ajudar os alunos a entenderem que Huckleberry Finn é na verdade uma acusação poderosa contra a escravidão (com o Negro Jim como seu personagem mais nobre), e usa essa linguagem controversa como uma oportunidade de explorar as dolorosas complexidades das relações raciais no país. Censurar ou editar livros das listas de leitura das escolas é uma forma de negação: é fechar a porta para as duras realidades históricas – reinventando-as ou fingindo que elas não existem.
“A tentativa de Alan Gribben de atualizar Huckleberry Finn (publicado em uma edição com As Aventuras de Tom Sawyer pela New South Books), assim como a afirmação de John Foley de que se trata de um livro antigo e ‘que estamos prontos para o novo’, ratifica a crença contemporânea narcisista de que a arte deve ser inofensiva e acessível; que os livros, peças e poesias de outras épocas e lugares deveriam de alguma forma se adaptar para se conformar às ideias democráticas de hoje. Um exemplo disso foram as iniciativas politicamente corretas da década de 80 para retirar Conrad e Melville da lista de grandes autores porque o trabalho deles não mostra muitas mulheres ou projeta atitudes colonialistas.
“Os textos originais dos autores deveriam ser propriedade intelectual sacrossanta, quer o livro seja um clássico ou não. Mexer nas palavras de um escritor revela tanto um orgulho extraordinário por parte dos editores, quanto a atitude desleixada de cada vez mais pessoas nessa época de mash-ups, sampling e livros digitais – a atitude de que todos os textos são substituíveis, que os leitores têm o direito de alterá-los como bem entenderem, que a própria ideia de autoria é ultrapassada.
“Os esforços para ‘desinfetar’ a literatura clássica têm uma história longa e pouco distinta. Tudo desde as Canternbury Tales de Chaucer até Charlie e a fábrica de chocolate de Roald Dahl vem sendo contestado ou já sofreu nas mãos de editores exagerados. Houve até versões purificadas da Bíblia (sem todo o sexo e violência!). Às vezes a necessidade de expurgar (senão banir totalmente) vem da direita, de evangélicos e conservadores, preocupados com a blasfêmia, linguagem profana e linguajar sexual. Grupos fundamentalistas, por exemplo, tentaram banir os dicionários por causa das definições oferecidas para palavras como quente, rabo, bola e ovos.
“Em outros casos o impulso de ‘limpeza’ vem da esquerda, ansiosa por impor sua própria visão de mundo multicultural e feminista e preocupada com ofender religiões ou grupos étnicos. A versão cinematográfica de Michael Radford para O Mercador de Veneza de 2004 (com Al Pacino no elenco) revisou a peça para omitir qualquer material potencialmente ofensivo, oferecendo um Shylock mais simpático e agradável e cortando questões difíceis sobre o antissemitismo. Mais absurdo ainda, uma companhia britânica de teatro em 2002 mudou o título de sua produção de O Corcunda de Notre Dame para O tocador de sino de Notre Dame”.