Traduzido com extrema liberdade pelo autor do blog
Lembro-me vagamente de um magnífico artigo de Giorgio Manganelli, explicando como um leitor sofisticado pode saber se um livro vale a pena ser lido, mesmo antes de abri-lo. Ele não estava se referindo à capacidade muitas vezes requerida a um leitor profissional, ou a um leitor afiado e criterioso. Não estava se referindo àqueles que podem julgar um livro a partir de uma linha de abertura, de duas páginas, de uma olhada aleatória do índice ou muitas vezes da bibliografia. Isso é simplesmente experiência. Não, Manganelli estava falando sobre uma espécie de iluminação, de um dom que evidentemente alegava ter.
Em How to Talk About Books You Haven’t Read (de Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura) é explicado como você pode falar sobre um livro que você não leu, até mesmo para seus alunos, inclusive quando se trata de um livro de extraordinária importância. Seu cálculo é científico. As boas bibliotecas contêm vários milhões de livros: mesmo que se leia um por dia, leríamos apenas 365 livros por ano, cerca de 3.600 em dez anos, e entre as idades de dez e oitenta anos nós teremos lido apenas 25.550. É pouco. Por outro lado, qualquer italiano que tenha tido uma boa educação secundária sabe perfeitamente que pode participar de uma discussão, digamos, sobre Matteo Bandello, Francesco Guicciardini, Matteo Boiardo, sobre as tragédias de Vittorio Alfieri ou sobre as Confissões de um Italiano, de Ippolito Nievo, conhecendo apenas o nome e algo sobre o contexto crítico, sem ter lido uma palavra deles.
E o contexto crítico é o ponto crucial de Bayard. Ele declara desavergonhadamente que ele nunca leu Ulysses de James Joyce, mas que pode falar sobre isso aludindo ao fato de que é baseado na Odisseia, que ele também admite nunca ter lido na íntegra. Ulysses também é baseado em um monólogo interno, com a ação se desenrolando em Dublin durante um único dia, etc. “Como resultado”, ele escreve, “muitas vezes me encontro falando sobre Joyce sem a menor ansiedade”. Conhecer o relacionamento de um livro com outros livros geralmente significa que você sabe mais sobre o livro do que se tivesse lido a obra.
Bayard mostra como nós, quando lemos certos livros percebemos que estamos familiarizados com seus conteúdos porque eles foram lidos por outros que falaram sobre eles. Ele faz algumas observações extremamente divertidas sobre uma série de textos literários que se referem a livros nunca lidos, incluindo Robert Musil, Graham Greene, Paul Valéry, Anatole France e David Lodge. E ele me faz a honra de dedicar um capítulo inteiro ao meu O Nome da Rosa, onde William de Baskerville demonstra familiaridade com o segundo livro da Poética de Aristóteles no momento em que o segura nas mãos pela primeira vez. Ele faz isso pela simples razão de que ele infere o que diz a partir de algumas outras páginas de Aristóteles.
Um aspecto intrigante do livro de Bayard, que é menos paradoxal do que parece, é que também esquecemos uma porcentagem muito grande dos livros que realmente lemos e, de fato, nós construímos uma espécie de imagem virtual deles que não consiste tanto no que dizem, mas no que eles evocaram em nossa mente. Então, se alguém que não tenha lido um livro cita passagens ou situações inexistentes, estamos prontos a acreditar que estão no livro.
Bayard se interessa pela ideia — e aqui é a voz do psicanalista em vez do professor de literatura — de que toda leitura ou não-leitura ou leitura imperfeita têm aspectos criativos e que, enfim, os leitores fazem sua parte. E ele prevê a criação de uma escola onde os estudantes “inventam” livros que não precisam ler, já que falar de livros não lidos é um meio de autoconsciência.
Bayard demonstra como, quando alguém fala sobre um livro não lido, mesmo aqueles que leram o livro não percebem os erros. No final de sua obra, ele admite ter apresentado três falsas informações em seus resumos de O Nome da Rosa, O Terceiro Homem, de Graham Greene e Changing Places de David Lodge. O divertido é que, quando li os resumos, notei imediatamente o erro em relação a Graham Greene, fiquei em dúvida sobre Lodge, mas não percebi o erro em meu próprio livro. Isso provavelmente significa que eu não li atentamente o que Bayard escreveu, que eu simplesmente espreitei o texto. Mas o mais interessante é que Bayard não percebeu que, ao admitir seus três erros intencionais, assumiu implicitamente que uma maneira de ler é mais correta do que outras, tanto que ele foi obrigado a fazer um estudo meticuloso dos livros que cita para poder sustentar sua teoria sobre não lê-los. A contradição é tão evidente que faz pensar se Bayard realmente leu o livro que escreveu.
Extraído de Crônicas de uma Sociedade Líquida por Umberto Eco, traduzido do italiano para o inglês por Richard Dixon.
Umberto Eco era um romancista italiano, crítico literário, filósofo, semiótico e professor universitário.
Esse não é o cara (acho que não) que disse (e/ou escrever) dar aulas sobre “Em busca do tempo perdido” sem ter lido um único volume da obra de Proust? Ainda assim, é um francês, se este mesmo não for. Mas Italo Calvino já havia escrito, em “Por que ler os clássicos?” acerca da não-leitura mesma dos clássicos, que podemos entender como cidades: vivemos nela com pleno conhecimento delas, mas não as construímos. Mas é claro que, para perceber a diferença de uma leitura para uma não-leitura temos que, efetivamente, ler, o que desmonta a teoria toda tornando-a um blefe inútil. De qualquer maneira, morrerei sem ter lido nem 10.000 livros, o que torna imprescindível saber que os outros existem e até falar deles – sem ter lido os tantos milhões temporalmente impossíveis de ler.
P.S.: Não dá para editar o texto acima. Não pude, assim, corrigir uns erros.