Um ateu (já que hoje é o Dia do Bibliotecário)

dia-de-santa-luziaJá se passaram muitos anos desde aquela vez em que fui expulso de uma instituição católica de ensino. O motivo me deixa tranquilo. A ferida interna que ficou, não.

A tal instituição é uma tradicional escola particular porto-alegrense. Um colégio que pode receber quaisquer alunos, mas que tem a característica de, há muitos anos, manter turmas para deficientes visuais. Está preparada para a missão e tem professores especializados. Eu ficava no meu canto, tranquilo, na biblioteca. Gostava de lá e era bastante amigo da bibliotecária que trabalhava à tarde. Ela conhecia seu ofício e era a responsável pela Hora do Conto. Conversávamos antes de ela contar as histórias e lendas para as crianças pequenas, despertando-lhes o interesse com seu talento. Ela também costumava pressionar a bibliotecária titular para que esta cumprisse seus horários de forma a que pudéssemos recolocar mais rapidamente para empréstimo os livros que retornavam e os que chegavam. Chegava muita coisa boa. Eu carimbava os livros, colocava-lhes etiquetas e ajudava na restauração dos muitos que voltavam quase destruídos da casa de crianças e pais descuidados. Quando vieram as férias dos alunos, fui deslocado para a digitação. O que se digitava lá? Ora, livros. Digitávamos os livros que depois seriam impressos em Braille para os deficientes visuais.

Então, em julho, me passaram o livro Porteira Fechada, de Cyro Martins. Ele já fora digitado até a página 50 e faltavam 103. Como tratava-se de leitura obrigatória para o Vestibular da UFRGS, havia a necessidade de passá-lo com urgência para Braille. Era uma atividade que me dava prazer. É um excelente livro, conta uma boa história e dei o meu melhor. E então começaram os problemas.

Conversei com a funcionária que receberia meu trabalho e ela ficou encantada com minha disposição de não apenas terminar a digitação de cada página, como com minha vontade de revisar as 50 páginas iniciais que eu constatara estarem cheias de erros. Haviam permanecido erros de pontuação e palavras não corrigidas, apesar da gritaria do corretor ortográfico do Word. Na curta biografia de Cyro que abre o volume, as únicas letras maiúsculas eram as que iniciavam as frases. O nome dos pais de Cyro, o de sua cidade, o das universidades onde estudou, o das cidades por onde andou, o nome de seus amigos, etc. estavam todos em minúsculas. Pior: como em Braille não há itálicos, os nomes das obras do autor teriam que figurar entre aspas. E não havia aspas no texto. Tinha até uma frase onde parecia que Estrada Nova era parte da frase e não nome de um romance de Cyro. Eu mostrei tudo aquilo para a responsável e ela então pediu que eu fizesse a revisão completa. OK, sem problemas, tinha tempo de sobra.

Quando relatei os acontecimentos para minha chefe, uma religiosa, ela disse que a responsável pelo Braille estava querendo que eu fizesse um trabalho que era de outro setor, não do meu. Completou dizendo que se tratava de uma inútil. Sinceramente, não me parecera. De forma débil, pois sei que tudo o que não tinha lá era “espaço”, “direitos” e “poder”, solicitei educadamente fazê-lo, pois o nome do digitador vai na capa da obra e será lido tanto por quem o vê quanto por quem o lê com as mãos. Ela recusou terminantemente. Disse-me que eu estaria fazendo o trabalho que um setor coalhado de preguiçosos (expressão dela) não fazia. Esta religiosa é uma patética personagem de romance: uma espécie de faz-tudo que anda entre os setores supervisionando o trabalho de cada funcionário, espalhando sorrisos e pequenas maldades. Seu problema era o de ser acatada apenas por quem precisava acatá-la: pelos que tinha medo dela. O restante, os funcionários, riam da figura ou simplesmente a ignoravam. Em quatro meses, nunca tivera nenhum problema. Aquele era o primeiro e não era grave.

Decidi fazer a revisão em casa e entreguei o arquivo ao setor de Bralle num final de manhã através de outra pessoa, para que a freira não tivesse a oportunidade de questionar nada. O meu nome estaria lá, pô. Por volta daquele dia, a freira faz-tudo anunciou que estava estressada — puxa, estressada é tudo o que ela NÃO parecia — e que iria para um retiro. Os tais retiros são motivos de piada entre os funcionários. Quando um religioso se incomoda, ser superior que é, vai para uma espécie de Spa de Cristo; quando o mesmo acontece com um funcionário, ele segue trabalhando. Acontece muito neste gênero de empresas livre de impostos, administradas por deus: quando ninguém suporta mais uma freirinha, ela vai para um retiro e depois é destinada a um novo paradeiro, de onde será novamente chutada entre padre nossos. Certamente ela estava de malas prontas, pronta a enobrecer com suas fofocas a obra de deus em outras plagas, mas antes tinha que me sacanear.

E, antes de viajar, ela, que sempre vinha conversar sorridente comigo, subitamente me acusou de trabalhar em outros “arquivos”. Quis responder, mas ela me mostrava sua mão espalmada, sinal inequívoco de “Não quero ouvir”. Então, eu calava. Sim, era verdade, ela tinha razão, eu mexia em outros arquivos. É que o pessoal do Braille me perguntara se eu poderia apressar a digitação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que já andava lá pela página 300 com outra pessoa. Eu vira a qualidade da digitação já realizada e sabia que era apenas razoável, principalmente em razão da dificuldade e da aridez do texto em muitas partes. O que fiz? Busquei o livro inteiro no Portal Domínio Público. Busquei a mesma edição digitada, pois o pessoal do Braille me alertara que a transcrição tinha de ser similar ipsis litteris igualzinha cara de um focinho de outro à edição que a escola possuía. Eu queria repassar aos cegos a melhor cópia possível. E que eu fazia com meu pecaminoso arquivo disponibilizado pelo Governo Federal em seu site? Ora, procurava passar o “.pdf” para “.doc” a fim de deixar Os Sertões no formato ideal antes de ir para a impressora Braille. Ficou logo pronto, com suas letras grandes, com underline no lugar dos travessões das falas, travessões onde havia travessões, etc.

Como punição por me preocupar com a qualidade da leitura dos cegos, fui devolvido à Biblioteca. OK, problema nenhum. Lá fui eu, bovinamente. No dia seguinte, recebi a folha de avaliação. Havia várias perguntas e um espaço para que pudéssemos dar nossas opiniões. E então, certamente por raiva, cometi um erro grave. Expliquei o que fizera para o setor de Braille. Falei de Euclides e seus adjetivos arrevesados. Escrevi sem nenhuma ironia, cheio de boas intenções. Uma hora depois, a freirinha voltou com a folha na mão. Sua primeira pergunta foi inacreditável. Ela perguntou sobre minha crença em deus. Mesmo sabendo que meu trabalho era bom e necessário, sabia que me atirava no precipício ao responder: sou ateu. Fui bruscamente solicitado a me retirar dali para sempre.

Nos dias seguintes, recebi diversas ligações do setor de Braille. Queriam que eu voltasse. Eu disse que tinha sido expulso. Fodam-se os cegos, né? Obedeça-se a quem acha a disciplina formal mais importante do que a disciplina cabal de fazer as coisas. Três meses depois, a funcionária do setor de Braille ainda queria que eu voltasse, principalmente porque a freirinha tinha sido finalmente transferida, mas já estava outra em seu lugar que… Já sabia que eu era ateu. Como a responsável pelo setor de Braille também era, mas não dizia.

(Meus sete leitores, digo-lhes: que romance não daria a vida naquele inferno com Cristo, quanto ciúme, quantas querelas, quantos olhares… E quanto conforto, meu deus! Deveria pensar mais nisso e dedicar o resultado às manas servas de deus!).

Obs.: Texto revisado hoje. Prova de que ainda é um problema.

39 comments / Add your comment below

  1. Me lembrou meus tempos de escola primária num colégio católico governado por freiras. Uma vez, no aniversário de uma, meus amigos deixaram um presente embrulhado na sala da freira diretora (que era uma portuguesa enorme), óbviamente não assinaram nenhum cartão de felicidades. Dentro se encontrava uma gilete.

  2. Com o perdão do trocadilho, você está pagando mesmo todos os seus pecados…

    Ah, as pequenas autoridades! Sempre fico impressionada em ver que qualquer coisa pode ser motivo de disputa, qualquer coisa pode desencadear a insegurança das pessoas. Ainda mais com freiras! Ter que adotar uma atitude bovina diante de uma crença que você nem abraça deve ser um verdadeiro exercício de paciência e desapego.

    O que eu acho realmente uma pena é que um serviço tão importante seja tratado dessa maneira. Afinal de contas, o que importa quem fez ou com que motivações fez? Muitos cegos terão nesses livros a sua única fonte de consulta e as pessoas não deveriam perder de vista a importância desse trabalho.

    1. Pois é. Gerar um texto perfeito para os deficientes visuais não é uma questão de punir ou tirar o trabalho de um e outro — trabalho sempre haverá! –, é uma questão de consideração e bondade para com estes alunos que já sofrem o suficiente.

  3. Fui uma vez no “Mosteiro da Descalças Reais” em Madri. Trata-se de uma ordem fundada no século XVI, onde duas dezenas, pouco mais, de freiras reclusas isolam-se, no momento do seu ingresso, totalmente do mundo exterior, até a morte: elas jamais podem, após fazerem os votos, sair do edifício do mosteiro, ou se relacionar com qualquer outra pessoa que não seja a “madre superiora” ou título que o valha.

    O edifício é totalmente fechado. Fica quase no centro de Madri mas, ao atravessar sua porta principal, você sente que está num túmulo gigantesco e silencioso: amplos corredores, escadarias enormes e estátuas cujo tamanho busca ressaltar as sequiosas chagas e deformidades dos mártires. Cada reclusa tem seu quarto e sua capelinha, e andam sempre descalças, mesmo no inverno, para evidenciar no corpo a “austeridade” da clausura. Nos dias de visitação, elas estão recolhidas em um lugar distante da vistas do público (sempre um número limitado de visitantes por vez).

    Há um retrato de Franco dentro do mosteiro, entre santos, Cristos e Virgens Marias, se bem me lembro. Os quadros mais interessantes, porém, são de pinturas que mostram demônios horrendos, dignos do Fantaspoa, tentando atacar a sacra nau do cristianismo.

    E foi ali também que me atraiu essa idéia, de alguém escrever um livro de ficção passado naquele lugar, tendo por base o cotidiano “monótono” daquelas criaturas, e descrevendo a vida de uma das freiras. Um lugar onde, sob a superfície ascética e serena, fervilham as baixezas, vilanias e covardias que devem subjugar qualquer um que tenta reprimir as pulsões humanas.

    O interessante é que o palco externo da história seria minúsculo: um cotidiano aparentemente seco, com poucos eventos dignos de nota e quase nenhuma comunicação direta entre os personagens. Pequeno o espaço para o ódio, a inveja, a competição e a sexualidade serem expressas, ao longo de décadas: incidentes minúsculos, desse modo, assumiriam um tamanho gigantesco na vida dessas freiras. Fazer o outro sofrer nas pequenas coisas torna-se, numa situação dessas, motivo de grande júbilo.

    Porém, é sempre uma tentativa patética de extravasar a própria miséria pessoal represada. Se a “vítima” também não está reclusa, a frustração é ainda, sem dúvida, muito pior. No teu caso, Milton, em que pese todas as minúsculas crueldades a que lhe sujeitou a doce irmã, o teu maior ato de vingança estará sempre ao quase-literal alcance da mão: a faculdade de poder fazer, quando lhe der na veneta, justamente aquilo que, para ela, certamente consiste em um motivo de agruras insconcientes por décadas – foder ou deixar-se foder.

    1. Eu acho que daria numa história interessante. Sei de histórias de freiras que saíram do “meu colégio” para casar e que hoje não podem retornar à instituição sequer para visitar alguma ex-colega. A ex-freira tornou-se inimiga das que ficaram, seu nome é impronunciável, é como falar, entre anjos, num animal sexualizado, anormal.

  4. Animo-o a pesquisar mais e escrever um romance sobre as pequenas (grandes) misérias psicológicas, psicopáticas e emocionais da clausura. Há, por aqui, um autor cujo nome desgraçadamente perdi, sobre sua experiência em um convento, no qual se convenceu de que deus não existia! Vou pesquisar e, caso o encontre, passo pra você. Abraços.

  5. Escrve, Milton! Escreve!!

    Tenho experiência com esse assunto, um dia podemos conversar mais longamente e vou te contar umas histórias.

    Por enquanto, duas delas:
    havia, na instituição onde eu trabalhava, algumas freiras, todas dirigentes. Havia também uma outra, que havia sido freira de outra congregação, bem mais fechada e conservadora. Ela estivera “na ativa” por 23 anos. Mas então… não se segurou. Foi para o Matro Grosso e caiu nos encantos de um descasado.
    Largou o hábito, ficou vivendo em pecado com o sujeito, porque o divórcio ainda não tinha saído e, sabemos, aos olhos do Altíssimo não há separação possível.
    Ela veio do Mato Grosso trazendo o sujeito com ela e se empregou na instituição onde eu trabalhava. O mais interessante era que ela passou a usar roupas sensuais, andar sempre maquiada, PORÉM, era a criatura mais chata quando se tratava de tentar obrigar a mim e a meus colegas a participar das atividades religiosas da instituição, coisa que nunca fizemos e para o que nunca fomos pressionados pelas outras freiras, nossas empregadoras.
    Um dia, estava eu sentado tomando um café quando chegou a criatura. Pediu para sentar comigo e foi soltando o verbo. Eu dei trela, porque a achava literariamente fascinante.
    Lá pelas tantas, meu esforço foi recompensado. Ela confessou (e me parece que honestamente) que se sentia muito fraca por não ter conseguido manter-se freira, manter-se perto de Deus. A culpa da criatura era algo de dar dó. Imagina, Milton, 23 anos vestindo um hábito negro, fizesse sol ou chuva, mas a natureza (ou o diabo?) falou mais alto…

    Outra história:
    Tenho um amigo que era Irmão de uma congregação que tem muitas escolas no Brasil inteiro. Ocorre que ele apaixonou-se por uma freirinha, jovem como ele. Essa freirinha tinha como atribuição cuidar de uma outra freira, bem velha. Pois a velha notou que eles andavam de agarramentos (pois já tinham consumado vários pecados) e tratava de alcovitar os encontros.
    Mas não subestime o poder da CULPA, caro Milton. O meu amigo confessou-se com seu superior que sugeriu uma longa jornada, para Roma ou pela América Latina, para poder esquecer seus amores mundanos, antes que tudo fosse perdido. Meu amigo aceitou a viagem para América Latina pois sempre fez a linha Teologia da Libertação, essas coisas.
    Segundo ele, estava em um convento na Bolívia e tratava de aliviar-se com orações e com uma moça que atendia o pessoal quando precisavam. Desesperado de saudade do seu amor, foi conversar com um frei boliviano, bem velhinho. Este lhe disse que deixasse de ser besta, porque havia muitas maneiras de servir a deus e que voltasse correndo aos braços de sua amada antes que ela cansasse de esperar e arrumasse outro Irmão, frade ou sacerdote para ela. Ele voltou, sairam das respectivas congregações, casaram, têm um filho.
    Ele havia trabalhado em uma obra interessante, uma escola na periferia de Porto Alegre. Praticamente havia criado aquilo. Foi convidado para a “formatura” dos primeiros alunos. Quando chegou, os seus antigos Irmãos impediram-no de entrar, formando uma corrente humana na frente da escola e ameçando chamar a polícia.
    Edificante.

    1. As duas histórias são muito boas, mas a segunda está mais perto da instituição que conheci. Há realmente uma falta de gratidão acompanhada de orgulho de pureza. Mesmo o bom é ruim se vem de fora, entendes? O teu amigo deve ter sentido 1000 vezes mais o que senti ao ser chutado por ajudar, por fazer alguma diferença.

  6. Existe uma ex-freira que não suportou a vida no convento, e devotou sua vida à literatura inglesa, ao deslindamento da hipocrisia da clausura religiosa, e a escrita de livros bem cuidados sobre religião: a inglesa Karen Armstrong. Li a segunda parte de sua autobiografia (até onde sei, a primeira parte, “Through the Narrow Gate”, ainda não ganhou tradução por aqui), “A escada espiral”, e a recomendo.

    Garcia Márquez escreveu um conto mais ou menos nos moldes propostos pelo Victor, “Só vim telefonar”, um pesadelo de uma mulher que, por engano, é confinada para sempre num convento. Embora o fantasma de Kafka ainda assombre a escrita tardia do colombiano, essa história opressiva de uma esposa quedada numa forma de incomunicabilidade absoluta com o mundo exterior, como espécie de maldição distraída pela tentativa fracassada de telefonar ao marido, é mais próxima a um estranho Edmond Dantés sem redenção, fortuna e vingança, do que das entidades massacradas pela inicial K do autor checo. GGM ainda visita o tema na novela “Do Amor e Outros Demônios”, em que por detrás da história da menina morta desenterrada com o corpo intacto, monta-se o cenário de uma opressão católica quase insuportável em que as diabólicas freiras de um convento purgam a carne de uma moça vítima de um amor proibido.

    Sobre o que se pode esconder nas entranhas de um convento_ e, de quebra, um extraordinário relato sobre histeria entre freiras medievais_, há o livro de Aldous Huxley, “Os Demônios de Loudun”, que, para minha defesa contra a querência em parecer erudito, digo que tive a casualidade de ler na adolescência por ter virado febre no Colégio Marista onde estudei, propagada por um professor de literatura que, além de recitar os longos poemas do Poe de cór (para o suspiro das menininhas_ tempos estranhos aqueles em que as menininhas suspiravam por poemas!), e ser anarquicamente iconoclasta, fazia sessões de hipnotismo grupal nos longos salões do colégio nas quais, essas mesmas menininhas e alguns rapazolas que tínhamos as aulas convencionais sobre criacionismo, regrediam em seus estágios mentais dominados pelo melífico professor até a lembrança de quando estavam nos úteros, descendo aquém desta vida até lembranças assustadoras de assassinatos, surras e paisagens nunca visitadas de vidas passadas, que muitas vezes tinham que ser trazidos urgentemente de volta pelo professor por que encolhiam-se em posições fetais, choravam e falavam com um fiapo de voz de bebê, coisas inesperadas que suspendia o sorriso nervoso da platéia devido a suspeita de que havia algo muito proibido neste tipo de diversão.

    Ah! Um amigo que deixou saudades por aqui, um intelectual que conhece tão profundamente os tratados de filosofia de todas as épocas, a literatura em geral e a radiografia do comportamento humano com anunciações de leituras feitas com a mais inapreensível modéstia, e que consolidou isso tudo com o sacerdócio católico: o padre Severino; enquanto era padre nesta cidade, rebatia muito bem as confrontações que eu lhe fazia sobre os males universais do catolicismo. Na casa paroquial, após a supervisão diária da construção da bela igreja que ajudou a erguer, conversávamos os dois, e ele dizia: existe a vocação e o erro em todas as atividades humanas, não só na igreja católica. Daí seguia desfiando uma argumentação histórica que me arrepiava os cabelos e me fazia pensar: Cuidado, estais diante o verdadeiro demônio! Citava J.P.Morgan, a família Rothschild, o início do capitalismo e da ciência, o massacre dos anabatistas, as várias faces de Einstein; explicava as causas de Thomas Mann ter se recusado a ir ao enterro do irmão; dizia que Platão definira a filosofia como o estudo da morte; explicava maus entendidos universais produzidos pela ignorância consciente (a virgindade de Maria) e inconsciente ( Marx nunca ter sido contra os mosteiros alemães); revelava o humor de Santo Agostinho, lendo um pequeno estudo jocoso sobre flatulências nas Confissões. Entendia muito bem sobre a microfísica do poder e a falta de idoneidade em todas as atividades humanas, a ponto de me tirar um pouco o prazer de condenar o catolicismo. Antes de partir para um doutorado em Roma, esse pernambucano moreno, com cara de menino, e imune a duplos sentidos sacerdotais e malícias sexuais sobre a abstinência e convívio dos padres com coroinhas (por rir de todos e não se desviar do mal), me presenteou com uma edição quase em frangalhos do romance de Bellow, “A Herança de Humboldt”, que ele comprara por puro carinho num sebo de goiânia, e que já sabia que eu tinha. Só fui entender o por que do presente quando, muito tempo depois, achei uma passagem sublinhada a lápis da carta de Humbold a Charles Citrine, em que o poeta arruinado brada ao amigo que o abandonou pela fama: “E lembre-se, nós somos entidades, e não identidades!” E a letra do padre abaixo, em todo seu coloquialismo e sotaque: “Pronto!”

    1. Charlles, eu também conheci bons padres, mas ainda acho que a filhadaputice está mais presente naquele extrato social. E nem falo de sexo, não? Falo de atitudes mesmo.

  7. Hoje eu tô morrendo de tédio e cansaço, mas li seu texto inteiro, e de fato há questões interessantes nesse tipo de instituição educacional/manicômio. estudei em um colégio de freiras quando era muito epqueno, fiz a Primeira Comunhã lá, era obrigado a frequentar missa e morder hóstia todo domingo com o medo insano de ver o sangue descer pelos cantos da boca, o que nunca ocorreu, é claro. Freiras, contudo, são seres humanos (acredite nisso!), e seus problemas são equivalentes, bem como sua variedade. Algumas são singelamente puras, outras maldosamente maquiavélicas, e poderíamos preencher adjetivos em escalas até amanhã, como num exercício ao piano. O mundo inteiro, sintetizando, é um manicômio, desde os vendedores de cachorro-quente até os empregados das empresas petrolíferas, sem esquecer dirigentes de toda ordem, pública ou privada. Mas é claro que a matéria dá literatura, pois tudo dpa literatura, até o que aparentemente não dá, como uma topeira cavando sua toca.

    Mas hoje eu tô morrendo de tédio e cansaço, e nçao tenho vontade de discorrer sobre ambientes inóspitos marcados pela presença aterrorizante dos crucifixos, com aquelke pobre sujeito a pender, nu, coberto de sangue, eternamente, deus que nos impinge sua dor para que possamos sofrer prazerosamente nossos breves dias. Diria ao inferno esses filhos de umas putas, se não risse também do inferno, ou fodam-se, seus escrotos, mas gosto da palavra “foda” e não de aplicá-la a pessoas que não possuem esse hábito, mas outro, conventual.

    Sabe aqueles dias em que todas as tarefas lhe parecem não somente inúteis e maçantes, mas mortalmente reveladoras da absoluta falta de critério de nossa cultura de bosta? Bah, é legal saber que há gente que se dedica a digitar livros para que sejam repassados em Braile, permitindo aos deficientes visuais (cegos!) que partilhem de nossas buscas existenciais de vermes pretensiosos. É legal saber que há até gente preocupada em sabotar esse trabalho por picuinhas orientadas por artimanhas de mesquinhez política. Na verdade é legal saber de tudo e… bosta, acho que o tédio foi embora e o cansaço não vai vencer a curiosidade de ler os comentários.

    Voltando a estaca um: a paranóia inventa seus próprios remédios, principalmente se o paranóico abre os olhos.

    1. Eu também fiquei fascinado por este negócio de digitar livros. Acho que é um ato de enorme solidariedade, mas nunca quando feito daquele jeito.

      Quando me disseram que não havia mais livros a digitar… Eu que não me preocupasse de ir para a Biblioteca. Eles devem ter um acervo de uns 150 títulos… Isto é o mesmo que dizer: 150 livros é suficiente para nossos cegos. É uma piada, uma piada! E a impressora Braile está lá, é pouco utilizada, é de propriedade desses monstros.

      Quanto à filhadaputice invadir todas as áreas da mesma forma… Duvido! Compare músicos com freiras! A santidade está com os primeiros, fácil, fácil.

  8. milton. espero q tu tenha controlado teus instintos juvenis mais primitivos (obviamente estou me referindo a esconder, por exemplo, o romance Iracema – por engano – na cueca). respeito né.

  9. Depende do músico, Milton! Miles Davis era cafetão; James Brown matou a mulher; Jaco Pastorius tinha o costume de correr à toda em sua moto, peladão, e de se meter a deus com donos de boteco sem paciência (morreu disso, aliás!); Ike surrava a Tina, e ela provavelmente gostava; John Phillips, líder do Mammas and The pappas, dopava a filha para abusar dela sexualmente; Bach humilhava sem piedade alunos medíocres (sei que tratar de Bach com você é muita coragem minha, mas tô dizendo o que li no livreto dessa nova série de compositores nas bancas); Beethoven tinha uma neurastenia intragável…

    Mas estou só dizendo que em se tratando da humanidade, não há muitas surpresas.

    1. Digo isto por conhecer a raça dos músicos muito bem. Claro que todos os teus exemplos são reais e fazer uma amostragem válida é impossível… Mas mesmo assim acredito que os músicos sejam muito menos deletérios do que os religiosos. Ganham longe.

      1. Apesar de todos os exemplos nada bonitos que o Charlles colocou, isso não entra em questão porque de músicos a gente não espera um comportamento exemplar. Digamos que se comportar bem seja a essencia da própria “profissão” religiosa, daí o choque.

        E achei um absurdo a idéia da fulana achar um acervo com cerca de 150 livros bom. Alias, acho uma pena que não exista qualquer tipo de assessoria para bibliotecas voltadas a cegos, que acabam contando com a cultura (às vezes pouca) de quem está lá. Eu já trabalhei como voluntária num serviço da Biblioteca Pública aqui de Curitiba, na gravação de audio-livros. O acervo era bem grande, mas com um sério problema de qualidade. Até uma certa data, os próprios voluntários escolhiam que livros eles leriam. Resultado – todos os livros espíritas que você pode imaginar já estavam lidos, em detrimento de todos os outros. Poucos clássicos e livros técnicos nem pensar. Eu que li o 1984…

        Bem, é melhor eu parar por aqui porque cegueira é um assunto que me sensibiliza especialmente. Foi o tema da minha dissertação.

        1. Caminhante,

          tua abordagem foi muito mais inteligente do que tudo o que escrevi para o Charlles. Claro, a profissão religiosa pressupõe o exemplo e o comportamento. De um músico muitas vezes espera-se justo o contrário, mas eles raramente são TÃO sacanas.

          Cegueira também me sensibiliza demais. Como ex-estrábico, míope e vítima de color blindness (ou daltonismo), a cegueira é uma realidade que sempre me preocupou e fico absolutamente descontrolado de raiva quando uma FDP diz que não há livros para digitar…

          E todo o dominiopublico.gov lá, disponível.

  10. Só pensei numa coisa: considerando a aplicação das transcrições, não seria mais fácil à instituição requerer arquivos digitados às editoras? Talvez nem todas tivessem, mas certamente a maioria. E se há como obter ´cópias já digitalizadas na Internet, qual é o problema? A disciplina do trabalho não pode ser alterada? Não estamos no século XXI?

  11. Poderias ter usado algum software de OCR – Optical Character Reader e um Scanner. Desta forma o software transforma automaticamente as páginas em .doc ou ao menos facilitaria o trabalho de digitação, que passaria a ser de revisão…

    Também acho que deva existir algum tipo de trabalho voluntário no Beira-Rio em dia de jogos…

  12. O Carlos Heitor Cony escreveu aquele “Informação ao cruxificado”. Um tempo atrás dei aula sobre o Cony e li e reli esse livro com bastante cuidado. Se passa num seminário. Não gosto de falar em “tema central”, mas dá pra dizer que nesse caso a perda da fé está no centro do livro. Talvez ele ajude a pensar uma estrutura pro teu romance, que tem, desde já, meu apoio.

  13. Vocês, jovens, passam por apuros inopinados. Nos meus tempos de estudante no Colégio Rosário, havia apenas máquinas de escrever, um monte de Remington bem antigas, zelosamente vigiadas pelo irmão Ardélio Bortoncello. Vim a conhecer um 386 já no doutorado, e arquivo .pdf, bem depois.

    Histórias de padres malucos e tarados, porém, havia muitas, especialmente as protagonizadas por um angelical irmão Alduíno em seu “museu da música”. Todos eles sabem que não há prazer mais beato do que punir um ateu.

  14. Local: Pequena cidade do interior com população majoritariamente de origem Alemã.
    Hora: Tarde da noite
    Ocorrência: Torsão do tornozelo, extremamente dolorosa.
    Um pequeno acidente caseiro, ocorrido no início da noite, mas que com o passar de algumas horas foi possível perceber a necessidade de atendimento médico ao menos para amenizar a dor, para então no dia seguinte procurar um atendimento especializado.
    Decidimos seguir ao pequeno hospital da cidade para ver o médico de plantão.
    Na recepção há a necessidade de responder as perguntas da recepcionista para preenchimento de um cadastro e, sobrevivendo a este, então passar para o atendimento médico. Após alguns minutos de infinitas perguntas e muita dor, chegamos a pergunta final e fatídica: “Qual sua religião?”.
    Apesar de não praticante me considero Católico, mas este tipo de pergunta em um hospital, na área de emergência e com muita dor, só havia uma resposta a dar, a mais curta, então vejam o pequeno diálogo, felizmente interrompido por minha esposa:
    Recepcionista:
    – Qual sua religião?
    Eu
    – Nenhuma!
    Recepcionista:
    – Não pode! O Sr. tem que ter uma Religião!
    Eu (com muita dor e ainda indignado por ser obrigado a ter uma religião):
    – Mas eu não quero responder isto, coloca ateu!
    Recepcionista:
    – Não, tem que ter uma religião!
    Eu (com dor, irritado e, portanto, louco para arranjar uma briga):
    – Então coloca qualquer coisa, umbanda, candomblé.
    Felizmente neste momento minha esposa interveio e respondeu a recepcionista que éramos católicos, para mim ela apenas deu um olhar de “fica quieto”. Com o cadastro preenchido então foi possível ver um médico (recém acordando) que após 30 segundos nos passou a enfermeiro, na verdade conhecendo a fama do hospital, este era o objetivo, pois sabíamos que o atendimento mesmo seria feito por este (felizmente um ótimo profissional).

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