Muito bem acompanhado (o Guto)

Já tinha até um post pronto, porém Nikelen Witter, mulher do Farinatti, um de nossos habituais comentaristas, veio ao blog e fez um daqueles comentários que merecem destaque. O assunto é o discurso de Pepe Mujica que publiquei neste post. Penso que seu texto descreva, de forma clara, emocionada e inconformista, este nosso cinismo infértil de cada dia e que assume normalmente a máscara da sofisticação. Como educadora, ela deve lidar com isso diariamente. Mas não pretendo me alongar na apresentação. A seguir o comentário:

Nikelen
on Jan 6th, 2010 at 12:50 pm

Oi Milton

Nunca comento aqui, mas o Guto (Farinatti para ti) sempre divide comigo os posts do teu blog (casamos em comunhão de sementes para pensar, ele me traz algumas, eu levo outras). Não preciso repetir o que teus comentadores disseram sobre o belíssimo discurso do presidente uruguaio. De mais a mais, acho que ele fala por si só. Talvez mais que isso.

As palavras de Mujica voam além das nossas programadas inteligências e falam ao nosso coração. Aquele que, jovem, aventureiro, sonhador, foi embalsamado junto com nossos trastes de saída da casa paterna e ficou naquela caixa, nunca aberta, esquecida num canto do armário das coisas as quais um dia pretendemos voltar, e nunca voltamos. Afinal, nós precisamos trabalhar, não é? E precisamos fazer as “nossas coisas” (tão “importantes”, elas, não?). Precisamos ler o último livro daquele autor que amamos, ver o novo filme de nosso cineasta favorito, precisamos amar os nossos amores e criar os nossos filhos. Nos intervalos, lembramos que sabemos pensar e criticamos. Sabemos colocar o dedo na ferida e dizer o que está errado. Somos capazes de apontar todos os problemas. Ora, no Brasil, todo mundo ou é técnico de futebol ou economista e “é a droga do governo que não faz nada diante desta situação!”.

Quem é da área educacional, como eu, deve ter ouvido à exaustão: precisamos formar o aluno crítico! Então, pegamos as criancinhas e lhes ensinamos como o mundo é ruim, como não se pode acreditar no que lhes é dito, como elas devem olhar tudo a sua volta (sem ter esperança) e criticar! Sim, nós temos o aluno/jovem crítico (nós já o somos tanto), e também: cético, cínico… que, depois de tudo, são outras palavras para dizer: descrente, sem curiosidade, sem sonhos, sem utopias, sem paixão.

Quando eu era menina, meu pai falava que um mundo melhor era possível, um mundo diferente, um mundo em que todos sabiam ler e escrever (e liam e escreviam!), onde o conhecimento (não no sentido de dados, mas de pensamento) era o mais importante, onde a inteligência cultivada tinha um valor acima do dinheiro no banco, onde todos comiam três refeições por dia e ninguém passava frio. Lembro que, na mesma época, minha irmã morria de medo de o mundo acabar com uma bomba atômica (ou no ano 2000), eu não… eu sonhava. Sonhava em construir esse mundo melhor, em viver nele, sonhava em criar coisas capazes de ajudar esse mundo a existir. Eu ficava curiosa em descobrir como as coisas funcionavam, pois entendendo, eu achava que seria mais fácil achar um lugar, no meu mundo, onde eu poderia trabalhar para construir o próximo. O mundo do futuro, dos meus sonhos, dos sonhos do meu pai. E, o mais engraçado, nunca achei que meu pai estivesse mentindo para mim ou algo assim, e, jamais duvidei, um único dia, de que o meu sonho seria a realidade do meu futuro.

Então, hoje, cá estou, cheia de diplomas e cercadas de jovens criados para serem críticos, mas não para criar. Criados para serem céticos e não para acreditar que seus sonhos são possíveis. Jovens que olham o mundo e a humanidade com um cinismo e uma antipatia que me assustam. Jovens para quem o dinheiro e o consumo são aquilo a que se resume a vida. Jovens que pensam em salvar o planeta, mas não acreditam na humanidade. Jovens que nem sabem o que palavras como inconformismo significam. Confundem-na o tempo todo com indignação. E, céus, quem não sabe? Indignação virou arroz com feijão, ou pior, virou apenas algo que dá e passa. Ninguém se perde por indignação. Quase ninguém mais sabe que para a indignação nos fazer levantar do sofá, é preciso que não nos conformemos em aceitar viver com ela.

O fato é que, na área educacional quase nunca ouço falar de curiosidade, de criatividade, de utopias. Estas não são palavras que apareçam nos manuais educacionais. E aí, de repente, é tão interessante perceber que o nosso “aluno crítico”, tão cuidadosamente formado, não sabe fazer perguntas. Ele critica, mas não possui a dúvida instigadora. Critica sem observar, sem comparar, sem contraste, sem relativismo. Critica como uma obrigação, sem ver, apenas porque essa é a “competência” e a “habilidade” que se costuma a exigir dele, e mais nada. Não há impulso para a ciência ou para a arte, não de forma massificada. Pelo contrário, quando alguém assim surge é um acaso, uma sorte, é o extra-ordinário. Inteligência não é pensar mais, nem melhor. Não é criar, nem se inconformar, muito menos acalentar sonhos de coisas que provavelmente não vão acontecer. Nas escolas públicas, aluno inteligente é o que consegue ficar na escola por mais tempo e sobreviver. Nas particulares, inteligente é o que consegue aprender mais rapidamente todas as funções do último equipamento de bolso criado pela Nokia ou pela Sony.

Às vezes, vejo a nós, professores, como o Dr. Frankenstein. Queremos dar vida à criatura, mas… Deus nos livre caso ela ande por suas próprias pernas, olhe por seus olhos, ou pense por sua própria cabeça.

E aí esse… esse maravilhoso veterano de um tempo em que o sonho era a maior matéria da realidade, vem com suas palavras cheias de paixão e sonho, e faz, de novo, o mundo de que meu pai falava, existir em algum lugar. Pode ser no Uruguai, num futuro mais distante que a minha existência, numa terra ainda não descoberta ou apenas nesse discurso. Mas só saber que em alguém, em algum lugar, esse desejo de criação, esse exercício de esperança ainda existe, já me faz menina de novo. E, me faz voltar a desejar – com uma força esquecida – um mundo assim para o meu filho viver. Como o meu pai, um dia, desejou para mim.

Valeu pela semente, Milton.
Um abraço.

13 comments / Add your comment below

  1. Lindo discurso. E o comentário da Nikelen foi perfeito.
    Como educadora o que eu vejo são crianças que chegam e saem da escola sem saber pensar, que recebem tudo mastigado e se acostumam tanto a isso que acham normal.
    Graças a Deus são crianças e com um pouco do estímulo certo – o mesmo citado no discurso — elas conseguem superar isso e seus pensamentos começam a fluir.
    Que inveja dos uruguaios. Mas quem sabe chegará um dia em que esse discurso não passe a ser um só, para todos em todos os países?

  2. Puxa, Milton. Obrigada por ter trazido o cometário para este espaço e pelo título que deste (acho que a recíproca é a mesma). E também, obrigada pelos comentários da Caminhante, do Ramiro, da Priscila e do Dario. Fiquei com a impressão de que sonhos só valem se forem divididos. Então, estou copiando o discurso do Pepe e ele será o tema de minha primeira aula de História Contemporânea II no início do semestre, em março. Quem sabe a inspiração se espalha.

    Abração.

    1. Gostaria da autorização da autora do comentário do texto para utilizá-lo num trabalho que realizamos com professores no curso de Educação Fiscal, Raras vezes li um depoimento que me tocasse tanto. Se possível gostaria de um contato direto ( email). Para usar o texto preciso de autorização formal.

      Tãnia

      1. Lindo poema, Ramiro.

        Tãnia, fico lisonjeada pelo pedido. Peço ao Milton que te encaminhe o meu e.mail, pois ele tem acesso ao meu e ao seu.

        Abraço

  3. De vez em quando, caro Milton, você afirma que há comentários que valem mais que o post. Desta vez, concordo plenamente: o que a Nikelen nos trouxe, e você assim o permitiu, é tão importante e verdadeiro… não é fácil ser inconformado, muito menos agir coerentemente com a percepção crítica e agir conforme nossas convicções. Educar – segundo aprendi – é um termo formado pelo prefixo ex + ducare = conduzir para fora.
    “Para fora de que e para onde?”
    Para fora do mundo da necessidade, da natura para a cultura, da necessidade para o desejar, da condição de objeto/i> à condição de sujeito.
    É, pois, uma tarefa árdua, quase impossível (Freud já disse que existem três tarefas impossíveis: educar, governar e psicanalisar!).
    Mas a gente não pode desistir.

  4. É Milton, estou muito bem acompanhado sim! Mas não deixe isso muito evidente. Vai que ela se dá conta e me larga!

    Para tentar não sucumbir ao cinismo e à apatia, o que não é fácil e muitas vezes é batalha perdida dentro mim, tento lembrar da importância da Utopia. Não como projeção de mundo perfeito e, portanto, totalitário. Mas sim como possibilidade de pensar que o mundo pode ser diferente do que é. Trata-se da capacidade para sonhar com algo que não está posto agora.

    Para tanto, além das conversas com a Nika, quando o tempo nos permite, tenho também duas lembranças que gosto de acessar:

    A primeira foi uma fala de uma grande professora de filosofia, Suzana Albornoz, sobre Ernst Bloch, ouvida sentado no chão, no meio do mato, perto de um rio.

    A segunda é o final de “As Cidades Invisíveis”, do Calvino, em que Marco Polo responde ao desespero de Kublai Kahn:

    “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é algo que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”

  5. Eu estou viajando, daí decido parar numa Lanhouse para ver o blog do Milton e leio o seu texto, Nikelen. Debaixo dos óculos escuros, meus olhos estão mais que marejados. Olho para os lados: inútil dissimular, pois os adolescentes aqui estão todos vidrados num jogo que, como uma metáfora da desistência, compele absolutamente o oposto do otimismo do seu texto. Bom ter pessoas como você, que ocupam os lugares adequados_ uma raridade! Agora é uma maldade com o Guto, um declarado chorão.

    1. Mais uma coisa.

      Estou lendo “Dialética do Esclarecimento”, do Adorno e do Hockeimer, e esse livro está virando de pernas para o ar meu intelecto, meus conceitos, etc. O tema tem tudo a ver com o discurso do Mujica, que por sua vez engloba a questão da educação e da cultura dos países latinoamericanos, incluso o nosso.

      Segundo Adorno _ se eu estou entendendo bem um livro tão complexo_, o esclarecimento através da leitura e da acepção da arte elevada, da a lucidez de se aperceber num mundo onde a dominação pela indústria cultura permeia tudo. Aí é que o bicho pega!

      Ao indivíduo esclarecido sobra, então, três alternativas: ver que não é possível mudar esse arquétipo histórico de subordinação, o que a resignação traz o despropósito de buscar o esclarecimento ( a ignorância como benção); o niilismo absoluto (já que as fronteiras da superstição foram devassadas, derrubando tudo, deuses, tradições, danças tribais: tudo metido no mesmo chinelo e posto para fora); ou, em terceiro lugar, um esclarecimento que almeja a mudança, a utopia que o Farinatti menciona acima.

      Estou muito curioso sobre Adorno e esse livro. Quem_ e quando_ for falar sobre o assunto, por favor, me avisem.

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