Dom Casmurro para uma russa

Dom Casmurro para uma russa

Alguns de vocês sabem que leio livros em voz alta para a Elena Romanov. Faço-o sempre à noite, desde que não esteja alcoolizado — coisa raríssima atualmente — ou que o Inter não tenha perdido — fato cada vez mais rotineiro.

Mas o que interessa é que ontem terminei de ler o primeiro Machado de Assis da moça. Não li Helena, claro, fui direto a Dom Casmurro. De maneira geral, ela gostou dos capítulos curtos, reclamava quando eu decidia parar e hoje de manhã disse que era tudo muito triste. É mesmo. Pessoalmente, li o livro pela terceira vez e, também pela terceira vez, me surpreendi que uma coisa levada naquele tom de conversa possa esconder tamanha tristeza.

Mas acho que ela não se importou com isso. Afinal, os russos são os mestres da desgraça. Lembro que uma vez ela me mostrou uma camiseta russa onde havia um Dostoiévski ornamentado por uma frese mais ou menos assim: “Se a sua vida está uma m., se você não vê perspectivas, se não há um meio de sair do buraco, abra um romance russo: lá, tudo estará pior.”

Abaixo, o sósia do Jeferson Tenório.

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Mais duas dos meus filhos no Dia da Criança

Estávamos no carro indo a algum lugar, a Bárbara na cadeirinha e o Bernardo já no banco, como se fosse crescido. Passávamos à beira do Guaíba. Paramos. Eu olho para trás a fim de ver como estavam eles. A Bárbara estende o pescoço para ver melhor a paisagem. Sem tirar os olhos da janela, ela faz uma cara de profunda admiração e diz:

— Que piscina gandi!

Eu lavava a louça e o Bernardo estava brincando no chão da cozinha com um caminhão de madeira que eu tinha dado pra ele — eu sempre tinha sonhado em ter um quando criança e nunca tive, confesso que tinha até ciúmes da coisa. O Bernardo pegava um limão, fechava ele dentro do caminhão e anunciava “Entlô!”. Pegava uma laranja e anunciava “Entlô”. Pegava uma maçã e dizia “Entlô”. Pegou um mamão e disse “Não entlô!”. Então eu ouvi algo como RAAAASCH e ele disse:

— Agola entlô!

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Já que é Dia da Criança, duas historinhas

Bernardo, hoje com 34 anos: ele devia ter uns 5 anos e tinha a cabeça lotada de documentários da Discovery Channel ou de outros canais assemelhados. Estávamos chegando na Escolinha dele e, logo em frente, na calçada, um grupo de trabalhadores do DMAE tinha aberto um enorme buraco na rua, fazendo algum conserto no esgoto. O Bernardo olha pra mim bem sério e pergunta:

— Pai, são arqueólogos?

Bárbara, hoje com 31 anos, entra correndo, toda feliz, em casa. Devia ter uns 2 anos e não se aguenta, tem que contar que viu um pássaro falando bem alto, repetindo as mesmas palavras. Pergunto-lhe qual era o pássaro que fazia algo tão incrível:

— Tu não conhece? É o pucabaio!

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4 poemas para o Dr. Milton Cardoso Ribeiro (1927-1993), meu pai

4 poemas para o Dr. Milton Cardoso Ribeiro (1927-1993), meu pai

MEU PAI
Ferreira Gullar

meu pai foi ao Rio
se tratar de um câncer
(que o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele examinou
o estojo com o nome
da loja, dobrou a nota,
guardou-a no bolso
e falou: quero ver agora
qual é o sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

DISTINÇÃO
Carlos Drummond de Andrade

O Pai se escreve sempre
com P grande, em letras
de respeito e de tremor,
se é Pai da gente.
E Mãe, com M grande.

O Pai é imenso.
A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo
bem melhor: Mãe é
muito mais fácil
de enganar.

(Razão, eu sei,
de mais aberto amor.)

IMPRESSIONISTA
Adélia Prado

Uma ocasião, meu pai
pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos
numa casa, como ele mesmo
dizia, constantemente
amanhecendo.

NA HORA DE PÔR A MESA, ÉRAMOS CINCO
José Luís Peixoto

na hora de pôr a mesa,
éramos cinco: o meu pai,
a minha mãe, as minhas
irmãs e eu. depois,
a minha irmã mais velha
casou-se. depois,
a minha irmã mais nova
casou-se. depois,
o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa,
somos cinco, menos
a minha irmã mais velha
que está na casa dela,
menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela,
menos o meu pai, menos
a minha mãe viúva.
cada um deles é um lugar
vazio nesta mesa
onde como sozinho.
mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa,
seremos sempre cinco.
enquanto um de nós
estiver vivo, seremos
sempre cinco.

Na foto, ele, minha irmã Iracema Gonçalves, eu e minha mãe. Éramos quatro.,

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Da vida

Da vida

Era 2013 e eu estava discutindo os termos de minha separação quando comecei a namorar a Elena. Fiquei só mês sozinho, nem isso, acho. Então, minha ex — que tinha se retirado voluntariamente de nossa casa — soube, voltou e trocou as chaves de casa. Fiquei temporariamente sem minhas coisas. Eu estava no trabalho e ela me avisou do fato. Tu não vai conseguir entrar.

Fiquei pasmo e irritadíssimo, e disse para a Elena que não iria a um concerto àquela noite. Minha ex provavelmente estaria lá. Elena disse que de jeito nenhum eu deveria mudar meus planos. Tá bom. Comprei cueca, meias e camisa nova, tomei um banho e fui ao concerto. Minha ex efetivamente estava presente. Ignorei-a.

Foi disso que lembrei quando vi Alexandre de Moraes todo feliz no jogo do Corinthians logo após ter sido sancionado por Trump.

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Thomas Mann e Herbert Caro

Thomas Mann e Herbert Caro

Além da mãe brasileira, Thomas Mann teve a sorte de contar com Herbert Caro traduzindo seus livros no Brasil. Se “A Montanha Mágica” tem o formato de uma composição musical, como disse Adorno e o próprio Mann, seu tradutor no Brasil era um crítico musical de primeira linha. Sorte de Mann ter achado alguém “compreensivo”. (O Dr. Caro usava “compreensivo” no sentido de quem entendia as coisas com clareza).

Nos anos 70-80, conversava bastante com ele e nossas conversas eram sobre música e nosso amado Vermeer. Os encontros eram aos sábados pela manhã numa loja de discos de Porto Alegre. Há coisas que a gente perde por ser jovem, né? Ele foi o lendário tradutor de Mann, Hesse, Canetti e até Steinbeck. Mas pouco falamos sobre suas traduções. A música tomava quase todo espaço.

P.S. — Eu não sabia que hoje é o aniversário de Thomas Mann, 150 anos de nascimento.

Herbert Caro

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Elena de aniversário

Elena de aniversário

Hoje, dia do teu aniversário, Elena, acordei com minha cabeça tocando uma canção que não ouvia há décadas e que pouca gente conhece, apesar dos autores serem famosos. Ela veio completinha: música, letra, cantora e também com seu arranjo um tanto pesado. É de 1971 e devo tê-la ouvido bastante naqueles anos. Em determinada parte, ela diz:

Quero um beijo teu
Teu corpo, tuas mãos
Vamos dormir no chão
Do sul da América
Sabe meu amor
Hoje somos dois
Quase ninguém nos vê
Quase ninguém nos quer
Mas eu vou te amar
Vou te amar
E amar

Então, me virei pra ti na cama e te abracei, sentindo imediatamente que teu sono se aprofundou, o que miraculosamente sempre acontece quando te abraço enquanto dormes. Deve ser um bom sinal.

A lembrança não pode ter sido apenas uma coincidência (apesar de que dormir no chão, na minha idade, não é uma boa).

Feliz aniversário, Elena. Continua rindo das minhas piadas bobas, por favor.

A foto é minha, da Elena brincando na Pinacoteca de São Paulo

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Uma infância pagã

Lembrei disso agora.

Um dia, faz quase 30 anos, fui buscar meu filho Bernardo Jardim Ribeiro no Maternal e ele me contou que sua professora estava falando em deus e em como ele mora no céu, essas coisas.

— Sabe, pai, eu não quis deixar ela triste, mas quase disse pra ela que já andei de avião e que não tem ninguém lá.

Não preciso dizer que ele era um pagãozinho. Nem batizado foi, óbvio.

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9 de maio: a vitória na Grande Guerra Patriótica

9 de maio: a vitória na Grande Guerra Patriótica

A Elena chama a Segunda Guerra Mundial traduzindo a expressão utilizada na Rússia, Grande Guerra Patriótica. Não que ela pareça muito saudosa de Belarus ou se ufane especialmente de sua origem — acho que ela se ufana apenas da língua russa –, é que aprendeu assim, Grande Guerra Patriótica.

O dia da tomada de Berlim pelos soviéticos, o 9 de maio, dez dias antes do aniversário dela, é um feriado muito importante no país, uma grande festa, e, neste ano, comemora-se 80 anos do fim do nazismo. Morreram 27 milhões de soviéticos.

Muita gente importante estará em Moscou sexta-feira e é certo que Putin, Xi Jinping e Lula terão um assunto: Trump. Sempre desinformando, o Laranjão disse a Guerra só foi vencida graças aos EUA. Bem, sabemos que história não é o seu forte. Aliás, em que ele é forte? Em taxações e fascismo?

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Dia 9, os 80 anos do final da Segunda Guerra

Dia 9, os 80 anos do final da Segunda Guerra

A Elena chama a Segunda Guerra Mundial traduzindo a expressão utilizada na Rússia, Grande Guerra Patriótica. Não que ela pareça muito saudosa de Belarus ou se ufane especialmente de sua origem — acho que ela se ufana apenas da língua russa –, é que aprendeu assim, Grande Guerra Patriótica.

O dia da tomada de Berlim pelos soviéticos, o 9 de maio, dez dias antes do aniversário dela, é um feriado muito importante no país, uma grande festa, e, neste ano, comemora-se 80 anos do fim do nazismo. Morreram 27 milhões de soviéticos.

Muita gente importante estará em Moscou sexta-feira e é certo que Putin, Xi Jinping e Lula terão um assunto: Trump. Sempre desinformando, o Laranjão disse a Guerra só foi vencida graças aos EUA. Bem, sabemos que história não é o seu forte. Aliás, em que ele é forte? Em taxações e fascismo?

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A primeira reflexão do dia

Ao acordar, minha primeira e fundamental reflexão foi a de que sou um baixinho metido. A Elena dormia a meu lado, prova viva de minha ousadia. Com 1,70m, sempre admirei e namorei mulheres do meu tamanho. Quando elas usam salto, fico menor do que elas, claro. Porém, sou também grudento, então andar de mão fica desconfortável, porque homens são macacos de braços longos e eu tenho que ficar com o braço flexionado. Impossível. Botar a mão no ombro seria como se dependurar num andaime. Não dá. A Elena gosta de braços dados, o que é romântico, mas minha forma preferida é colocar o braço na cintura. O problema é que, antigamente, isso me causava ereções. Hoje, com a idade, apesar das ordens veementes e repetidas do cérebro, o membro as acata com simpatia só que normalmente as arquiva. Então, fico com o braço da cintura. É o ideal. Após resolver este tópico, pude finalmente sair da cama e fazer o café.

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Daniel Deronda 1

Daniel Deronda 1

Quando a Elena esteve no hospital, adquirimos o hábito de eu ler livros em voz alta para ela. Claro, agora ela pode lê-los sozinha — aliás, mesmo no hospital ela podia ler, tanto que lia Nabôkov no original “para não perder a inteligência” –, mas ela diz que é fácil se acostumar com o que é bom. Chega a dizer que gosta da minha voz, o que julgo ser totalmente impossível.

Mas o que interessa é que estou lendo o maior de nossos calhamaços até hoje: trata-se de “Daniel Deronda”, de George Eliot e 700 páginas. DD não é um “Middlemarch”, mas é ótimo e cheio de detalhes inusitados para um romance vitoriano.

Quando do primeiro encontro de um casal, ela coloca as falas de cada um e, entre parênteses, o que um está pensando e observando no outro. É um trecho onde brilha o enorme virtuosismo da autora. Disse Marcelo Coelho que George Eliot não é uma artista que nos faça ver o mundo segundo uma perspectiva original, como Kafka fazia, mas, como Tolstói, é uma artista que nos faz ver o mundo de acordo com nossos próprios olhos. Só que “nossos próprios olhos” parecem ganhar lentes de aumento; e em toda a literatura ocidental poucas lentes são tão claras, tão penetrantes, como as que George Eliot nos oferece.

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A chegada de Max

A chegada de Max

Aconteceu algo hoje. A veterinária do falecido gato da Elena — Vassily morreu faz 3 meses — ligou dizendo que tinha o gato perfeito pra ela. Disse que, se o luto passou, era a hora de pegar outro. Fui conhecer o cara e simpatizei com ele imediatamente. Peguei o vira-latinha cheio de vermes que trataremos. Não deve ter 1 Kg.

Tem prováveis 45 dias, é ultra carinhoso e ronronante, apesar de agitado e enérgico. Nestas primeiras horas, a maior das surpresas: parece que ele me escolheu. Logo eu, que não dou bola pra gatos. Maximiliano, cujo apelido é Max, ronrona em cima de mim e só quer saber de deitar nas minhas roupas. Espero que não fuja e que seja da Elena.

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84,5 Kg

Ontem, uma querida cliente da Bamboletras — que só pode ser uma personal muito competente; se precisarem de indicação, ela está aqui no Face –, reagiu com estranheza quando lhe disse que eu pesava 84,5 Kg. Isso nu, de manhã cedo e após mijar pra ver se melhorava o resultado. “Mas onde?”, foi o que ela respondeu, antes de me medir com os olhos. E completou dizendo: “Não pode, tem certeza que a balança está certa? Tu nem tem uma circunferência abdominal (pança) tão considerável (imensa)”.

Sim, tenho certeza da balança. É meu peso máximo em vida e certamente em morte também. Toda vez que coloco uma calça, penso que sou um bacon e deveria me jogar numa frigideira sob fogo alto.

Classe média problems.

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Rascunho de meu pai

Rascunho de meu pai

Ele não pertencia ao Departamento de Preocupações e frequentemente licenciava-se do de Sustento. Em nossa casa e em todos os lugares onde ia, suas funções estavam mais ligadas ao Ministério do Lazer, Jogos e Cultura, sem esquecer o de Relações Públicas. Não posso imaginar coisa melhor para uma criança do que um pai sempre presente, brincalhão e meio irresponsável. Desde muito pequeno tive contato com os dois lados do Dr. Milton Cardoso Ribeiro — o pai adorável e o apostador. Meu pai e minha mãe eram dentistas numa época em que os bons profissionais desta área faturavam o que todos nós deveríamos faturar sempre. Ganhavam bem. Só que meu pai direcionava seus ganhos para as corridas de cavalos do Jockey Club. Minha mãe ficava maluca com isto, mas para mim, que não conhecia outra família, aquilo era algo tão normal que suas reclamações eram como a música incidental sob a qual vivíamos tranquilamente. E esta trilha não poderia ser mesmo muito tonitruante, pois meu pai era alguém tão doce que era difícil brigar com ele. Mas a verdade é que ele vivia e se divertia, enquanto ela trabalhava para manter nosso barco sobre as águas.

Ele nasceu em 1927 e morreu em 1993, aos 66 anos. Um dia antes de morrer, dera-me um encontrão por trás no supermercado — era uma tradição nossa esbarrarmos um no outro “casualmente”— e comentáramos sobre um monte de coisas. Estava bem, normal, porém, na manhã seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Minha mãe me ligou às 6h da manhã, dizendo teu pai está caído no banheiro. Quando cheguei, ele já tinha morrido.

Sua internet eram os muitos jornais dos quais não se separava e o chatíssimo rádio de pilha que usava para ouvir notícias e a meteorologia. Algumas vezes suas manias tornavam-se incontroláveis, como demonstra naquele caso ocorrido em pleno casamento de minha irmã. Durante a festa, organizada num dos hotéis mais chiques de POA, um amigo da Iracema chegou-se para dizer a ela que um convidado, desinteressado da festa, estava escondido na privada, ouvindo os páreos num radinho de pilha. Minha irmã voltou-se para ele e disse: “É meu pai”.

Não lembro de grandes brigas ou discussões com ele. Lembro é das disputas. Seu perfil de apostador adequava-se perfeitamente a elas. Eu e ele tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligávamos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, supertreinado em descobrir tudo o que de clássico toca. Hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”.

Quando eu tinha menos de 13 anos, nos dedicávamos — sempre antes de dormir — à atividade de imaginar histórias para a música que estivéssemos ouvindo. Lembro dos numerosos tuaregues que acompanhavam o Bolero de Ravel… Dos prelúdios líquidos e cheios de peixes de Chopin… Dos concertos atléticos de Bach… Das histórias de terror que acompanhavam o Concerto Nº 1 para piano e orquestra de Brahms… Desnecessário dizer que meu pai amava a música. Qualquer música. Colocava Mozart, Beethoven, Noel, Chico e Cartola no mesmo patamar e misturava na mesma noite eruditos e populares. Como pianista amador, chegou a compor e a dedicar a valsa Férias de Julho a mim e minha irmã.

Uma vez, quando eu tinha uns 12 anos, estava levando nosso cachorro para fazer suas necessidades na rua quando um vizinho me chamou em sua mesa na calçada de um bar. Era à noite. Educado, parei a seu lado. O sujeito começou a conversar, conversar e acabou pegando minha mão. Fugi na hora.

Contei o caso para meu pai e ele quis que eu lhe indicasse quem tinha sido. Dias depois, apontei-lhe o cara, de longe. Era um cliente de seu consultório de dentista. Meses depois, o cara foi lá consultar. Meu pai abriu seu dente, disse para o homem ficar de boca aberta e perguntou se ele conhecia seu filho, Milton, um que andava com um cachorrinho assim assado. O cara passou a suar em profusão… Meu pai perguntou se ele estava nervoso, se estava doendo muito, essas coisas. Rindo, me garantiu que fez tudo direitinho do ponto de vista odontológico. OK, acrescento que ele podia ser sádico.

Acho que meus pais se amavam. Lembro de gestos de carinho num e noutro sentido. Minha mãe – ela foi uma das primeiras dentistas mulheres formadas pela Ufrgs e sua família cruz-altense reclamava de meu pai por deixá-la trabalhar (imaginem se soubessem do resto) – referia-se a ele como um homem que só tinha um só defeito (os cavalos) e, quando ele morreu, disse-me com um olhar perdido que estava arrependida por ter recebido muito mais amor do que dera. Disse também que sempre sustentara a casa, mas que ao menos seu marido não fazia dívidas, apenas jogava dinheiro fora.

Considerável parte das minhas boas lembranças da infância e da juventude estão associadas a meu pai. Ele era um sujeito engraçado e bem-humorado que participava de tudo e era moderno o suficiente para não estabelecer distâncias. Sempre me senti seu par, fato que parecia ser um problema para os outros pais com os quais mantínhamos contato. Morreu e não lhe disse que aprendi muita coisa com ele, não lhe disse que sabia que era amado, que o amava e que a gente não falava nisso porque éramos gente comum, dessa que anda por aí cega, surda e muda, falando todo o tempo em coisas secundárias.

Foto: meu pai, minha irmã, eu e minha mãe. Pelo cabelo de minha irmã, estávamos nos anos 80

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A morte do Vassily

A morte do Vassily

O grande Vassily morreu hoje. Tinha 17 anos. Seu nome completo era Vassily Kandinsky, dado pela Elena por ser seu pintor bielorrusso preferido e por uma curiosa característica física. Ele era todo malhado, mas a ponta da cauda era inesperadamente branca. Um gato pintor.

Vassily veio ainda filhote para a Elena, lá em 2007. Eu cheguei em 2013. Éramos inimigos. Ou melhor, nos comportávamos como diplomatas de nações com uma zona em disputa: nossa amada. Ele tinha uma notável intuição para saber quando eu pretendia me aproximar da Elena e procurava chegar antes. Logo que iniciamos nossa vida a três, dei-lhe um grande susto. Foi sem intenção. Eu dormia, e quando abri os olhos, vi um tigre em cima de mim com o nariz a centímetros do meu. Não sei o que pensei. Dei um pulo de susto, mas o pulo que ele deu foi muito maior. Ele voou de cima de mim e passou uma semana dormindo na sala para se refazer daquele tremendo trauma. Eu, o problema.

Vassily foi a grande companhia da Elena. Foi o seu maior amigo no Brasil e ela está sofrendo. Estava sempre no seu colo ou pedindo coisas que obedeciam a um ritual — me dá mais ração (o pote cheio); liga a água da pia; quero colo; quero alga; não quero nada; hoje não tô bom, nem vem; quero carinho; agora vem me procurar, sua trouxa.

Eu sou um cachorreiro que nunca antes teve gatos e não entendia aquela escravidão a que minha mulher era submetida e que apenas aumentava. Um gato é um velho cheio de manias, primeiro isso, depois aquilo.

Minha relação com Vassily nunca melhorou, só piorou. Quando começaram seus problemas de saúde, era eu quem lhe dava remédios goela abaixo e, pior, dava-lhe soro. Ou seja, enfiava-lhe uma agulha nas costas, enquanto imobilizava-o por vários minutos. Desse jeito nunca pudemos nos entender. Eu chegava e ele saía, ou ia para perto da segurança da nossa mulher.

Vassily nunca precisou de tela. Ia pra praia e logo reconhecia onde podia ir. Nunca fugiu. Quando nos mudamos, logo entendeu a complexa geografia da nova casa. Frequentava o pátio de madrugada, saindo pelos mais variados caminhos, mas estava na cama sempre que um de nós estava acordado.

Mas ontem, mesmo combalido por um câncer, saiu pela janela da cozinha, se meteu pelo telhado e mergulhou na área de um apartamento desocupado. Ficou ao lado do tanque esperando a morte. Consegui a chave com a proprietária — que morava longe — entrei no apê, resgatei meu inimigo que tentava fugir novamente. Aquele capricho de ir embora — tão natural nos animais — não foi aceito por nós. E, sob protesto, desde que voltou permaneceu dentro de sua caixa de areia. Não saiu mais.

Fiz um buracão no pátio para enterrá-lo. Tô com as costas quebradas e muito triste. Já sinto a falta do meu inimigo. Nem vou falar da Elena.

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O rabo preto

Hoje, depois de levar a Elena na Ospa, passei quase todo o dia na Livraria Bamboletras. Dei umas saídas curtas. Fui pagar uma conta na lotérica, fui ao Banrisul, fui resolver um problema na Jacinto Gomes. Ah, e almocei fora, sozinho.

Quando a Elena voltou e conversamos, ela perguntou o que era aquele rabo preto na minha bunda. Não entendi nada. Pus a mão atrás e puxei uma meia social preta que estava presa no cinto. Apenas uma meia do par.

Sim, pela manhã, tinha pegado a calça de cima da cadeira de balanço. Debaixo da calça estava um par de meias.

Conclusão: dei várias voltas pela Cidade Baixa e na Livraria com um rabo preto. Depois a gente fica famoso e pensa que o motivo são nossos livros, textos e bom atendimento. Pfff, o véio do rabo preto.

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Bárbara, 30 anos

Bárbara, 30 anos

Num domingo, 25 de setembro, há 30 anos, vi a Bárbara Jardim Ribeiro pela primeira vez. Era no fim da tarde e fomos ao Parque da Redenção com nosso filho Bernardo, de 3 anos. Lá, a bolsa estourou e acabamos no hospital. Poucos minutos depois, ouvi a indignação dela por ter sido retirada do quentinho. Ela berrava de forma verdadeiramente espetacular. Toda satisfeita, a pediatra me trouxe a bebê. Lembro de ter dito Que fera, enquanto observava aquele serzinho de cabelos lisos e pretos e cara de índia. Depois ela ficou loira e crespa, depois castanha clara e crespa, cor de chá, prova de que 30 anos é muito tempo. Hoje, acho que sempre se desprende um ar feliz da Bárbara e as pessoas adoram me dizer, rindo, que conhecem ela. Como se fosse um privilégio. E é. Eu acho ela maravilhosa. É minha filha.



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Onze anos de Elena e Milton

Onze anos de Elena e Milton

Onze anos de Elena e Milton. Quando digo que, descontando uns outros, és meu primeiro amor, brinco apenas parcialmente. De certa forma é mesmo. Explico. Todo relacionamento de qualidade assim mais ou menos, um dia chega a seu topo e começa a descer. O quão íngrime é a descida depende de muitas coisas, às vezes o ângulo é tão severo que a gente desce como um carro sem freios matando um monte de coisas pelo caminho: respeito, vontade de se aproximar, tudo. Mas, onze anos depois, ainda me dá aquela súbita vontade de te abraçar mesmo quando estou longe e isto é impossível. Ou seja, devemos estar em terreno quase plano. E ontem, quando estava palestrando, eu sempre dava uma olhadinha pra ti em busca de alguma inspiração. Parece até que funcionou. Sou um bobalhão apaixonado. Eu não sei se faço bem pra ti, mas do contrário tenho convicção e quero mais onze.

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Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia

Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia

Dia desses, eu e a Elena estávamos na Academia. Eu estrebuchava numa sala e ela em outra. É fato sabido que a Elena, vestindo qualquer coisa — até mesmo as camisetas antediluvianas que usa em casa — é uma mulher muito bonita e charmosa.

Pois então ela chega até onde estou dizendo que um Sr., quando ela liberou um aparelho, beijou-lhe a mão.

Homem moderno e descolado que sou, pergunto como ele beijou. Ela repete o gesto do cidadão e detecto alguma devoção na atitude.

Como russa, ela me pergunta se aquilo era um agradecimento pela cessão do aparelho ou outra coisa.
Homem esclarecido que sou, penso em esquartejar todos os velhos, gente da minha idade, presentes no local e respondo com um sorriso que ele queria outra coisa.

— Mas recém saí do hospital, tô triste, um caco, por que ficam olhando?

Homem seguro que sou, não respondo e fico fazendo séries de abomináveis, pensando que preciso acabar com minha barriga naquele mesmo minuto.

P.S.: A Elena me corrige: ela não passou o aparelho para o seu admirador, ele foi até ela, pediu licença e beijou sua mão.

Franz Moormans (1832-1893): A corte

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