Penso que a reposição de supercraques da música brasileira simplesmente não ocorreu. Dos mais jovens, quem poderia entrar naturalmente nesta lista? Talvez André Mehmari, Lenine, Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro e Chico César. Há outros?
Caetano Veloso (7 de agosto de 1942 — idade 79 anos)
Carlos Lyra (11 de maio de 1933 — idade 88 anos)
Chico Buarque (19 de junho de 1944 — idade 77 anos)
Edu Lobo (29 de agosto de 1943 – idade 78 anos)
Egberto Gismonti (5 de dezembro de 1947 — idade 74 anos)
Elomar (21 de dezembro de 1937 — idade 84 anos)
Francis Hime (31 de agosto de 1939 — idade 82 anos)
Gilberto Gil (26 de junho de 1942 — idade 79 anos)
Guinga (10 de junho de 1950 — idade 71 anos)
Hermeto Paschoal (22 de junho de 1936 — idade 85 anos)
Ivan Lins (16 de junho de 1945 — idade 76 anos)
João Bosco (13 de julho de 1946 — idade 75 anos)
João Donato (17 de agosto de 1934 — idade 87 anos)
Jorge Ben Jor (22 de março de 1939 — idade 82 anos)
Marcos Valle (14 de setembro de 1943 — idade 78 anos)
Martinho da Vila (12 de fevereiro de 1938 — idade 83 anos)
Milton Nascimento (26 de outubro de 1942 — idade 79 anos)
Paulinho da Viola (12 de novembro de 1942 — idade 79 anos)
Paulo César Pinheiro (28 de abril de 1949 — idade 72 anos)
Rita Lee (31 de dezembro de 1947 — idade 74 anos)
Tom Zé (11 de outubro de 1936 — idade 85 anos)
Toquinho (6 de julho de 1946 — idade 75 anos)
No início de 2018, assisti a um show meio improvisado de Guinga e Dudu Sperb no StudioClio. Guinga tinha chegado à Porto Alegre naquela mesma tarde e eles tinham ensaiado apenas uma vez. A dupla se observava bem para entrar junto, mas não ocorreram problemas. Era clara a afinidade, a apresentação mais parecia um reencontro. Foi realmente um arraso.
Depois, eles repetiram a dose em mais três espetáculos. Foram espetáculos mesmo, com a voz de Dudu cantando as melodias do tremendo compositor e violonista que é Guinga.
Agora, a Bamboletras recebeu o CD Navegante — Dudu Sperb recebe Guinga. Acabo de ouvi-lo. Ele traz as belas interpretações de Dudu com as harmonias de Guinga ao violão. Trata-se de uma verdadeira joia. No disco, estão algumas das melhores canções do compositor carioca como Bolero de Satã (imortalizada por Elis), Você, Você (de Guinga e Chico Buarque, que apareceu no disco As Cidades, do último), Catavento e Girassol (cantada originalmente por Leila Pinheiro, creio), Silêncio de Iara, Senhorinha e o fado clássico, adoradíssimo na minha casa, Navegante. Como se não bastasse, ainda há uma homenagem à Marielle Franco: Nobreza da Maré.
FAIXA A FAIXA POR DUDU SPERB
1 – Sete estrelas (Guinga/Aldir Blanc)
Ao ritmo de uma toada de Guinga, com essas palavras de Aldir Blanc, abrimos o CD: “Eu canto a música da gente quando nua e crua…”. Além de traduzirem um pouco o espírito de outras parcerias desses dois compositores, elas representam um perfeito preâmbulo para o que está por vir, para a audição do disco. Mais adiante, a letra diz: “toda mentira minha é verdadeira”. Se pensarmos que as palavras “nua” e “crua” podem ser associadas ao conceito de verdade, é igualmente possível se compreender que essa veracidade se dá, também, através da “mentira” da canção. Ou seja, a música (que não somos nós, especificamente, mas que é uma manifestação nossa) traz em si a possibilidade da gente “ser” e “existir” de diversas formas através da interpretação. Pra mim, isso é um pouco como se dizer: “essa é a nossa música e através dela e de sua fantasia nós nos desvelamos”. E tudo que as pessoas ouvirão nesse disco tem como fundamento essa premissa da arte de ser uma “mentira” portadora de uma “verdade”.
2 – Canção do Lobisomen (Guinga/Aldir Blanc)
Essa é uma canção que, em música e letra, me parece uma boa introdução ao universo de Guinga. Sombria e bela, alude à fera incorporada à nossa humanidade que nos faz, por vezes, destruir aquilo que mais queremos ou necessitamos, que carrega o veneno sem entender por que e sem saber como se desvencilhar, se curar disso. Uma obra perene, mas que, especialmente nesse momento, se apresenta ainda mais ampliada em seu sentido.
3 – Choro pro Zé (Guinga/Aldir Blanc)
Esse choro com ares de jazz foi feito em homenagem ao grande saxofonista Zé Nogueira, com uma letra que reflete sobre a simbiose da música com a vida e do músico com seu instrumento. Mesmo sutilmente, nessa faixa cantei buscando colocar na voz ainda mais a entoação de um instrumento de sopro, como um sax.
4 – Catavento e girassol (Guinga/Aldir Blanc)
Outro clássico, e uma das canções mais conhecidas e admiradas de Guinga, Catavento e girassol éum exemplo perfeito de excelência, de beleza e de sofisticação. A exemplo do Quereres de Caetano, esse choro-canção versa sobre os desencontros dos desejos, das condutas, do jeito de ser de duas pessoas. Aqui, entretanto, essas oposições se colocam talvez de forma um tanto mais ambígua por serem colocadas mais singularmente como complementares. Exatamente como o que ocorre num reflexo no espelho: a imagem refletida sendo, ao mesmo tempo, o oposto e o arremate. E sua melodia, que vai e volta, inquietante e dramática, é marcante e sublime. Para mim, que sou barítono, os tons de muitas obras de Guinga às vezes beiram os limites da voz. A exemplo de “Canção do Lobisomem” e “Neblina e flâmulas”, entre outras, essa foi uma das canções do CD em que foi necessário atingir regiões bastante graves, um desafio técnico que resultou num ganho interpretativo: fiquei contente com as zonas sombrias da voz que alcancei e pelo quanto pude me adequar a elas para trabalhar a emoção. Me parece que, dessa forma, essas composições ganharam outros contornos.
5 – O silêncio de Iara (Guinga/Luis Felipe Gama)
Desde que a ouvi, no disco Noturno Copacabana, me encantei com esse belíssimo e singular choro-canção que alude, de forma sutil, à mítica senhora das águas, a sereia do folclore brasileiro. Ela possui em sua melodia algo de soporífico, de vai e vem, ao que a letra se amolda de forma hábil e elegante.
6 – Bolero de Satã (Guinga/Paulo César Pinheiro)
Foi através de Bolero de Satã, interpretada por Elis Regina e Cauby Peixoto, em 1979, que tomei conhecimento de Guinga. Lembro do quanto fiquei impressionado e encantado ao ouvi-la. Por esse motivo, pelo que ela teve de primordial como introdução ao universo do compositor, essa era uma canção que não poderia faltar no CD: gravei-a porque adoro a canção, mas sobretudo como uma homenagem a Elis, a Cauby e ao próprio Guinga.
7 – Ilusão real (Guinga/Zé Miguel Wisnik)
Outro choro-canção, misterioso, que desafia o cantor com sua melodia complexa. A letra “em aberto”, de Wisnik, permite inúmeras percepções, interpretações. Estão aqui reunidos, numa canção, dois dos principais compositores da atualidade, que estão entre os meus preferidos, e em cujas obras eu me perco e me encontro.
8 – Nobreza da Maré (Guinga/Anna Paes/Simone Guimarães)
Única obra inédita do CD, Nobreza da Maré é uma rara parceria de Guinga com outras duas compositoras. Simone Guimarães já havia feito letras para algumas de suas melodias, mas creio ser essa a primeira vez que ele, além de dividir a autoria com duas mulheres, ainda compartilha a composição da música com uma delas, no caso, com Anna Paes. Isso é ainda mais interessante pelo fato da canção também prestar homenagem a uma mulher: a vereadora Marielle, assassinada há um ano no Rio de Janeiro. Um lindo e comovente choro que me foi apresentado pelo próprio Guinga, em 2018, quando chegamos a interpretá-la, meio de improviso, num show do StudioClio.
9 – Avenida Atlântica (Guinga/Thiago Amud)
Me encantei com esse samba-canção ao ouvi-lo numa gravação de Guinga com o clarinetista italiano Gabrielle Mirabassi. Na mesma hora perguntei a Guinga se tinha letra. Felizmente havia uma letra encantadora de Thiago Amud, outro parceiro constante do mestre carioca. Trata-se de uma canção suave e lírica como o vai e vem das ondas, e outra linda homenagem ao Rio de Janeiro.
10 – Nonsense (Guinga/Paulo César Pinheiro)
Essa composição é uma preciosidade das preciosidades. E pensar que Guinga e Paulo César Pinheiro a conceberam quando tinham por volta de 20 anos, apenas… Sua narrativa de um suicídio é feita em frases que, por serem articuladas de formas completamente inusuais, dão uma certa sensação de falta de sentido. Porém, os significados de fato estão sendo explicitados ali; basta ouvi-la uma segunda ou uma terceira vez, se debruçando mais sobre a letra. Depois de cantada uma vez inteira, a narração retorna, completa, com a mesma letra em português, mas com uma pronúncia forçadamente francesa, o que faz ampliar ainda mais essa sensação de nonsense, de não discernimento, de falta de lógica. As palavras em português “entoadas em francês”, promovem então uma desarticulação ainda maior, deslocando, misturando, escondendo ou revelando significados, aqui e ali. E a melodia dessa valsa que vai e volta, que avança e que novamente é retomada, se projeta de forma espiralada como num voo desnorteado, sugerindo ela também uma ação incompleta ou uma indecisão de chegar ao fim.
11 – Neblina e flâmulas (Guinga/Aldir Blanc)
Essa é uma canção que nos apresenta um Aldir Blanc mais lírico do que o usual. Me apaixonei por ela na primeira vez em que a ouvi, no CD que Leila Pinheiro gravou com as canções de Guinga. Sobretudo a melodia, sempre me deu vontade de chorar. Novamente os graves se impuseram, e eu imergi numa interpretação mais densa, fazendo sobressair um certo sentido de perdição que ela revela. Essa foi a única composição que, em nossos poucos encontros para definir o repertório do show, Guinga cogitou subir o tom. Mas eu me propus a cantá-la assim, no tom original como as demais canções, seguindo a navegar por suas profundezas. E adorei o resultado.
12 – Você, você (Guinga/Chico Buarque)
A única parceria desses dois mestres cariocas só poderia resultar nessa maravilha. Letra e música são tão misteriosas, tão perfeitas em si mesmas e em seu casamento, que foi um encantamento interpretá-la. E, para minha própria surpresa, essa foi uma das execuções que saíram mais de pronto. Foi só eu me deixar levar, seduzido por ela, por seu misto de devaneio e realidade, de vigilância e sono.
13 – Senhorinha (Guinga/Paulo César Pinheiro)
Creio que, junto com Bolero de Satã, essa é a canção mais conhecida de Guinga. E ela é também, possível e provavelmente, a mais amada pelo público, uma modinha que alia delicadeza e beleza em cada nota de sua primorosa melodia a uma letra plena do encanto e da sofisticação de uma história de contos de fadas. Há muitos anos, eu já havia registrado essa canção, apenas de modo demostrativo, para um outro projeto de disco que não chegou a acontecer. Agora, com sua bênção e tendo-o como guia, finalmente pude interpretá-la com Guinga.
14 – Navegante (Guinga/Paulo César Pinheiro)
Outra composição da juventude de Guinga e Paulo César Pinheiro, esse fado é uma beleza que, se não soubéssemos, julgaríamos ter sido feita por compositores mais maduros e experientes. Depois de todas as histórias narradas nas canções anteriores, essa me parecia a obra perfeita pra fechar o disco. Somos todos navegadores e seguimos rumos, queiramos ou não. Mas justamente aqui, imersos nesse universo de canções, o que fazemos, mais do que qualquer coisa, é ir em busca de emoção, soltos na imensidão. E o disco, que começou com uma espécie de testemunho sobre a música, termina ecoando a palavra coração.
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Quem conhece sabe que Guinga (Rio de Janeiro, 1950) é um dos maiores compositores brasileiros. Artista de longa e brilhante trajetória, excepcional violonista com vários discos gravados, tem obra reconhecida, tanto no Brasil como no exterior. Teve canções gravadas por cantoras como Elis Regina, Clara Nunes e Leila Pinheiro. Mais recentemente, vem atuando ao lado de Mônica Salmaso, Maria João, Esperanza Spalding, André Mehmari, Francis Hime, Gabriele Mirabassi e de grupos como o Quinteto Villa-Lobos, entre outros. Não, não é pouco. E, para completar, sobre suas melodias se debruçaram alguns dos maiores letristas brasileiros, como Chico Buarque, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, etc.
Desde 1988, Dudu Sperb (Porto Alegre, 1961) tem trabalhos como intérprete em projetos com músicos como Paulo Dorfman, Adão Pinheiro, Cau Karam, Toneco da Costa, Fernando do Ó, Giovani Berti, Maurício Marques, Arthur de Faria, Michel Dorfman, Vagner Cunha, Nico Bueno e Luiz Mauro Filho, entre outros. Atuou junto a artistas como Zé Miguel Wisnik, Ná Ozzetti e Milton Nascimento e apresentou-se em países como França, Holanda, Bélgica, Portugal e Uruguai. Possui quatro CDs gravados.
Já se passaram mais de três dias e eu ainda não desci. O recital de Mônica Salmasoe André Mehmari no StudioClio tirou-nos do chão de tal forma que ainda estou flutuando em perfeito conforto eufônico. Escrevo ainda com alguns centímetros a mais. Na saída do recital, ficamos conversando com Mônica e Mehmari como se não houvesse amanhã. Mônica pediu um Suco de Coruja, isto é, a cerveja Baca, da Coruja, e Mehmari disse que nunca a tinha visto com um copo daqueles na mão. Fotografou-a. Então, achamos — eu, Elena Romanov, Catia Nunes, Norberto Flach, Rovena e Francisco Marshall — que tínhamos realmente presenciado algo inédito.
Engano. Esta é a quarta vez que assisto um show de Mônica e foi sempre assim: voz linda, cheia de insuspeitados timbres, afinação perfeita, impecável senso de estilo e uma escolha de repertório de extremo bom gosto. E sempre com diferentes canções. Artista na mais gloriosa acepção do termo, ela sempre consegue criar um clima de tal eletricidade no ar que a gente sai da sala cuidadosamente para que nada estrague a sensação. Com simplicidade, ela se autodenomina uma “carola da canção”. Quando termina, nada mais natural do que aproximar-se de Mônica para garantir que não foi imaginação e que a moça que nos leva às alturas é mesmo de verdade. E conhecemos uma pessoa acessível e muito disposta a conversar — justo com a gente!
Haverá mais oportunidades para ver Mônica. Afinal, é só aqui no nosso Mercado Público que tem a rapadura preparada com melado enrolada em palha de milho que a avó dela ama.
E, para não esquecer, aí está a lista de canções do show:
Camisa Amarela (Ary Barroso)
Acaçá (Dorival Caymmi)
Tonada da Luna Llena (Simon Diaz)
Milagre (Dorival Caymmi)
Senhorinha (Guinga / Paulo C. Pinheiro)
Doce na Feira (Jair do Cavaquinho)
Pra que discutir com madame (Janet Almeida / Haroldo Barbosa)
Insensatez (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)
Saruê (Sérgio Santos / Paulo Cesar Pinheiro)
Sinhá (Chico Buarque/João Bosco)
Pés no chão (Mario Laginha/Maria João)
Morro Velho (Milton Nascimento)
Modular Paixões (André Mehmari/Luiz Tatit)
Espelho (André Mehmari)
Tentar dormir (André Mehmari/Luiz Tatit)
Casamiento de negros (Rec. adap.Violeta Parra)
Baião de Quatro Toques(José Miguel Wisnik)
Canoeiro (Dorival Caymmi)
P.S. — O StudioClio é perfeito para este tipo de artista. Sala aconchegante e de boa acústica, a melhor de Porto Alegre.