Eu (ou)vi Mônica Salmaso cantar novamente

Eu (ou)vi Mônica Salmaso cantar novamente
Mônica Salmaso e eu, todo bobo | Foto: Norberto Flach
Mônica Salmaso e eu, todo bobo | Foto: Norberto Flach

Já se passaram mais de três dias e eu ainda não desci. O recital de Mônica Salmaso André Mehmari no StudioClio tirou-nos do chão de tal forma que ainda estou flutuando em perfeito conforto eufônico. Escrevo ainda com alguns centímetros a mais. Na saída do recital, ficamos conversando com Mônica e Mehmari como se não houvesse amanhã. Mônica pediu um Suco de Coruja, isto é, a cerveja Baca, da Coruja, e Mehmari disse que nunca a tinha visto com um copo daqueles na mão. Fotografou-a. Então, achamos — eu, Elena Romanov, Catia Nunes, Norberto Flach, Rovena e Francisco Marshall — que tínhamos realmente presenciado algo inédito.

Engano. Esta é a quarta vez que assisto um show de Mônica e foi sempre assim: voz linda, cheia de insuspeitados timbres, afinação perfeita, impecável senso de estilo e uma escolha de repertório de extremo bom gosto. E sempre com diferentes canções. Artista na mais gloriosa acepção do termo, ela sempre consegue criar um clima de tal eletricidade no ar que a gente sai da sala cuidadosamente para que nada estrague a sensação. Com simplicidade, ela se autodenomina uma “carola da canção”. Quando termina, nada mais natural do que aproximar-se de Mônica para garantir que não foi imaginação e que a moça que nos leva às alturas é mesmo de verdade. E conhecemos uma pessoa acessível e muito disposta a conversar — justo com a gente!

Haverá mais oportunidades para ver Mônica. Afinal, é só aqui no nosso Mercado Público que tem a rapadura preparada com melado enrolada em palha de milho que a avó dela ama.

E, para não esquecer, aí está a lista de canções do show:

Camisa Amarela  (Ary Barroso)
Acaçá (Dorival Caymmi)
Tonada da Luna Llena (Simon Diaz)
Milagre (Dorival Caymmi)
Senhorinha (Guinga / Paulo C. Pinheiro)
Doce na Feira (Jair do Cavaquinho)
Pra que discutir com madame  (Janet Almeida / Haroldo Barbosa)
Insensatez (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)
Saruê (Sérgio Santos / Paulo Cesar Pinheiro)
Sinhá (Chico Buarque/João Bosco)
Pés no chão (Mario Laginha/Maria João)
Morro Velho (Milton Nascimento)
Modular Paixões (André Mehmari/Luiz Tatit)
Espelho (André Mehmari)
Tentar dormir (André Mehmari/Luiz Tatit)
Casamiento de negros  (Rec. adap.Violeta Parra)
Baião de Quatro Toques(José Miguel Wisnik)
Canoeiro (Dorival Caymmi)

P.S. — O StudioClio é perfeito para este tipo de artista. Sala aconchegante e de boa acústica, a melhor de Porto Alegre.

Foi num 16 de setembro que o tenente Bianchi reconheceu Víctor Jara

Uma morte de violência inaudita no Estádio Chile

Publicado em 16 de setembro de 2012 no Sul21

É muito difícil encontrar um adjetivo para qualificar a morte de Víctor Jara. Hedionda, aterradora, as palavras parecem fracas quando comparadas aos fatos. Sua morte foi de inverossímil maldade. Uma das formas de se descaracterizar um tópico é recorrer à hipérbole, que é a intensificação do mesmo até o inconcebível, até o paroxismo. Pois a morte de Jara confronta este conceito tão caro aos lógicos. O inconcebível exagero do fato não o descaracteriza, apenas o intensifica.

Na manhã de 12 de setembro de 1973, Jara foi detido, juntamente com milhares de chilenos. No dia 16 de setembro de 1973, cinco dias após o golpe militar, ele encontrava-se preso no Estádio Chile, atual Estádio Víctor Jara (não confundir com o Estádio Nacional do Chile, onde também havia presos). Trata-se de um ginásio multi-esportivo. Mas passemos a palavra ao jornalista brasileiro Paulo Cannabrava Filho, autor de No Olho do Furacão:

Aspecto exterior do atual Estádio Víctor Jara | Foto: Mono González

Em um dado momento, Víctor desceu para a plateia e se aproximou de uma das portas por onde entravam os detidos. Ali topou – cara a cara – com o comandante do campo de prisioneiros que o olhou fixamente e fez o gesto mímico de quem toca um violão. Víctor assentiu com a cabeça, sorrindo com tristeza e ingenuidade. O militar sorriu, contente com sua descoberta. Levaram Víctor até à mesa e ordenaram que pusesse suas mãos em cima dela. Rapidamente surgiu um facão. Com um só golpe, cortaram seus dedos da mão esquerda e, com outro, os da mão direita. Os dedos cairam no chão de madeira, enquanto o corpo de Víctor se movia pesadamente. Depois choveram sobre ele golpes, pontapés e os gritos: ‘canta agora… canta…’ (…) De improviso, Víctor se levantou trabalhosamente e, com o olhar perdido, dirigiu-se às galerias do estádio… fez-se um silêncio profundo. E então gritou:

— Vamos lá, companheiros, vamos fazer a vontade do senhor comandante.

Firmou-se por alguns instantes e depois, levantando suas mãos ensanguentadas, começou a cantar o hino da Unidade Popular (Coligação de partidos de esquerda que apoiavam o governo de Allende), a que todos fizeram coro. Aquele espetáculo era demasiado para os militares. Soou uma rajada e o corpo de Víctor começou a se dobrar para a frente, como se fizesse uma longa e lenta reverência a seus companheiros. Depois caiu de lado e ficou ali estendido.

 

O tenente Edwin Dimter Bianchi, também conhecido como “O Príncipe” | Foto: Grupo Funa

O responsável pela identificação e morte de Jara foi o tenente Edwin Dimter Bianchi. A exumação do corpo de Jara, realizada em junho de 2009, não confirmou o corte dos dedos — o texto de Cannabrava é anterior ao fato. Na verdade, ele provavelmente teve suas mãos esmagadas por coronhadas dos soldados. Havia múltiplas fraturas nos punhos e mãos, além do corpo perfurado por 44 balas. Múltiplos relatos confirmam a veracidade do restante dos acontecimentos. Ele, de forma desafiadora, efetivamente cantou parte do hino da Unidade Popular até o momento dos tiros. Só em 1990, o Estado chileno, através da Comissão da Verdade e da Reconciliação, reconheceu que Víctor Jara foi assassinado a tiros no dia 16 de setembro de 1973 no Estádio Chile e depois teve seu corpo lançado num matagal. Identificado pela esposa. Seus restos foram enterrados no Cemitério Geral de Santiago do Chile.

O homem

Víctor Jara era cantor popular, compositor, educador, diretor de teatro, poeta e ativista político. Ele fazia parte do movimento Nueva Canción Chilena que tinha em Jara e Violeta Parra (1917-1967) seus principais intérpretes. A Nueva Canción ganhou enorme popularidade durante o governo da Unidade Popular — governo de Salvador Allende — , que foi ativamente apoiado por Jara.

Jara em foto tirada para a contracapa de um de seus discos | Foto: Divulgação

Víctor nasceu em 1932 e foi o primeiro filho dos camponeses Manuel Jara e Amanda Martínez. O pai era analfabeto e não queria que seus filhos estudassem. Alcoólatra, acabou por abandonar a família. Amanda criou Víctor e seus quatro irmãos sozinha, insistindo que todos eles estudassem. Amanda — uma mestiça com raízes mapuche, vinda do sul do país — não era analfabeta. Era uma autodidata em música, tocava violão, piano e cantava em casamentos e funerais. Ela conseguiu progredir da economicamente, de modo a manter a família com dignidade, mas como não ficava muito tempo em casa, deixava o violão disponível para o pequeno Víctor e seu amigo e parceiro Omar Pulgar. Em 1950, Amanda mãe morreu repentinamente. Ato contínuo, Víctor Jara entrou para um seminário.

Foi uma decisão muito importante entrar para o seminário. Quando penso agora, acho que fiz aquilo por razões íntimas e emocionais, pela solidão e o desespero com um mundo que até aquele momento tinha sido sólido, simbolizado por um lar e o amor da minha mãe. Eu já estava envolvido com a Igreja, e, naquela altura, procurei refúgio nela. Então pensava que esse refúgio iria guiar-me até outros valores e ajudar-me a encontrar um amor diferente e mais profundo, que porventura compensasse a ausência do amor humano. Julgava que talvez achasse esse amor na religião, dedicando-me ao sacerdócio.

Te recuerdo Amanda, canção de Víctor Jara dedicada a seus pais:

Dois anos mais tarde, em 1952, abandonaria o seminário, mas lembraria positivamente do canto gregoriano e da liturgia. Ingressou na universidade, onde estudou atuação e direção de teatro. Sua biografia indica hesitações entre a música e o teatro até 1957. Ele pensava que tinha que optar por uma das carreiras, quando Violeta Parra o convenceu a manter paralelamente ambas as carreiras. Pelas excursões e tempo das temporadas, pode-se dizer que as peças de teatro que dirigia não eram nada insatisfatórias. Em 1959, excursionou pela América espanhola com Parecido a la Felicidad de Alejandro Sieveking. No mesmo ano, gravou seu primeiro disco de música folclórica, Dos Villancicos. E seguiu as duas carreiras, apesar de que a música foi pouco a pouco tomando mais seu tempo, assim como a política. Até a vitória da Unidade Popular, em 1970, foram cinco LPs e, até 1973, mais três. Depois disso foram muitos os discos ao vivo e as edições póstumas.

Victor Jara: música e poesia revolucionária latino-americana. Herói da resistência à ditadura militar no Chile

Sua atuação política durante o governo Allende teria justificado o ódio do tenente Bianchi. Era uma época em que poucos artistas eram indiferentes à política. Thomas Mann dizia que “Só a indiferença é livre. O que tem caráter distintivo nunca é livre; traz a marca do próprio selo; é condicionado e comprometido”. No início dos anos 70, ser “indiferente” ou “alienado” era falha grave. Jara nunca chegou perto de ser um apolítico. Foi nomeado embaixador cultural do Governo da Unidade Popular, viajou à Cuba e à União Soviética, participou de muitos atos durante as eleições de 1973, dirigiu a homenagem a Pablo Neruda — membro do Partido Comunista Chileno — quando da obtenção do Prêmio Nobel. Ou seja, naquele 16 de setembro, Bianchi viu um artista perfeitamente identificado com o governo que caíra.

Primeiro volume de uma coleção da Caratula Discos dedicada a Nueva Canción Chilena

A Nova Canção Chilena

A Nova Canção Chilena foi um movimento mais amplo do que seu nome sugere, pois não se tratava apenas de uma questão de abrangência musical. A intenção era a de recuperar e traduzir as raízes culturais do Chile e dos povos originários da América Latina. Apesar de ter a música folclórica como carro-chefe, a Nueva Canción abarcava também o teatro, a dança, as artes plásticas e tudo o que fosse cultura.

Grupos universitários passaram a estudar as manifestações da cultura popular chilena e andina. Como consequência, sugiram grupos como o Quilapayun, do qual Jara foi diretor artístico, e o Inti-Illimani. Víctor Jara divulgava o canto mapuche, o canto quéchua, o canto aymará,  e a fronteira entra a política e as artes foram extintas, tanto que a Juventude Comunista financiava gravações de discos e espetáculos dos artistas do movimento. A Nova Canção Chilena, que começou com os artistas e cresceu nas universidades, foi a trilha sonora da revolução, sendo adotada pelos trabalhadores.

Desde o início do século XX, os artistas chilenos imiscuíram-se na política, é uma tradição do país exprimir o político através da cultura. Dentro desta tradição, o trabalho de Víctor Jara foi exemplar: sua obra sempre emergiu da própria vida, fator que a faz universal e que, neste caso específico, uma das maiores representantes das vítimas da ditadura.

El Cigarrito, de Víctor Jara:

Edwin Bianchi durante a Funa | Foto: Grupo Funa

A funa

Funa (do mapudungun Funa, que significa podre, ou Funan, podridão) é o nome dado no Chile a uma manifestação de repúdio público contra uma pessoa ou grupo. Normalmente é utilizado em protestos contra os participantes de atos de violações dos direitos humanos durante o regime militar, e geralmente ocorre na casa ou no local de trabalho dos autores. É nosso “esculacho”, talvez se pudesse dizer.

Edwin Dimter Bianchi, também conhecido como “El Príncipe”, tenente do exército chileno em 1973, trabalhava impune e tranquilamente no Ministério do Trabalho do Chile em 2007, no governo de Bachelet. La Funa foi até lá e o surpreendeu. Ele foi demitido e hoje responde a processo. Vale a pena assistir o pequeno filme abaixo. Inicia comicamente contrastando James Bond e a manifestação lá fora mas, a partir dos 3min20, fica muito sério.

Clube da Esquina, um jovem aos 40 anos

Publicado originalmente no Sul21 em 1º de maio de 2012

Clube da Esquina (1972). Clique para ampliar.

A capa de Clube da Esquina, fundamental álbum duplo de Milton Nascimento e Lô Borges, que completou 40 anos no mês de abril deste ano, era enganadora. Nada poderia ser mais despojada do que a fotografia dos dois meninos ao lado. Durante muito tempo pensou-se que era uma foto da infância de Bituca e Lô — de Milton Nascimento e seu parceiro Lô Borges. Não. É uma foto de Tonho e Cacau, clicados pelo  fotógrafo Cafi (Carlos da Silva Assunção Filho) a caminho da fazenda da família de um dos letristas do disco, Ronaldo Bastos. Eles nunca mais foram reencontrados pelos autores do disco e pelo fotógrafo. Apenas no mês passado, o jornal o Estado de Minas colocou-se em campo atrás da dupla. Após mais de 50 consultas no entorno da cidade fluminense de Nova Friburgo, sempre com o disco de vinil na mão, os repórteres Ana Clara Brant e Carlos Marcelo chegaram à dupla, que ainda reside nas redondezas.

Ouvindo-se o disco hoje, ele impressiona por vários motivos e gera alguma incompreensão, a começar pelo mais datado dos questionamentos: por que a maioria dos críticos da época o destroçaram? Pensando retrospectivamente na música que havia na época, só podemos colocar Clube da Esquina ao lado dos trabalhos de Caetano, Gil e dos Mutantes. E mais: num contexto onde ainda eram comuns gravações sem o menor apuro técnico, o disco de Milton e Lô estava atualizado não apenas com a qualidade dos trabalhos dos Beatles e do rock progressivo do exterior, mas com a irreverência dos Mutantes, ao menos no âmbito dos arranjos. E ainda mais: ele significava um passo adiante ao saltar sobre os ombros da bossa nova e da MPB para ver mais adiante. Tão adiante que, ao ouvirmos o disco hoje, não achamos que esteja entrando na quinta década.

Milton e Lô Borges compondo na sala da casa dos pais de Lô, em BH | museuclubedaesquina.org

Ele vem de uma época bem diferente da atual. Os discos de vinil eram caros e a maioria das pessoas comprava um ou dois discos por mês. Como disse o jornalista e escritor Luiz Biajoni, naquela época, antes do surgimento dos CDs e da digitalização da música, nós “economizávamos uma grana suada para comprar um bolachão de vinte e poucos minutos de cada lado a fim de escutá-lo um mês inteiro, pois a grana para o próximo disco só pingaria no mês seguinte”. Segundo Biajoni, esta atenção ao artefato cultural tornava mais significativos os trabalhos dos músicos, principalmente se comparada com a verdadeira “Síndrome de Babel” que hoje nos deixa armazenar milhares de discos num computador para ouvi-los sem maior carinho. Como Clube da Esquina era um álbum duplo, ele requeria um investimento dobrado — um investimento de dois meses, se pensarmos em como comprávamos discos na época —  e era um considerável objeto de cobiça. Tal fato reforçava em muito o caráter mítico do disco. Poucos eleitos o possuíam em casa (a não ser que fossem filhos — caso deste comentarista — de um pai melômano e de ouvidos abertos). Então, ele circulava muito em fitas cassete, depois do proprietário dizer com ar casual: “Eu tenho o disco em casa. Se vocês quiserem, posso gravar”.

A surpresa deste disco de Milton Nascimento era a presença de Lô Borges como co-autor. Afinal, Milton já tinha quatro discos gravados e uma firme reputação como cantor e compositor. Era o autor de Travessia, de Morro Velho e de alguns outros sucessos. Repentinamente, ele fez à gravadora Odeon dois pedidos quase escandalosos: o de gravar um álbum duplo e o de dar a parceria do álbum ao desconhecido Lô Borges. “Eu era um menino, aquilo era uma novidade completa em minha vida porque eu não tinha nem carreira musical. Era um iniciante, não sabia nem se queria ser um músico profissional. Minha única credencial era a de ser co-autor de Para Lennon e McCartney”, comenta Lô.

Porém, Milton Nascimento estava determinado a gravar Clube da Esquina de qualquer maneira e de não alterar o projeto, segundo Lô Borges: “Quando o Milton fez o convite-convocação, a gravadora ainda nem tinha topado a gravação do disco. Ele tinha um contrato com a Odeon e foi logo dizendo que, se não topassem fazer a coisa,  procuraria outro grupo para oferecer o projeto”. Havia também a questão familiar. Lô tinha 18 anos e precisaria ir ao Rio de Janeiro gravar o disco. “Estávamos debaixo de uma ditadura barra pesada. Minha mãe não queria que eu fosse, eu viajei meio rompido com a família. Só depois eles perceberam que era algo significativo na minha vida. Era aquele terror da ditadura, né? Três ou quatro pessoas morando juntas em uma casa já eram consideradas subversivas”, diz.

E foram morar na praia de Piratininga, em Niterói. “Milton ficava num quarto compondo, eu ficava noutro e o Beto Guedes circulando de quarto em quarto para ver o que o Bituca estava produzindo e o que eu estava fazendo”, recorda-se. “Eu era meio hippie, o Milton era mais politizado”.

Show no Clube Trespontano na época da composição de Travessia” (Três Pontas - MG) | museuclubedaesquina.org

O resultado foi um disco de referência para músicos e surpreendente para os ouvintes até hoje. Tantas daquelas canções foram regravadas por outros artistas que o Clube da Esquina mais parece uma antologia e não a produção de um artista em um período limitado de sua vida; isto é, não parece um disco rotineiro. Das 21 canções do álbum duplo, várias foram regravadas e estão na memória dos que ouvem MPB. Por exemplo, no mínimo Tudo que você podia ser, Cais, O trem azul, Cravo e Canela, San Vicente, Um girassol da cor do seu cabelo, Paisagem da JanelaMe deixa em paz, Nada será como antes, Saídas e bandeiras e Clube da Esquina Nº 2, são onze canções frequentes em rádios de bom nível e em bares idem. Boa parte delas fazem parte da memória comum de música brasileira presente em nossos cérebros.

Mas o que diferencia este disco de seus antecessores? Por que , além das razões que elencamos, ele é tão cultuado? Que novidades traz?

Em primeiríssimo lugar, traz a qualidade de Milton Nascimento como compositor. E não foi um caso único em sua carreira. Naqueles anos 70, Milton produziu maravilhas, uma atrás da outra. Era um artista sofisticado. Tanto que depois criou o altamente experimental Milagre dos Peixes, fruto de uma mente inquieta e dos problemas que tinha com a Odeon, e depois os impecáveis Minas, Geraes, Clube da Esquina Nº 2 (outro álbum duplo), Sentinela, Caçador de mim, ou seja, se o Clube não foi o caso único da produção de grande música na carreira de Milton, foi o primeiro.

Divulgação

Em segundo lugar, a diversidade. As fontes que Milton Nascimento — digamos claramente que Clube da Esquina é muito mais Milton que Lô — bebia. O caldeirão é grande, grosso e complexo. Na época, todos ouviam Beatles sem parar e Milton (e também Lô), faziam confessadamente o mesmo. Mas Milton aprofundou a influência do jazz que a Bossa Nova já apresentava e colocou uma batida latino-americana, chegando depois a cantar músicas com Mercedes Sosa, além de interpretar Violeta Parra, Victor Jara e os cubanos Pablo Milanes e Silvio Rodríguez. E não é só: há a presença do folclore a da religiosidade mineira.

Em terceiro lugar, a qualidade dos músicos, a presença de solos instrumentais — tão raros naquela época — e o uso de orquestra (como em Um Girassol da Cor do Seu Cabelo) quando estavam começando a aparecer os malfadados, apesar de econômicos, teclados.

Para completar, a repercussão do trabalho foi amplificada por ninguém menos do que Elis Regina, que tinha em Milton seu compositor preferido, no que era correspondida como cantora. Apesar de Milton ser um imenso intérprete, a partir do Clube da Esquina, passou a lançar suas canções com outros artistas como Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Chico Buarque, Simone, Clementina de Jesus, Gilberto Gil, Beto Guedes, Herbie Hancock, Paul Simon, Peter Gabriel, etc. Então, muitos de seus trabalhos posteriores eram coletâneas de canções já divulgadas, o que diminuiu a importância destes discos, pois as canções se tornavam conhecidas por outras vias.

Finalizando esta lista de razões e elogios ao disco, há o fato de Clube da Esquina ser um nome de disco, mas também de um movimento. Espécie de Tropicália mineira, o Clube da Esquina era formado por Milton, os irmãos Borges (Lô, Márcio e Marilton), Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Tavinho Moura, Wagner Tiso, Beto Guedes, Flávio Venturini, Toninho Horta, e os integrantes do 14 Bis.

Aliás, 1972 teve uma safra de discos talvez (um pouco) menores, mas também extraordinários. É o ano de Acabou Chorare, dos Novos Baianos;  de Expresso 2222, de Gil; de mais um tremendo disco de Elis Regina, chamado, para variar, Elis; de Transa, de Caetano Veloso… Um grande ano para a música brasileira, mesmo sob a ditadura.

O CD é difícil de encontrar? Nem tanto, principalmente fora do país (clique no link e observe a avaliação dos visitantes da Amazon). Os Clubes da Esquina 1 e 2 estão à venda em sites estrangeiros, como a citada Amazon.com, por exemplo, pois recentemente o estúdio Abbey Road, de Londres, remasterizou tudo.

Abaixo, a relação de canções do álbum:

Lado Um

1 “Tudo Que Você Podia Ser” (Lô Borges, Márcio Borges) – 2:56
Interpretação: Milton Nascimento
2 “Cais” (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) – 2:45
Interpretação: Milton Nascimento
3 “O Trem Azul” (Lô Borges, Ronaldo Bastos) – 4:05
Interpretação: Lô Borges
4 “Saídas e Bandeiras nº 1” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 0:45
Interpretação: Beto Guedes e Milton Nascimento
5 “Nuvem Cigana” (Lô Borges, Ronaldo Bastos) – 3:00
Interpretação: Milton Nascimento
6 “Cravo e Canela” (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) – 2:32
Interpretação: Lô Borges e Milton Nascimento


http://youtu.be/MVnfXLlrhPo

Lado Dois

1 “Dos Cruces” (Carmelo Larrea) – 5:22
Interpretação: Milton Nascimento
2 “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” (Lô Borges, Márcio Borges) – 4:13
Interpretação: Lô Borges
3 “San Vicente” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 2:47
Interpretação: Milton Nascimento
4 “Estrelas” (Lô Borges, Márcio Borges) – 0:29
Interpretação: Lô Borges
5 “Clube da Esquina nº 2” (Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges) – 3:39
Interpretação: Milton Nascimento


Lado Três

1 “Paisagem da Janela” (Lô Borges, Fernando Brant) – 2:58
Interpretação: Lô Borges
2 “Me Deixa em Paz” (Monsueto, Ayrton Amorim) – 3:06
Interpretação: Alaíde Costa e Milton Nascimento
3 “Os Povos” (Milton Nascimento, Márcio Borges) – 4:31
Interpretação: Milton Nascimento
4 “Saídas e Bandeiras nº 2” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 1:31
Interpretação: Beto Guedes e Milton Nascimento
5 “Um Gosto de Sol” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 4:21
Interpretação: Milton Nascimento


Lado Quatro

1 “Pelo Amor de Deus” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 2:06
Interpretação: Milton Nascimento
2 “Lilia” (Milton Nascimento) – 2:34
Interpretação: Milton Nascimento
3 “Trem de Doido” (Lô Borges, Márcio Borges) – 3:58
Interpretação: Lô Borges
4 “Nada Será Como Antes” (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) – 3:24
Interpretação: Beto Guedes e Milton Nascimento
5 “Ao Que Vai Nascer” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 3:21
Interpretação: Milton Nascimento

Fugindo de Soledad Villamil

Fui ao xô da bonita Soledad Villamil no Bourbon Country com a melhor das expectativas, só que… Para começar, ela deveria ter trazido uma banda, não aquela coisa constrangedora. Tantos, tantíssimos músicos argentinos bons e ela trouxe uns incapazes. Maximização de lucros? Deve ser. Não era dada personalidade própria a cada canção. Todas recebiam tratamento semelhante e até os diferentes ritmos pareciam muito parecidos. O timbre também era sempre o mesmo e — pô! — para que tanta alegria ao cantar desesperadas canções de amor? Uma espectadora a meu lado dormiu de tédio, enquanto eu esperava uma forma de sair sem ofender a fila onde estava e nem os artistas no palco — preocupação neurótica minha, pois ninguém saberia se eu queria voltar logo para casa ou se iria ao banheiro por alguma inconveniente manifestação fisiológica.

Salvou-se uma canção de Violeta Parra e a lembrança da calma atriz de El secreto de sus ojos. Quando ela retirou-se do palco aos 80 minutos de tortura, saímos correndo a fim de salvar o fim da noite. De bom só havia o vestido vermelho esfuziante e seu conteúdo. Melhor esquecer a demasiada alegria da moça. Nada como uma contida e digna depressão amorosa…

Isso aqui, recém postado, me consolou. Vou dormir. Espero não sonhar com aquele baixista que passou a noite fora do tom.