Enquanto o PT e o PSDB brigam, o Estado Laico vai pro brejo

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Salve-se quem puder
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A dicotomia tipicamente gaúcha foi exportada para a política nacional faz mais de uma década. O Grêmio e o Inter, a noite e o dia, o bem e o mal, o preto e o branco, deus e o diabo, o céu e o inferno, o PT e o PSDB. Isso é empobrecedor demais. A Veja e assemelhados fazem seu discurso de ódio ao PT, enquanto vários pequenos veículos e blogs respondem. Um trata de demonizar o outro em exageros espetaculares, como se o mundo se resumisse a detestar a Dilma ou o Aécio.

No entanto, há mais coisas no ar. Houve uma bancada que conseguiu enorme projeção no primeiro mandato de Dilma: a Bancada Evangélica. Segundo dados da própria Frente Parlamentar Evangélica, nas eleições de 2010 a bancada cresceu de 46 deputados (9% do total da Casa) para 68 deputados (13,2% do total), um crescimento de quase 50%. No Senado, os evangélicos têm 3 representantes: Walter Pinheiro (PT-BA) da Igreja Batista, Magno Malta (PR-ES) da Assembleia de Deus e o bispo Marcelo Crivella (PR-RJ), um ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.

Os evangélicos cresceram tanto que o comando da campanha à reeleição de Dilma Rousseff está preocupado com o voto deles, um eleitorado que representa 22,2% da população, ou 42,3 milhões de brasileiros, segundo o último Censo do IBGE. Agora será mais difícil conquistar esse eleitorado, sobretudo diante da candidatura de um de seus representantes, o Pastor Everaldo Pereira, do “Partido” Social Cristão (PSC) e da Assembleia de Deus. Em seu primeiro dia de campanha, Everaldo anunciou que criará o Ministério da Segurança Pública. E disse: “Com a Bíblia e a Constituição Federal nas mãos, inicio aqui, com Fé, minha caminhada para mudar o Brasil de verdade”. Assim vai nosso Estado Laico.

Dei uma passada no Facebook, blog e site do pastor. É de um retrocesso constrangedor. Inverdades vendidas como “verdades” e mais ódio, ódio e ódio à, digamos o termo exato, felicidade. Os evangélicos preveem um maior crescimento nestas eleições. Pensam que aumentarão em 30% sua presença no Congresso. Já há partidos políticos que se colocam frontalmente contrários ao Estado Laico, casos do PR e PSC. As mulheres e os homossexuais que se preparem, ainda mais que as leis de financiamento de campanha nunca são alteradas. Os caras têm grana e Everaldo já teria 4% dos votos, segundo as pesquisas. Isso sem contar com Marina Silva, vice de Eduardo Campos, terceiro colocado nas pesquisas.

Aberrações como o tal Estatuto do Nascituro — com sua consequente proibição do aborto –, cura-gay, homofobia, retirada da diversidade de gênero do Plano Nacional de Educação, o impedimento do kit gay — que foi retirado do MEC por Dilma e que era apenas um kit educacional contra a homofobia — e outros fatos foram os primeiros passos contrários a um Estado Laico onde a religião seja uma escolha íntima, uma necessidade pessoal. O que virá? Olha, me cago de medo dessa gente.

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Os símbolos religiosos e quem não os quer mais

TJ-RS negou solicitação para retirada de símbolos religiosos de repartições públicas, citando preâmbulo da Constituição | Foto: Ramiro Furquim / Sul21

Publicado em 4 de março de 2012 no Sul21

“Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”, diz o personagem Ivan Karamázov em Os Irmãos Karamázovi, de Dostoiévski. O russo era cristão e foi um escritor genial. Tão genial que lograva transferir-se para a pele de seus personagens de tal maneira que é difícil supor as ideias do homem por trás do romancista. Pois Dostoiévski não parece projetar-se em ninguém; em seus romances não há uma voz onisciente que comande tudo. Desta forma, o ateu Ivan Karamázov era provocativo, principalmente com seu irmão mais moço, o beato Aliócha, e a célebre frase é um caso exemplar de descontextualização por ter sido pronunciada por Ivan para Aliócha e não de Dostoiévski para uma plateia, por exemplo.

A noção de entidades superiores que julgam os atos dos homens talvez preceda a própria noção de humanidade. Para a antiguidade, de forma mais indiscutível do que hoje, Deus criara não apenas a vida e a existência do mundo e do universo, mas encarnava os preceitos éticos do certo e do errado. Deparando-se com o caos da vida e com leis insuficientes, os homens precisavam de limites. Sem eles, talvez os homens roubassem e matassem uns aos outros, cada um pensando ter direito a tudo. Deus os olharia e julgaria, no papel de representante do bem, do correto e da retidão, enquanto o Diabo representaria o mal, o errado, a destruição, o roubo e a morte. O ser humano que estivesse em coesão com Deus estaria de acordo com sua justiça.

Santo Agostinho, porém, disse: “Não basta querer crer, é necessário podê-lo”

Depois — durante toda a Idade Média e além, houve longo predomínio da moral cristã no mundo ocidental — , Deus permaneceu identificado com o Bem, a Justiça e a Verdade. Santo Agostinho (354-430), bispo, teólogo e filósofo da Igreja Católica, fundamentou a moral cristã na busca pela felicidade e a felicidade suprema consistiria num encontro com Deus na imortalidade. Só assim o homem poderia ser verdadeiramente feliz. E, para sê-lo, bastaria obedecer às leis e aos preceitos de Deus.

Desta forma, a Justiça dos homens acostumou-se a invocar Deus a fim de julgar corretamente os problemas do mundo, pois o contexto impedia a existência de teorias éticas autônomas da doutrina da Igreja. Todas elas, de uma forma ou outra, teriam que estar de acordo com os princípios divinos. Quem não viu filmes onde a testemunha, antes de responder a qualquer coisa, jurava dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade, com a mão sobre a Bíblia?

Crucifixo que abençoa o plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br

Não surpreende, portanto, que até hoje haja símbolos católicos nos prédios da Justiça e de outros órgãos públicos. É contra isto que a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e outras cinco entidades protocolaram pedidos. Desejavam a retirada dos símbolos religiosos das repartições do Executivo estadual, da Assembleia Legislativa, da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre e do TJ-RS, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Em resposta, o juiz assessor Antonio Vinicius Amaro da Silveira utilizou o argumento de que, no preâmbulo da Constituição de 1988, consta a frase de que esta fora promulgada “sob a proteção de Deus” e isto garantiria que aqueles símbolos religiosos não deveriam ofender os ateus e os adeptos de outras crenças. Seriam esperados e “naturais”.

Naiara Malavolta, articuladora estadual (RS) da Liga Brasileira de Lésbicas, explica a ação na Justiça: “Primeiramente, há uma clara contradição na Constituição Federal. A constituição que declara o estado como laico foi escrita ‘sob a proteção de Deus’. O fato é que precisamos reagir contra a invasão do público pelo privado. Nas escolas, a história das religiões deveria ser ministrada por historiadores, não por religiosos. A consequência de toda esta presença é a desconstituição de direitos por parte de  representantes da moral católica”. Sobre os símbolos, Naiara explica que os símbolos religiosos agridem boa parte dos homossexuais, pois simbolizam não apenas a fé como a tutela da instituição sob uma moral religiosa. “Muitos evangélicos, por exemplo, pouco sabem do que está escrito na Bíblia, mas ouvem o que é dito nas reuniões. E o que é dito é a posição majoritária evangélica: são homofóbicos, contra o aborto, propõem ‘curas gays’, etc. A oposição ao PLC122 (Projeto de lei que criminaliza a discriminação por orientação sexual) por parte da bancada evangélica diz tudo.

Monumento à Bíblia em praça de Paranavaí

O antropólogo Emerson Giumbelli, professor da UFRGS e coordenador do Núcleo de Estudos da Religião (NER) afirma que há, cada vez mais, iniciativas visando a retirada dos símbolos religiosos de locais públicos, mas que a resistência é  forte. “As respostas costumam ser ou evasivas ou de clara recusa. Porém, se reconhecemos a sociedade como plural em termos religiosos, tais símbolos, tidos como naturais a quem professa a religião católica, deveriam ser retirados”. Perguntado sobre o fato dos símbolos serem católicos, Giumbelli respondeu que “o cruxifixo é uma imagem rigorosamente católica, os protestantes e muitos evangélicos usam as cruzes sem o Cristo. A novidade é que a Bíblia tem crescido como símbolo de religiosidade, principalmente entre os evangélicos, mas também em Câmaras de Vereadores, etc. Por exemplo, no interior do país, já há muitos Monumentos à Bíblia. Os crucifixos têm cada vez menor representatividade”.

Sobre o fato da iniciativa dos pedidos de retiradas serem basicamente dos movimentos LGBT, Giumbelli afirma: “É claro que tais movimentos são muito mais sensíveis à questão. Porém, e isto agora é uma opinião pessoal, penso que eles só conseguirão avançar quando um leque mais amplo da sociedade civil lhes der apoio. O fato é que não há mais símbolos consensuais. A extensão de cada um é limitada e há ainda que considerar as pessoas sem religião”.

O antropólogo da UFRGS faz questão de sublinhar um fato que vem ao encontro da manifestação do desembargador Túlio de Oliveira Martins, presidente do Conselho de Comunicação Social do TJ-RS e finaliza: “Fico feliz que esta discussão exista. Discutir símbolos religiosos ou a retirada total deles é muito importante. Além da questão cultural e pessoal há o princípio do estado laico que não deve ser desrespeitado”.

E Dostoiévski? Melhor esquecê-lo? Não, de modo algum. Afinal, a frase deve ser limitada a uma inteligente provocação de Ivan Karamázov a seu irmão Aliócha. A quem duvidar disto, bastará ler o que diz Raskolnikov em Crime e Castigo e saber que Dostoiévski jamais assassinou velhinhas a machadadas. O personagem acaba antes do autor, assim como o privado antes do público.

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