Eu, estudando… O Mestre e Margarida, de Bulgákov (I)

Eu, estudando… O Mestre e Margarida, de Bulgákov (I)

Vou dividir este texto em vários capítulos, aproveitando coisas que já escrevi e escrevendo e pesquisando e copiando de outros, ladrão que sou. Apesar dos vários capítulos, este texto estará dividido em três grandes partes:

I — O Diabo de Bulgákov (capítulo curto, que pretendo terminar neste post);
II — As circunstâncias em que foi escrito O Mestre e Margarida;
III — O livro.

O Mestre e Margarida apresenta sua própria epígrafe — retirada do Fausto de Goethe — e ela trata do diabo, mas acho que preciso de outra, que pesquei do próprio livro de Bulgákov:

O que seria do bem se o mal não existisse, e como veríamos a Terra se as sombras desaparecessem? Afinal, as sombras resultam dos objetos e das pessoas.

Mikhail Bulgákov — O Mestre e Margarida

Então tratemos do demônio, do diabo, de Satã.

I — O Diabo de Bulgákov

A figura do demônio ganhou força na Idade Média. As mais variadas religiões jamais tiveram pudor de invocá-lo. Até hoje, nossos bispos evangélicos gritam que algumas saias e posturas são coisas de Satanás. E faz tempo que é assim.

Em parte de A Divina Comédia (1321), Dante Alighieri descreve os horrores que aguardam os pecadores no inferno. O foco do poema é a busca de Dante por sua amada Beatriz, que começa justamente no inferno, em cuja entrada há a famosa advertência: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Lá dentro há nove círculos, onde são julgados os vários tipo de delitos. Há vários demônios, mas no nono círculo está o maior deles, Lúcifer, o que julga os traidores. Ali não é quente, é frio e Lúcifer está lá, aprisionado da cintura para baixo, com suas grandiosas asas.

Lucífer no Nono Círculo do Inferno – Gustave Doré

Em Paraíso Perdido (1667), John Milton narra a expulsão de Lúcifer do Paraíso. Na obra, um despeitado Lúcifer diz que é “melhor ser rei no Inferno do que servir no Céu”.

A Queda de Lúcifer, ilustração de Gustave Doré para ‘O Paraíso Perdido’

Em O Diabo Enamorado (1772), Jacques Cazotte faz com que o Demônio se apaixone por um jovem que o invocou, assumindo a figura de uma bela mulher. Aqui, o demônio já adquire a característica da sedução, mas ele mesmo não tem uma imagem humana. Vejam abaixo a mulher sedutora e como ele é de verdade na imaginação dos ilustradores…

Ilustração para o livro de Cazotte

A lenda alemã de Fausto inspirou o clássico de Goethe (1808 e 1832), que inova ao dar aparência humana ao demônio. Mefistófeles aparece cheio de seduções, enganando, mentindo e propondo negócios.

Imagem de August von Kreling para o Fausto de Goethe (1874)

E há uma ópera de Gounod, de 1859, baseada no Fausto de Goethe. Faço questão de citá-la aqui pelo fato de Bulgákov tê-la assistido 41 vezes! Sabe-se disso porque ele guardava todos os ingressos de peças e concertos que assistia.

Cartaz original da ópera de Gounod.

E notem como o Mefistófeles de Gounod foi retratado no Municipal do Rio há poucos anos:

Foto: Ana Clara Miranda

Por que coloco todas essas imagens? Ora, para mostrar que a representação artística do Diabo mudou paulatinamente. Ele não somente passou a ter forma humana como adquiriu primeiro a sedução e depois o ar zombeteiro.

E como é o Woland de Bulgákov? Bem, vejamos o caso russo.

Nos contos populares russos, as esferas Deus/Diabo — o Bem e o Mal — são interligadas, unidas. Assim, Baba-Iagá, a bruxa das florestas, a fiel ajudante do Diabo, ora faz maldades — rouba crianças, mata, envenena heróis –, ora se transforma numa criatura bondosa — ajuda o herói, fornecendo-lhe a comida, o cavalo, a poção mágica, etc. Baba-Iagá não encarna o mal.

O séquito dos vários diabos tem diferentes membros: a coruja, o gato, os defuntos, os vampiros, etc. E também os lobos, os corvos, as cobras. Entretanto, todos eles, em algumas ocasiões, podem muito bem ajudar ao herói. Como em Bulgákov.

E há mais seres que carregam o diabólico, o demoníaco: os poetas, os músicos e outras “almas perdidas e pecadoras” como os orgulhosos, os solitários, os rebeldes, os ateus, os ladrões, os bandidos, os bêbados, os jogadores, os vagabundos, os ciganos, os amantes… Isso explicaria a simpatia que o diabo de Bulgákov tem pelo Mestre — que é um bom escritor e que, além disso, escreveu um romance não só sobre os sofrimentos e a sabedoria de Jesus, como também sobre a fraqueza e o padecimento moral de Pôncio Pilatos. E isso explicaria também a simpatia que Woland tem por Margarida — uma adúltera, amante do Mestre.

No folclore russo, o Diabo tem algumas características bem determinadas e estas mesmas características marcam o Diabo e seu séquito no romance de Bulgákov:

— os olhos verdes, ou, então, um olho diferente do outro em cor: “ele aparentava ter bem uns quarenta anos. Boca ligeiramente torcida. Bem escanhoado. Trigueiro. O olho direito negro, o esquerdo — não se sabe por quê — verde”;

Woland: ilustração de uma edição de O Mestre e Margarida
Woland num filme

— a força poderosa, orgulhosa de um “super-homem” ou então uma força brincalhona, mas briguenta (o gato Behemoth e Korôviev — os membros do séquito diabólico no romance de Bulgákov — são possuidores desta força brincalhona). Sim, em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Korôviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno e forte Azazello e a bruxa Hella, sempre nua. O povo russo relaciona também a ventania, a nevasca, o incêndio — lembremos que foi justamente o incêndio que acabou com a casa de escritores e com o misterioso apartamento n.° 50 — com o Diabo;

—  a cor preta ou vermelha. O vermelho é a cor da paixão, do sangue e do fogo. Outra cor diabólica é o preto. Os personagens diabólicos costumam ter os cabelos pretos — ou o pelo preto, como o Gato, que era “negro como corvo, ou como fuligem” — ou, então, o cabelo vermelho, como Korôviev, que tinha “cabelos ruivos brilhantes”;

— a marginalidade caracteriza os “filhos queridos” do Diabo. Este “marginal” pode ser uma espécie de um gênio, um poeta, um músico, mas pode também ser uma variante baixa: um ladrão, um bandido. Com a marginalidade vem a solidão e a ausência de filhos. Margarida, há vários anos casada, não tem filhos, é uma pessoa solitária, que sente-se abandonada pelo marido. Tudo isso a colocaria naturalmente ao lado do Diabo. O Mestre também não tem familia;

— o Diabo é o proibido e a rebeldia. Tudo o que não poderia haver na União Soviética. O Diabo (Deus) está com Margarida, está com o Mestre, está com Ivan Bezdômny, no final do romance, quando este se recusa a escrever poesia encomendada;

— o Diabo é um mestre do jogo, da sedução, da representação teatral e da arte em geral. A própria palavra ‘arte’ — em russo ‘iskusstvo’ — vem do verbo ‘iskusit’, “seduzir”, “representar”, “ser falso”. Na Rússia, o Diabo troca as máscaras e os papéis, e no romance de Bulgákov, ele também é um ator por excelência.

Eco do Fausto de Goethe, pelas reflexões filosóficas, o romance começa com esta epígrafe:

— Pois bem, quem és então?

— Sou uma parte desta força que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.

Goethe, Fausto.

O Diabo aparece já nas primeiras páginas do romance e passa a desempenhar o papel substancial no texto. Mas, conhecendo o contexto histórico da União Soviética da época — é nosso próximo assunto –, quando o romance foi escrito, o leitor atento logo deixa de encarar o livro como “fantástico”, começa a sentir que “tem mais”. O objetivo do livro é fazer com que o leitor hesite em escolher entre a explicação natural e a sobrenatural dos acontecimentos. O efeito produzido pelas situações grotescas é desorientador. O mundo de O Mestre e Margarida é cheio de milagres, um mundo teatral.

Só que não é uma fantasia livre. Tudo aquilo que de sobrenatural acontece tem o outro pé na realidade. Por exemplo, quando, no epílogo, Bulgákov conta a perseguição aos gatos pretos, pois a polícia está atrás do gato Behemoth:

Cerca de uns cem desses animais pacíficos, dedicados e úteis ao homem tinham sido fuzilados ou exterminados por outros meios em diversos pontos do país. (…) Gatos, de aspecto às vezes bastante estropiado, foram entregues a destacamentos policiais de diversas cidades. Por exemplo, em Armavir, um desses bichos, sem culpa alguma, foi levado à polícia com as patas dianteiras amarradas por um cidadão. (Pág. 384, edição da 34)

Mas não se enganem, a maior parte do livro é pura sátira. Ele tem cenas belas, a maioria delas hilariantes e, se você pensar que Bulgákov viu a URSS dos anos 30 como Doutor Jivago estará navegando num mar de enganos.

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Texto parcialmente adaptado e copiado do trabalho Quem é o Diabo?” de Elena Godoy. 

Enquanto o PT e o PSDB brigam, o Estado Laico vai pro brejo

Enquanto o PT e o PSDB brigam, o Estado Laico vai pro brejo
Salve-se quem puder
Salve-se quem puder

A dicotomia tipicamente gaúcha foi exportada para a política nacional faz mais de uma década. O Grêmio e o Inter, a noite e o dia, o bem e o mal, o preto e o branco, deus e o diabo, o céu e o inferno, o PT e o PSDB. Isso é empobrecedor demais. A Veja e assemelhados fazem seu discurso de ódio ao PT, enquanto vários pequenos veículos e blogs respondem. Um trata de demonizar o outro em exageros espetaculares, como se o mundo se resumisse a detestar a Dilma ou o Aécio.

No entanto, há mais coisas no ar. Houve uma bancada que conseguiu enorme projeção no primeiro mandato de Dilma: a Bancada Evangélica. Segundo dados da própria Frente Parlamentar Evangélica, nas eleições de 2010 a bancada cresceu de 46 deputados (9% do total da Casa) para 68 deputados (13,2% do total), um crescimento de quase 50%. No Senado, os evangélicos têm 3 representantes: Walter Pinheiro (PT-BA) da Igreja Batista, Magno Malta (PR-ES) da Assembleia de Deus e o bispo Marcelo Crivella (PR-RJ), um ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.

Os evangélicos cresceram tanto que o comando da campanha à reeleição de Dilma Rousseff está preocupado com o voto deles, um eleitorado que representa 22,2% da população, ou 42,3 milhões de brasileiros, segundo o último Censo do IBGE. Agora será mais difícil conquistar esse eleitorado, sobretudo diante da candidatura de um de seus representantes, o Pastor Everaldo Pereira, do “Partido” Social Cristão (PSC) e da Assembleia de Deus. Em seu primeiro dia de campanha, Everaldo anunciou que criará o Ministério da Segurança Pública. E disse: “Com a Bíblia e a Constituição Federal nas mãos, inicio aqui, com Fé, minha caminhada para mudar o Brasil de verdade”. Assim vai nosso Estado Laico.

Dei uma passada no Facebook, blog e site do pastor. É de um retrocesso constrangedor. Inverdades vendidas como “verdades” e mais ódio, ódio e ódio à, digamos o termo exato, felicidade. Os evangélicos preveem um maior crescimento nestas eleições. Pensam que aumentarão em 30% sua presença no Congresso. Já há partidos políticos que se colocam frontalmente contrários ao Estado Laico, casos do PR e PSC. As mulheres e os homossexuais que se preparem, ainda mais que as leis de financiamento de campanha nunca são alteradas. Os caras têm grana e Everaldo já teria 4% dos votos, segundo as pesquisas. Isso sem contar com Marina Silva, vice de Eduardo Campos, terceiro colocado nas pesquisas.

Aberrações como o tal Estatuto do Nascituro — com sua consequente proibição do aborto –, cura-gay, homofobia, retirada da diversidade de gênero do Plano Nacional de Educação, o impedimento do kit gay — que foi retirado do MEC por Dilma e que era apenas um kit educacional contra a homofobia — e outros fatos foram os primeiros passos contrários a um Estado Laico onde a religião seja uma escolha íntima, uma necessidade pessoal. O que virá? Olha, me cago de medo dessa gente.

Lolita – Um comentário a partir do romance de Vladimir Nabokov

Publicado em 18 de agosto de 2012 no Sul21.

Durante a semana, entramos em contato com a psicanalista Lucia Serrano Pereira. Nossa intenção era utilizá-la como fonte para uma matéria sobre o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, que foi lançado nos EUA em 18 de agosto de 1955. O livro é fascinante do ponto de vista literário, mas descreve um caso de pedofilia sem culpa que não ousaríamos analisar sem consultar alguém especializado. Durante a conversa, notamos que Lucia tinha profundo conhecimento a respeito da obra. Não nos surpreendemos quando a psicanalista nos informou que era autora de um longo comentário sobre o livro e que este estava disponível para o Sul21. Deste modo, recuamos de nossa intenção de escrever sobre Lolita para dar lugar ao texto de nossa fonte e colaboradora na Coluna da APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Milton Ribeiro)

Vladimir Nabokov (1899-1977)

Por Lucia Serrano Pereira

Desejo, agora, apresentar a seguinte ideia. Entre um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem raparigas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas “nínfica” (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets.”

Trecho do diário de Humbert Humbert, o personagem.

A narrativa é um incrível tecido de linguagem e de estilo, onde Nabokov nos traz a trajetória de Humbert, esse viajante enfeitiçado, e de sua nymphet, Lolita. Quando se trata de feitiço, dessa natureza não humana, um pouco nínfica, é inevitável evocar a representação das sereias que deslumbram com seu canto irresistível e depois arrastam para a morte os enfeitiçados.

Lolita (Sue Lyon) e Humbert Humbert (James Mason) no filme de Stanley Kubrick baseado no romance (1962).

Humbert relata o turbilhão em que foi jogado, a paixão, o amor, o desejo vividos loucamente, delirantemente, “Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma”, são as primeiras palavras do texto. Mas para além do que ali se apresenta enquanto paixão, amor e desejo, e, de certa maneira transitando por todos eles, temos essa enigmática magia da nymphet, que, como a da sereia, é demoníaca. Essa magia do diabo, ela tem nome próprio. Chama-se sedução. O diabo, por sinal, é o mestre em matéria de sedução, é o sedutor- mor, sempre.

O livro foi recusado por quatro editores norte americanos. | Foto: Dominique Swain na segunda versão do livro para o cinema.

Seduzir vem do latim seducere, “levar para o lado”, ou seja, algo que alude ao desviar do caminho, sair da rota esperada, da estrada principal, para seguir com a ideia do viajante. Assim, algo do seduzir nos situa, nos desvela o que poderíamos chamar uma figura do desviante. Figura fundamental em Lolita, sob vários aspectos. A começar pela repercussão que teve na época de sua publicação, no contexto dos anos cinquenta. A estória do europeu de meia idade, culto, glamouroso, bem nascido e educado que se apaixona e faz de tudo, vida e morte por essa ninfeta norte-americana de vida e valores bem banais (revistinhas de artistas de cinema, vitrola, mau humor, uma mãe com quem brigar, entre o sofá velho e as bugigangas mexicanas) provocou um verdadeiro escândalo. Os desvios estão ali postos em cena, no que concerne a moral sexual vigente. O texto escancara esse viés do desejo de um homem por uma jovenzinha que, no fim das contas, nem era tão guria assim. O livro foi recusado por quatro editores norte americanos. Tema tabu, dizia Nabokov. Ainda mais que Humbert casa com a mãe de Lolita somente para ficar com a filha, sem a menor culpa, para ser, além de tudo, o seu papaizinho. Esse “frisson” acerca de um homem e sua garotinha nos EUA, nos anos cinquenta, teve também sua expressão pública e internacional com a polêmica que se armou em torno da vida amorosa e sexual de dois músicos bem conhecidos, dois “pais” do rock, Chuck Berry e Jerry Lee Lewis. Ambos pelas mesmas razões, escolheram jovens passando da puberdade para a adolescência. Jerry Lee Lewis casa com a prima de 13 anos. Os dois músicos terão suas vidas e carreiras musicais atacadas, afetadas, marcadas por essa escolha. Ficaram na história também como representantes do “desviante” no social. Chuck Berry era negro, já atraia a visada racista, Jerry Lee, branco mas tocando música de negros, e logo o rock, que era explicitamente apontado como música do diabo, sedutora, desencaminhadora, perigosa. Jerry Lee e Chuck Berry, por sua vez, não deixavam por menos, faziam jus a essa imagem do desviado com suas reações fortes e agressivas. Quem viu o filme Great Balls of Fire pode ter bem essa dimensão. Jerry Lee Lewis aparece em seus shows incendiando os pianos, enquanto sua jovem esposa, em outra cena, faz as compras como se estivesse numa grande loja de brinquedos, literalmente brincando de casinha.

“Tema tabu”, dizia Nabokov

Em Lolita, a marca do desviante é desdobrada pelo menos em três vias : na caracterização do personagem, Humbert, no rumo que vai tomar a vida de Lolita, e ainda no que se estabelece como a viagem e seus roteiros. Humbert já nas primeiras frases dirige-se aos senhores e senhoras do júri, nisso tomando para si o lugar do réu e a denominação de criminoso. Mais adiante nos faz saber de suas várias internações em hospitais psiquiátricos, onde descobria suas fichas com as classificações que o divertiam — “potencialmente homossexual” ou “completamente impotente”. Defende-se pedindo simplesmente à comunidade a permissão para prosseguir na chamada “conduta aberrante, mas praticamente inofensiva nos seus pequenos, ardentes e úmidos atos de anormalidade sexual”, sem que a polícia e a sociedade se lancem contra. “Somos cavalheiros infelizes, suaves, de olhar humilde, suficientemente integrados na sociedade para que controlemos nossos impulsos em presença de adultos, mas dispostos a dar anos e anos de vida em troca da oportunidade de acariciar uma nymphet.” É curioso o deslizamento de sentido nesta frase — controlamos nossos impulsos em presença de adultos — pois é como se ele pode nisso estar excluído de “adultos”, se posicionar fora do lugar “adultos”.

Lolita. Saída da puberdade, entrada na adolescência com tudo o que se tem direito nessa idade. Instável, ora de mau humor, ora alegre, respondona, um pouco desleixada e suja, meio metida, curiosa, provocadora, graciosa e desengonçada, e, aos olhos de Humbert, desejável da cabeça aos pés. Lolita, ao ser alvo de sua paixão, vai ter a vida revirada. A mãe casa com Humbert e morre atropelada quando sai de casa enlouquecida ao descobrir o interesse do marido novo pela filha. Assim que Lolita perde a mãe, ganha um padrasto apaixonado, e sai direto de um acampamento de férias desses que a gente vê nos filmes, para a vida nos motéis. Sai da adolescência comum para virar uma pequena rainha/tirana.

Jeremy Irons (Humbert Humbert) e Dominique Swain (Lolita) na versão de Adrian Lyne (1997)

Terceiro ponto — a viagem. O inicio da viagem que vai ser a vida em comum, por alguns anos, de Humbert e Lolita, já é um desvio cuidadoso do fato de que a mãe morreu. Ele a busca no acampamento, sem revelar essa morte. O que vem na sequência é uma sucessão de roteiros, é por onde Nabokov vai apresentando a América “on the road”, (boa parte do livro foi escrita em casas de campo e motéis nas regiões do Arizona e do Oregon por onde Nabokov foi se hospedando) mas é ao mesmo tempo uma sequência de hotéis e motéis de todos os tipos, dos mais tradicionais, caseiros, aos mais baratos “beira de estrada”, um desenrolar de entradas e saídas, não é para que eles sejam descobertos nem localizados — é o cuidado com os quartos, as marcas nos lençóis, os recepcionistas e os hóspedes. Mesmo quando eles se instalam em uma pequena cidade onde Lolita vai à escola, é para manter a fachada de pai e filha, a fachada da estrada principal aos olhos do social. Esse jogo eles jogam em parceria.

Me pareceu interessante o elemento da viagem, do trilhar os Estados Unidos pelas estradas pois evoca justamente esse rumo da literatura norte-americana “on the road” que surge no final da década de 40, poucos anos antes de Lolita, então, como a expressão da chamada “geração beat”, aqueles jovens desviantes que criam este estilo de narrativa em poesia e em prosa.

Talvez a mestria de Nabokov em desdobrar a dimensão dos desviantes seja de alguma maneira tributária da sua própria história. Em 1919 um “rebanho de Nabokovs”, como ele diz em sua autobiografia, fugiu da Rússia para a Europa Ocidental, saídos em função da Revolução Russa, iniciando aí seu exílio. Foi estudar em Cambridge, tempo do qual não guardou muito boas recordações. Relata ter ficado, nesse primeiro passo no exílio com um medo mórbido — o de perder ou corromper, devido à influência estrangeira, a única coisa que trouxera da Rússia : a língua.

Nabokov viajou pelas estradas do interior dos EUA fazendo anotações antes de criar sua “road novel”.

Podemos dizer que Nabokov foi, ele próprio um viajante encantado, pois além dos escritos em russo acabou sendo um dos maiores escritores contemporâneos em língua inglesa. Para fazer o que fez em termos de obra em uma outra língua que não a sua de origem é preciso ter se deixado mergulhar, seduzir por essa outra estrangeira. É bem verdade que isso aconteceu desde muito cedo na sua vida, tendo ele escrito primeiro em inglês, antes do russo. Uma das lembranças infantis que relata em seu Speak Memory é a da mãe lendo para ele à noite, antes de dormir, histórias em inglês.

Seduzir é também, por definição, atrair, encantar, fascinar, deslumbrar. Se por um lado Humbert planeja e executa um plano de sedução sobre Lolita, ele é, ao mesmo tempo o seduzido, o atraído, o deslumbrado. Em Don Juan isto também acontece, ele é aquele que seduz as mulheres, mas tem seu caminho desviado a cada vez em que se apresenta o “odor di femina”. Guardadas as diferenças. O que Humbert ressalta é que a nymphet não é uma “femina”. É uma figura pubescente perfeita, tão diferente de uma mulher como alhos de bugalhos. O “que” portado pela nymphet não é uma qualidade do senso comum como beleza ou graça, e vai depender justamente do olhar de quem a vê. Nabokov nos mostra muito bem através de Humbert o poder da sedução, o brilho, o fascínio representado em uma parcialidade. Em um momento são as maçãs do rosto, noutro o tom da pele, ou os anéis do cabelo cobrindo um joelho esfolado, ou esse momento exemplar : “outra ocasião, uma colegial de cabelos ruivos dependurou-se sobre mim no metrô, e uma revelação de pelos axilares que obtive permaneceu em meu sangue durante semanas.” O que aparece “amplificado” aí é relativo a essa qualquer coisa, um detalhe, um relance. É uma parcialidade que faz a captura.

Na vida pessoal, o autor de Lolita foi um estudioso das borboletas, tendo formulado teoria sobre a evolução dos lepidópteros.

Fascinar é um termo que contém fasces, o feixe latino que também origina fascismo, onde seu sentido original é o de amarrar (como num feixe), atar, prender, assujeitar (ref. R. Mezan, vide notas). Nesse sentido seduzir tem a ver também com essa violência refinada, com o ganho de um poder sobre o objeto da sedução. Talvez este seja o recanto onde Lolita se instale frente a seu parceiro. Uma das condições de sustentação da sedução é a não entrega, é esse jogo de subtração. “Ela jamais vibrou sob o meu contato”, Humbert se queixa. “Ao país das maravilhas que eu tinha para oferecer-lhe, a minha tola preferia o mais reles cinema de esquina, o mais enjoativo bombom.” No entanto Lolita negociava com Humbert — tantos dólares, ou cents por um abraço especial, uma carícia mais demorada (suborno é também um dos termos presentes entre os que designam o seduzir). Fica difícil de situar nessas promessas, negociações e concessões quem é que começou. “ A sedução é um jogo em cadeia, e o bom seduzido é sempre um bom sedutor” (ref. L. P. Moisés, vide notas). O seduzido consente em ser enganado, e também engana o sedutor. Lolita nisso tinha seu espaço, jogava os seus dados, mesmo que por vezes ao estilo infantil, para que Humbert a deixasse fazer isso ou aquilo, tal ou qual programa. Os roteiros das viagens seguiam em grande parte seus caprichos, as montanhas de presentes frequentemente eram para adoçá-la, e por aí vai. O assujeitamento, o aprisionamento em que eles se encontram aparece. Nos dois sentidos, mão e contramão : “a minha nymphet colegial me mantinha escravizado”, “eu era fraco e ela se aproveitou disso”; como o inverso : “…na posse e escravidão de uma nymphet, o viajante encantado se encontra, por assim dizer, para além da felicidade.”

As fantasias se apresentam. Lolita, ao referir-se ao hotel em que ficaram e transaram pela primeira vez diz algo como — Ah, aquele hotel em que você me estuprou… Enquanto que a versão de Humbert para a mesma cena é até de uma certa surpresa por Lolita se oferecer a ele tentando mesmo mostrar alguma técnica, alguma experiência. Em outra passagem, num momento de irritação ela diz — tem nome para isso que a gente faz : incesto! Uma fala que o instalaria muito diretamente no lugar de pai. Então, em Lolita poderia haver a tentativa de realização da fantasia de ser violentada pelo papai, o que não é nada incomum para as meninas nas suas fantasias sexuais adolescentes — serem forçadas ao sexo por um homem adulto que se aproveite delas. Humbert, por sua vez, sabe que o que possuía em Lolita não era ela mas sim sua própria criação, uma outra e fantasiosa Lolita, sobrepondo-se a ela, envolvendo-a, transformando-a. Dolores, Lo, Dolly, Lola, Annabel, o amor da adolescência, ou mesmo Carmen, a cigana sedutora. Ele chega a estabelecer o seguinte : “pode ser que a mesma atração que a imaturidade exerce sobre mim resida não tanto na limpidez de uma pura, clara e proibida beleza de criança, como na certeza de uma situação em que infinitas perfeições preenchem a lacuna entre o pouco que é dado e o muito que é prometido…”

Humbert aspirava ser o pai, o professor, o pediatra, o “tudo” para Lolita.

A sedução navega nas promessas.

Nós sabemos que essa visada de realização perfeita, sem faltas, está fadada ao fracasso, é impossível. Humbert aspirava ser o pai, o professor, o pediatra, o “tudo” para Lolita. Um impossível faz com que as promessas, inerentes a toda sedução, não possam se cumprir na perfeição, a decepção é inevitável. Num belo dia Lolita some, vai embora. As coisas acontecem como se a sedução terminasse por levar a uma destruição do desejo, no seguinte sentido: seduzir é tornar-se senhor do desejo do outro, o que termina proibindo o outro de ser desejante. Do outro lado, ser seduzido é deixar-se escravizar ao desejo do outro para não precisar desejar mais nada. Nessa via, fixar-se no canto da sereia é imobilizante, é mortífero. No texto temos a morte de Charlotte, o assassinato de Quilty, a prisão de Humbert e a morte de Lolita. Isso não vai no sentido da moral, parece um pouco mais com as tragédias, como Carmem, tão citada.

Uma observação a mais — o nascimento da psicanálise passa de uma forma muito particular pela questão da sedução. Freud, quando escuta suas primeiras pacientes, vai chegando à conclusão de que praticamente todas tinham passado na infância por uma experiência de sedução por parte de um adulto, uma espécie de abuso sexual acontecido na infância. Ele estranha, será que todas as histéricas foram abusadas por seus pais? Mais tarde chega à conclusão de que isso não correspondia a uma ação acontecida na realidade, mas que fazia parte da fantasia de suas pacientes. É o caminho para formular a concepção de uma outra realidade, não a realidade sensível, mas a realidade psíquica. O que se apresenta a Freud pela trilha da sedução não é uma “mentira” das pacientes, mas sim a fantasia que indica o caminho do desejo. Nesse sentido, desviantes somos todos nós, humanos, que temos nossos desejos sustentados pelas fantasias que nos atravessam.

O que Nabokov traz com Lolita é uma marca da condição humana. Dito nas palavras fortes, com seu estilo impressionante: a labareda na carne.

Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Nabokov em 1947

Referências Bibliográficas:

NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo. Abril S. A Cultural e Industrial, 1981.
NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.
NABOKOV, Vladimir. A pessoa em questão – uma autobiografia revisitada. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.
RIBEIRO, Renato Janine (organizador). A sedução e suas máscaras : ensaios sobre D. Juan. São Paulo. Companhia das Letras, 1988.

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): I – Doutor Fausto, de Thomas Mann

Começo esta antologia anárquica — a ordem em que os livros aparecem não reflete nenhum juízo comparativo — por um livro que toca muito de perto a quem, como eu, gosta de música. Pois o Doutor Fausto de Mann, além de possuir imenso valor literário, é uma espécie de bíblia reverenciada pelos amantes da música. No almoço de ontem, eu estava conversando com meu filho a respeito da obra-prima de Sokurov quando ele disse: “não existe um capítulo XXV no filme”. Ele se referia à celebre conversa de Adrian Leverkühn como o demônio. Eu logo lembrei de outro capítulo, o oitavo, onde o professor Kretzschmar explica a Sonata Op. 111, de Beethoven. Percebem? O que desejo dizer é Doutor Fausto é um livro citado capítulo por capítulo, tal a impressão que causa a quem se apaixona por ele. É o mesmo que fazemos com a Parábola de Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamázovi. Claro que ele pode e deve ser fruído também por quem sofre de amusia, assim como os Karamázovi pode ser lido por quem não deseja matar o pai, mas amar a música ajuda.

Narrada por um amigo, o professor Serenus Zeitblom, Doutor Fausto é a história do músico Adrian Leverkühn que, como o Fausto da lenda, vende a alma ao Demônio. Como contrapartida, ganha por alguns anos uma absoluta genialidade musical, suficiente para a composição de um conjunto de obras imortais. Publicado em 1947, este livro faz parte do período final de Thomas Mann, sendo tecnicamente seu romance mais ousado, no qual música e política, realidade e símbolo, o bem e o mal, estão entrelaçados de forma  impressionista e irrepetível. Sempre é bom ressaltar que a tradução da Nova Fronteira é do saudoso e competentíssimo Herbert Caro, que proporcionou grandes manhãs de sábado a um grupo de jovens que se encontrava na King`s Discos da Galeria Chaves em Porto Alegre para falar sobre… música e literatura. O que aprendi com este sábio não tem tamanho, mas esta é outra conversa.

Diagnóstico de Alma Welt

Engraçado, meus sete leitores gostam mesmo de um mistério. Telefonemas, e-mails, comentários até hoje, réplicas… Tudo para descobrir a identidade de Alma Welt. E em verdade vos digo: Alma Welt existiu, assim como existem Lúcia Welt e o pesquisador Jungmar Jensen.

Anton Tchékhov existiu também. E quem duvida da realidade de Gurov e de sua dama do cachorrinho Ana Serguêievna? Thomas Mann esteve entre nós, mas confesso que Adrian Leverkühn me é muito mais consistente e presente, até por ter feito um pacto com o Demônio. O Demônio também existe e não serei eu a duvidar de Fausto. Aquele foi criado pela religião, este por uma lenda popular, o que é a mesma coisa. E o que dizer de Deus, tão presente em nossas vidas?

Um de nossos leitores foi bastante fundo, pois trabalhou como inspetor de polícia na cidade onde Alma Welt escreveu grande parte de sua obra e suicidou-se. Por vício de profissão e equipado de boas práticas e autoironia, encafifou com o caso: imaginem que ele pesquisou sobre todas as mortes e suicídios recentes de Rosário do Sul. Mais: entrou em contato com a Associação dos Poetas Rosarienses. Um de seus membros declarou estar “consternado por desconhecer a pessoa e a obra de Alma Welt e mais ainda por ela nunca ter feito parte dos quadros da instituição”. Desta e de muitas outras formas, meu leitor garante que nada daquilo ocorreu, nem a morte daquele pobre e torturado padre citado na fortuna crítica e biográfica da grande Alma. Sua única preocupação é um elegante deboche: ele gostaria de saber se dialoga com um homem ou com uma mulher. Por quê? Ora, é que estava despedindo-se de Lúcia Welt com beijos e se esta fosse um homem tal atitude poderia, em suas palavras, “arruinar minha reputação”.

Pois eu me contraponho e ataco a Jorge Lima perguntando-lhe se foram documentados os terríveis crimes ocorridos nas cidades gaúchas de Boa Ventura e Santa Fé. Por exemplo, o jornalista e advogado Dr. Alcides Viana foi morto numa madrugada por um certo Fagundes ao sair da casa de sua noiva. Onde soube disso? Ah, foi no romance Porteira Fechada, de Cyro Martins, mas e daí? Alcides não representa a imprensa idealista com colhões? E toda aquela mortantade que houve por dois séculos em Santa Fé? Ou alguém aí vai dizer que nosso escritor maior mentiu e que, por exemplo, Ana Terra e Rodrigo Cambará jamais existiram? ERA SÓ O QUE FALTAVA PARA ACABAR DE VEZ COM NOSSO ESTADO!!! Não basta a Yeda?

Então, mesmo que o número IP de Jungmar Jensen e Lúcia Welt fossem iguais em alguns momentos — apesar do cuidado que deus tinha de usar IPs variáveis — , a gente deve contribuir para que a existência e a essência da Alma Welt se espraie pelo pampa como a de Erico e de Cyro.

E digo mais, tive um caso com Lúcia Welt, sua irmã. Vi in loquo as extraordinárias pinturas de Guilherme de Faria tendo Alma Welt como modelo. Pratiquei maravilhosos intercursos em salas com paredes lotadas de Almas que nos observavam, arfantes e apaixonados. Amei Lúcia Welt sabendo que nela encontraria algo dos restos de sua irmã. E, contrariamente a nosso inspetor, encontrei não apenas a mesma carne e o mesmo sangue, como os inestimáveis papéis amarelados de Alma, todos rabiscados de sonetos.

O Pranto de Alma Welt, de Guilherme de Faria