Reparação, de Ian McEwan

Reparação é tudo o que não há em Reparação (Atonement), de Ian McEwan. A tradução brasileira acrescenta uma curiosa ironia ao romance em que Briony comete e procura reparar uma crueldade infantil, mas que não chega a conseguir. Os portugueses fazem melhor ao traduzir Atonement por Expiação, mas convenhamos, não é um nome bonito para um romance tão bom.

McEwan é um grande escritor, mas acho exagerados os tonitruantes elogios que este romance habitualmente recebe. Coloco Reparação em um nível muito alto, apenas discordo daqueles que o citam como “o melhor da década”, “o melhor que já li” e outras sandices do gênero. Menos, gente. É um livro esplêndido, em que McEwan mantém-se extremamente próximo dos personagens, detalhando suas ações a cada mínimo passo ou pensamento. Neste sentido, é ontológico no grau exato, não entrando na microscopia do argentino Saer, um parente próximo e ainda mais detalhista que McEwan.

O livro é dividido em quatro seções muito distintas entre si. A primeira parte do romance passa-se num dia de verão de 1935 na casa de campo da família Tallis. A narrativa alterna seu ponto de vista entre Cecilia, irmã mais velha de Briony que tem por volta de 18 anos, Robbie, o agregado filho da faxineira da casa, protegido do patriarca Tallis, Briony (de 13 anos) e sua mãe Emily. Os artifícios narrativos de McEwan são muito inteligentes e requerem algum virtuosismo. A narrativa é lenta e nunca sabemos exatamente a sequência exata dos acontecimentos. Porém, conseguimos organizá-los pois, aqui e ali, cenas que haviam sido narradas do ponto de vista de um personagem voltam a ocorrer, agora descritas a partir de outro ponto de vista, permitindo outras interpretações. Essa relatividade, além de ser perturbadora, serve para que compreendamos os fatos e seu efeito estético é arrebatador.

O plot é muito semelhante ao do clássico de E. M. Forster, Passagem para a Índia. No livro de Forster, o Dr. Aziz leva a moderninha vitoriana Adela Quested para conhecer as Cavernas de Marabar, a “verdadeira Índia”. Algo então acontece e Adela foge morro abaixo, machucando-se muito. Adela acusa Aziz de tentar estuprá-la. O médico desce o morro preocupado, sem saber o que aconteceu com Adela, se está perdida no labirinto de cavernas ou não, e é surpreendido pela acusação. O Robbie de McEwan, após passar a noite procurando duas crianças fujonas, retorna vitorioso com elas nos braços e recebe a acusação de ter, durante sua procura, estuprado Lola, uma insinuante adolescente de 15 anos, prima de Cecilia e Briony. O testemunho de Briony — que sabemos fantasioso, imaginativo, vingativo, ciumento, preconceituoso e mentiroso — é absolutamente decisivo.

Não é uma cópia, longe disso; faço as comparações para demonstrar uma curiosa comunicação entre dois grandes romances ingleses. Se lá em Forster o tema é o preconceito inglês contra os indianos e a amizade, aqui o leque é muito mais amplo. Mas não nos adiantemos.

Na segunda parte, em 1940, Robbie já cumpre sua pena. Deixou a cadeia em troca de alistar-se como soldado na Segunda Guerra Mundial. O romance muda, torna-se mais ágil, menos interessante, quase comum. Mas é um trecho absolutamente necessário. Afinal, é a primeira expiação, a do inocente.

A terceira parte foca-se na expiação de Briony, ao tentar finalmente reparar seu erro. Aqui, McEwan volta a ser grandioso. É mostrada em toda a extensão as consequencias de um ato de crueldade. O autor espreme até a última gota a culpa de Briony, a relação do casal Cecilia-Robbie com um ato de inconcebível maldade e da gratuidade, o perdão, o remorso, a fantasia e a mentira. McEwan mostra-se um escritor do tamanho de seus temas e isso não é pouco: o desafio era complicadíssimo.

A quarta parte do romance é curta, 24 páginas. Traz Briony aos 77 anos, em 1999. Ficamos sabendo que ela é a narradora do romance. E que a reparação é-lhe negada de todas as formas possíveis.

É um tremendo romance.

No último encontro entre Briony, Robbie e Cecilia, Robbie pergunta:

“Você acha que eu estuprei sua prima?”
“Não.”
“E achava na época?”
Ela procura as palavras. “Sim, sim e não. Eu não tinha certeza.”
“E por que você tem tanta certeza agora?”
Ela hesitou, consciente de que ao responder estaria oferecendo uma espécie de defesa, uma justificativa, e que isso poderia irritá-lo ainda mais.
“Porque cresci”.

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