Os diferentes, mas nem tanto, natais dos sem fé

Os diferentes, mas nem tanto, natais dos sem fé

Para os de ateus e agnósticos, ver o Natal como um simples feriado seria apenas mais uma alteração num evento que já foi pagão, que depois tornou-se religioso por obra da Igreja Católica, que recebeu um Papai Noel chamado Nicolau – um bispo nascido na Turquia em 284 d.C que deixava saquinhos com moedas próximos às chaminés das casas – e que ganhou o vermelho e branco da Coca Cola em 1931, durante uma bem-sucedida campanha publicitária. Segundo o IBGE, o número brasileiros que declararam não ter religião no último censo, incluindo os ateus, cresceu de 1% nos anos 70 para 7,3% em 2010. O fenômeno é mundial. A American Physical Society fez uma pesquisa na Austrália, Áustria, Canadá, Finlândia, Irlanda, Holanda, Nova Zelândia, Suíça e República Tcheca. Destes, os tchecos revelaram-se os mais religiosos, com 60%. O menor número foi encontrado na Holanda. A entidade projetou as tendências no país para 2050, chegando à conclusão de que 70% dos holandeses não terão religião na metade do século XXI. Nos Estados Unidos, o número daqueles que se identificam como cristãos teve uma queda de 10% nos últimos 20 anos, passando de 86 para 76%.

O Sul21 procurou saber como é a comemoração da data para estas pessoas. Afinal, é praticamente impossível passar ao largo da face comercial do Natal. A engenheira Rachel Zanini afirma que, para ela, o Natal foi por muitos anos apenas “decoração e gastronomia” e que nunca contestou o significado da data por viver numa família extremamente católica. A partir do momento em que pode desenvolver uma crítica interna, começou a se incomodar com os excessos religiosos da família e com os comerciais da sociedade, além da obrigatoriedade da comemoração. “Até o salão de beleza onde fui hoje estava decorado com as cores da Coca-Cola. Serviam espumante… Tudo isso pelo nascimento de Jesus?”. Vou à festa da família, mas não compro presentes e só desejo boas festas e bom feriado aos amigos.

A dona de casa italiana Bruna Schiavone diz que, quando saiu do norte da Itália, nos anos 90, as festas eram bem diferentes. “Lá na Itália, a festividade está mais americanizada, mas no meu tempo as crianças comemoravam o Dia de Santa Lucia. Essa festa não é a mesma do Natal, nem na mesma data. As crianças recebiam doces de presente – antigamente ganhavam laranjas como desejo de saúde e necessidade de vitamina C para o inverno –, estes eram os presentes. No dia 25, havia um almoço e fim. Nada de vigília ou troca de presentes. Hoje, vejo a data como uma oportunidade de reunir a família. Não monto pinheirinhos em casa nem deixo a casa com cara de Natal”.

Foto: Ramiro Furquim / Sul21

O mesmo faz Francisco Marshall. “No passado, como família germânica tradicional, cantávamos o “noite feliz”, comíamos peru e mais aquele monte de guloseimas. Hoje, reunimos a família e eu estou proibido de fazer piadas sobre religião por causa dos mais velhos. Porém, como ateu programático, às vezes aproveito a deixa… No ano passado, como meu aniversário fica próximo, fiz a festa em 25 de dezembro”. E os presentes? “Neste ano, só presentes dos adultos paras crianças. Não se toca no nome de Jesus Cristo, nem para o bem nem para o mal. Ou seja, é quase um ágape pagão, mas não se cogita passar em branco ou ficar em casa vendo filme. Há o peso da tradição na família”. Marshall explica que normalmente há discussões sobre ateísmo nas reuniões familiares, mas que estas cessam no final do ano. “A convivência é mais importante, mesmo que o ateísmo predomine, o que é o nosso caso”.

O presidente da ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), Daniel Sottomaior, comemora tranquilamente e não se incomoda com a data. “A origem da festa não guarda o menor traço de cristianismo: é o Solis Invictus, o Solstício de inverno. Tenho uma filha de 7 anos que adora o 25 de dezembro. Nossa árvore é uma árvore de Newtal, referência a Isaac Newton, que nasceu nesta data e que descobriu a Lei da Gravidade. Ela tem maçãs, luzes e debaixo dela, um volume dos Principia (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural) do autor. Os outros simbolismos – perus, renas, presentes, árvores, Roberto Carlos – , nada disso nasceu com o Natal. Estamos apenas retomando uma data pagã que foi roubada pela igreja”.

Sottomaior: “Nossa árvore é uma árvore de Newtal, referência a Isaac Newton”. Reprodução/Flickr

A fala de Sottomaior encontra eco nos livros de história. A história do Natal começa, na verdade, pelo menos 7 mil anos antes do nascimento de Jesus. No hemisfério norte, o solstício de inverno era comemorado por marcar a noite mais longa do ano. No dia seguinte, ela seria paulatinamente mais curta, encaminhando o final do período ruim para as lavouras. Então, no solstício de inverno era festejada a melhoria das perspectivas. Era um tempo em que o homem deixava de ser caçador errante e começava a dominar a agricultura; então a volta dos dias mais longos significava a certeza de novas colheitas no ano seguinte. Na Mesopotâmia a celebração era enorme, com mais de dez dias de festa. Já os gregos cultuavam Dionísio no solstício, o deus do vinho e do prazer. Na China, as homenagens representavam a harmonia da natureza. Os povos antigos que habitavam a atual Grã-Bretanha criaram Stonehenge, monumento que começou a ser erguido em 3100 a.C. para marcar a trajetória do Sol ao longo do ano. Então, em 221 d.C., o historiador cristão Sextus Julius Africanus propôs à Igreja a fixação do nascimento de Jesus no dia 25 de dezembro. Aceita a proposta, a partir do século IV o Solis Invictus começou sua mutação. Ficou convencionado que Jesus nascera em 25 de dezembro e que as celebrações eram em sua honra.

Rickli: “Em alguns anos, em vez de usar pinheiros, enfeitávamos bananeiras de Natal”.

Mas voltemos a nossos personagens. Ralf Rickli, pedagogo e escritor, trabalhou por anos em comunidades carentes em São Paulo. “Nunca fiz proselitismo ateísta, mas explicava a meus alunos sobre a subjugação da cultura local em relação à do norte. Então, rejeitava os símbolos europeus, temperados, em favor de uma simbologia tropical. Em alguns anos, em vez de usar pinheiros, enfeitávamos bananeiras de Natal. Nossa celebração subversiva sempre foi um sucesso absoluto!. No passado, todos os anos eu pagava pontualmente o imposto familiar, que é o de ir à festa sem nenhuma vontade. Ficava quietinho. Minha mãe foi professora de escola dominical presbiteriana, sabe como é”. Hoje trabalhando em Vitória (ES), Ralf costuma passar o Natal sozinho. Diz que não se deprime, mas que se fosse convidado por alguém legal, iria se divertir com os amigos.

Cláudio Costa: “Muitas vezes a irritação vem da necessidade do cumprimento de um ritual ou até da necessidade de abraçar um familiar que lhe é desafeto”.

Por falar em depressão, Claudio Costa, psiquiatra e psicanalista mineiro, afirma que há efetivamente pessoas que se sentem excluídas de um fenômeno do qual gostariam de participar com alegria. “Isso ocorre independente de convicções religiosas. Em situações de festa, de alegria obrigatória e com hora marcada, muitos sentem desconforto por não se identificarem com a alegria. Sentem a situação com um beco sem saída. Quem não consegue ter uma crítica lúcida sobre a festa e liberar a sociedade das culpas, sente-se atingido. Muitas vezes a irritação vem da necessidade do cumprimento de um ritual ou até da necessidade de abraçar um familiar que lhe é desafeto. Porém, ao mesmo tempo que se irritam, essas pessoas “não conseguem não ir” e a consciência de que está cumprindo uma obrigação desagradável é causa de aborrecimento.

Estes são apenas alguns depoimentos que colhemos. A impressão geral que ficamos é de que os entrevistados – todos ateus declarados – veem a festa como uma ocasião para reunir a família, dar presentes para as crianças e refletir um pouco, o que está longe de ser negativo. Uma entrevistada que não deseja se identificar faz questão de expor uma restrição: “Olha, tudo bem, mas acho que perdemos alguma qualidade e liberdade que as celebrações pagãs deviam ter, sei lá”.

Publicado em 25 de dezembro de 2011 no Sul21.

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Nossa história, à venda: um castelo agoniza no pampa

Nossa história, à venda: um castelo agoniza no pampa
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A recepção | Foto: Milton Ribeiro (clique para ampliar)

Publicado em 18 de maio de 2014 no Sul21.

Logo na entrada, gravada nas lajes, lê-se a seguinte inscrição :

Bem-vindo à mansão que encerra
Dura lida e doce calma:
O arado que educa a terra;
O livro que amanha a alma.

Muito mais do que uma saudação, o verso deixa clara a ideologia de Joaquim Francisco de Assis Brasil. Trabalho e cultura, transpiração e conhecimento. O sonho do diplomata, político, advogado e escritor Joaquim Francisco de Assis Brasil, que transformou sua granja em uma moderna propriedade no campo, ornamentada por um castelo em estilo medieval, está à venda. Tombado desde 1999 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, o Castelo de Pedras Altas precisa de urgente reforma. A progressiva degradação do prédio de 44 cômodos e 12 lareiras ameaça o acervo do castelo, que contém, além de inúmeras peças históricas, uma valiosa biblioteca de 8 mil volumes.

Foto: assisbrasil.org
Foto: assisbrasil.org (clique para ampliar)

O Castelo, construído em granito rosa entre 1904 e 1909, está sendo vendido a portas fechadas, isto é, com tudo dentro. O pacote inclui diversos móveis de madeira maciça importados dos Estados Unidos e França, mais estátuas, espadas, relógios — entre eles, um que pertenceu a Bento Gonçalves — piano e a biblioteca. A biblioteca é famosa: há clássicos em inglês, francês e latim. Dentre as raridades, os 22 volumes da Enciclopédia Francesa de Diderot e D’Alambert, publicada em 1751.

O estilo medieval da construção — algo estranho para a região — foi um presente de Assis Brasil para sua esposa Lídia de São Mamede, filha de um conde europeu e que residia em um local semelhante na Europa. Outra intenção do diplomata nascido em São Gabriel era a de provar que era possível ser homem do campo sem ser rude. Assis Brasil queria enobrecer o campo. Para enobrecê-lo, ele não apenas comprou livros, mas também introduziu no local (e no Brasil) os gados Jersey e Devon, a ovelha Karakul e o cavalo árabe.

Foto: Cecília Assis Brasil
Foto: Cecília Assis Brasil

Com sua granja, Assis Brasil tentava demonstrar o que havia aprendido no exterior. Tinha a tese — na época revolucionária — de que uma área pequena e bem trabalhada poderia produzir mais do que as tradicionais fazendas gaúchas, onde o gado era criado sem maiores cuidados. Havia uma estação de trem próxima ao castelo, hoje desativada. Ali embarcavam animais das raças devon, jersey, karakul, além da lã de ovelha, banha de porco, queijos, manteiga e frutas secas. 

No sonho de Assis Brasil, o trabalho caminharia junto com a educação. “O arado e o livro são ferramentas do progresso”, escreveu. Depois de trabalharem na terra, os trabalhadores poderiam estudar. O que Assis Brasil não previu foi que a fazenda poderia até sobreviver de sua produção, mas jamais sustentar um oneroso Castelo que se ressentiria das infiltrações naturais do clima úmido do Pampa. O Castelo tem aparência medieval, mas seu projeto trazia novidades exclusivas, como o fato de os banheiros ficarem dentro da fortaleza, numa época em que a lei mandava instalar sanitários fora das casas. As coisas antigas se degradam. Já quando morreu, em 1938, Assis Brasil deixou dívidas que fizeram com que a família se desfizesse de 130 hectares.

Pensado como saída, o turismo cultural não decolou. Lídia Costa Pereira de Assis Brasil, neta de Assis Brasil, recebia os visitantes cobrando-lhes um ingresso. Mostrava o castelo com sabedoria e amor, mas era uma guardiã tanto esclarecida quanto feroz. Ai de alguém que se desgarrasse do grupo ou que chegasse muito próximo dos livros, ai de alguém fizesse uma piada sobre a foto abaixo ser a última imagem de Santos Dumont vivo. “Assis Brasil jamais errou um tiro!”, ouvimos ela afirmar, irritada (este é um relato de experiência  pessoal).

Assis Brasil alveja Santos Dumont: adeus, maçã.
Assis Brasil alveja Santos Dumont: adeus, maçã | Foto: assisbrasil.org

O Castelo não é apenas um curioso exemplar arquitetônico, ele tem história. Ali, deu-se a assinatura do acordo de paz que encerrou a revolução gaúcha de 1923.  Em sua biblioteca foi assinada a paz de Pedras Altas entre as forças políticas que apoiavam Borges de Medeiros e suas enjoativas reeleições — foi presidente do estado entre 1898 e 1927 — e aquelas que se insurgiam contra o fato. A paz foi assinada em 14 de dezembro de 1923. A Revolução de 23 durou apenas 11 meses, mas assustou um estado onde — com suas degolas — estavam presentes as lembranças da guerra de 1893, o mais sangrento dos confrontos da história do Rio Grande. O recomeço de um confronto entre chimangos e maragatos preocupava o estado. O acordo impedia Borges de Medeiros de se recandidatar após concluir seu mandato. Deste modo, ele poderia finalmente tornar-se nome de avenidas em todo o estado.

Inspiração para o título desta matéria, o escritor e atual Secretário de Cultura Luiz Antônio Assis Brasil, primo de Lídia, escreveu a série de três romances Um Castelo no Pampa, formado por Perversas FamíliasPedra da Memória e Os Senhores do Século. Lá está, como um dos personagens principais, o velho Assis Brasil. A forma como ele é descrito nos romances deixou Lídia ressentida. Os dois se relacionam educadamente, como se fossem embaixadores de duas nações inimigas. Anos antes, quando esteve no Castelo, Assis Brasil teve acesso à biblioteca e examinou seu exemplar da Enciclopédia Francesa. “O livro está em perfeito estado, como se tivesse sido publicado neste ano”. Fica a dúvida se alguém, além do “velho” Assis Brasil, consultou aquela obra.

Foto: assisbrasil.org
Foto: assisbrasil.org

Antes dos 20 herdeiros decidirem-se pela venda, houve várias tentativas de captação de recursos para a restauração do castelo. Por intermédio da Lei Rouanet, o projeto foi aprovado em 2008 pelo Ministério da Cultura, mas não apareceram interessados. Segundo Lídia, nem todos os herdeiros concordaram em ceder a documentação necessária à captação da verba para o restauro. Por enquanto, a propriedade não está à venda para o público: “Por ser um patrimônio tombado, primeiro temos que oferecer ao município, ao estado e à União. Eles têm preferência. É o processo normal”, explica. O Castelo foi oferecido ao município de Pedras Altas, ao Estado e à União. Ninguém respondeu ainda. Os corretores de imóveis escolhidos pela família estão sendo orientados pelo Iphae (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do estado) e quem comprar a granja terá que continuar respeitando as regras do tombamento.

Lídia Assis Brasil diz que a falta de incentivos governamentais e de empresas para manter a estrutura foi o principal motivo que levou a família a tomar a decisão da venda. “São muitas as dificuldades para manter o edifício. Porém, pensar que o patrimônio e a história terão a oportunidade de serem preservados pelo novo proprietário é o que nos consola. De qualquer maneira, está sendo uma fase muito difícil”, revela.

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Maria Luiza & Milton (meu pai)

Maria Luiza & Milton (meu pai)

Abaixo, minha mãe, Maria Luiza, aos 21 anos. A foto é de 7 de março de 1949.

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No verso da foto, meu pai escreveu de forma bem portuguesa, cheia de diminutivos carinhosos: “Está ou não está um verdadeiro amorzinho a minha Luizinha neste fotografia?”.

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Três fotos

Três fotos

Esta é minha foto preferida de infância. Meu pai escreveu atrás dela: 31 de julho de 1965. Então, era aniversário de 13 anos de minha irmã Iracema Gonçalves e eu tinha sete, quase oito anos. O filhote era o Rex, que viveu 18 anos, me suportando até meus 23 anos.

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Os dois apaixonados abaixo somos eu e minha mãe, a Dra. Maria Luiza. Como confio na minha memória, não lembro de que ano é a foto, mas acho que eu estou na faixa dos 30 e ela na dos 60, pois ela tinha exatamente 30 anos a mais do que eu.

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A terceira é de 2002, foi tirada por Bernardo Jardim Ribeiro, em pé, sobre uma cama da Pousada Don Giovanni, de Bento Gonçalves. Chovia muito, estava quase zero grau e a gente tinha que inventar coisas para passar o tempo. Essa pousada é o máximo. Indico a todos.

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O estado de espírito deste que pouco vos escreve

Minha mãe morou por uns três anos numa edícula que há em minha casa. Ali, ficava com um fantástico time de “cuidadoras de idosos” (1). Porém, no último primeiro de maio, a levamos para uma casa geriátrica. Lá, haveria mais revisões médicas, além de fisioterapeutas, nutricionistas, etc., pois o estágio em que está a doença da Dra. Maria Luiza não permite que ela comunique nenhum problema, dor, sede ou fome. Pensa-se que ela sofra de uma doença parkinsoniana (como o Mal de Alzheimer) chamada Demência por Corpos de Lewy (ou Lewis). É quase a mesma coisa que o Alz.

Foi estranha sua saída daqui. Eu pouco ía ali atrás, mas ouvia tudo. Por um interessante fenômeno físico, o som sobe mais facilmente do que desce e eu ouvia cada grito durante o banho, cada reclamação e cada telefonema dado pelas cuidadoras. Estabelecia um controle não presencial e, para demonstrar minha ubiquidade, perguntava sacanamante sobre os assuntos que as cuidadoras discutiam durante seus telefonemas pessoais.

— E daí, e o caso da fulaninha, como ficou?

Tudo pela mãe da gente… Isto demonstrava que eu sabia de tudo, como se fosse o Grande Irmão de Orwell.

Ontem, 5 de julho, minha mãe completou 83 anos e, por uma dessas coisas inexplicáveis, ela estava interagindo com as pessoas. Cheguei lá às 14h30 e ela não apenas me reconheceu e chamou pelo nome, como disse que havia uma mulher chata que não parava de berrar no quarto ao lado. Este é um gênero de fato que faz os filhos pensarem numa impossível recuperação. Infelizmente, desejo não significa possibilidade. Sabemos que tais episódios de lucidez são como se ela tivesse encontrado algum canto limpo num parabrisa irremediavelmente sujo que logo receberá mais pó. Mas a gente gosta de se enganar e dizer que ela está melhor. E ontem estava muito melhor. Então a gente sai de lá animado, sem conseguir ou querer pensar que está sendo ilógico. Aproveitei para perguntar se ela estava bem, se sentia alguma dor.

— Não, Milton, estou muito bem.

Fazia meses que eu não interagia com ela. Em minhas visitas à clínica, ficávamos apenas de mãos dadas e eu dava-lhe uns beijos. Esta linguagem sempre foi bem compreendida. Pode estar no mais distante dos mundos, na maior das alucinações, mas, se sente um rosto próximo, faz um biquinho e beija. Porém, ontem ela bateu papo e deu risadas. Quando arrotou, por exemplo. Após reclamar que estava comendo um doce muito doce, pediu água e arrotou. Caiu na risada, prova de que seu vislumbre incluía alguma noção de conveniência. Quando propus-lhe passear na rua de cadeira de rodas, sua resposta veio no perfeito português que sempre utilizou:

— Não julgo conveniente.

OK, Maria Luiza.

Canso quando vou lá. Não parece me atingir — será isso o que chamam de “coragem”?… e o que seria não ter a tal coragem? — e apenas me dou conta quando volto para casa. Parece que corri 10 Km. Me dá vontade de dormir. Perco a fome. Meus desejos ficam simples e nem quero ver meus inimigos pendurados nas árvores (2). Me bastaria um final de vida sem dor para minha bobinha feliz… Acho que ela poderia ficar igualzinha a quem vê muita TV, né?

-=-=-=-

(1) Uma delas, A MELHOR DE TODAS, está desempregada. Quem precisar que aproveite. Tenho o telefone dela.

(2) Citação de famoso trecho de Heine, que não tem nada a ver com a circunstância descrita:

Eu tenho uma mentalidade pacífica. Meus desejos são simples: uma cabana modesta, telhado de palha, uma boa cama, boa comida, leite e manteiga; em frente à janela, flores; em frente à porta, algumas belas árvores. E, se o bom Deus quiser me fazer completamente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos nelas pendurados. De coração comovido eu haverei, antes de suas mortes, de perdoar todas as iniqüidades que em vida me infligiram — sim, temos de perdoar nossos inimigos, jamais antes, porém, de eles serem enforcados.

Trad. de Marcelo Backes.

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