Era quase 25 de setembro, dia do aniversário de minha filha e de Shostakovich, e ele foi o ponto alto de um programa que também comemorava o centenário de Lutoslawski (1913-1994) e os 90 anos de Ligeti (1923-2006).
Tudo começou com o polonês. Como não sou original, gosto do neoclássico Concerto para Orquestra de Lutos. Ele é um compositor originalíssimo, que trafegou do tango ao dodecafonismo, do foxtrot à música aleatória. Os Jogos venezianos, para pequena orquestra, apresentados ontem à noite, são o ponto da virada na carreira de Lutoslawski, quando ele abraça o princípio aleatório. O resultado é bem complexo e sujeito a um acaso controlado pelo esqueleto organizado por Lutos. É daquele tipo de obra em que os músicos combinam: “Vai cada um prum lado e nos vemos em 15 minutos, tá?” Eu curti a obra mais pela cara dos músicos, alguns loucos para rirem, fato confirmado logo após o concerto — com exceções. Jogos venezianos parece trilha sonora de um mau filme de terror. Bem diferente do caso de…
A coisa ficou MUITO mais bonita com Lontano, para grande orquestra. Pelo lado da frente, é uma música de interessantíssima textura, bela como um tapete árabe; vista por trás, é densa e ultramicrocosturada em sua polifonia. Trata-se de um jogo de sombras composto de harmonias mahlerianas com reflexos de Bach. A música de Ligeti — ao menos as obras menos sarcásticas deste grande compositor — paira acima de nós, fora do alcance. Não é para menos que Stanley Kubrick utilizou-a em momentos cruciais de 2001 (com Lux Aeterna) e de O Iluminado — justamente com as lentas transformações de Lontano. A Musica ricercata também foi utilizada em De olhos bem fechados. Foi a primeira vez que a Ospa apresentou uma obra de Ligeti, Saiu-se bastante bem.
O excelente programa foi finalizado com o aniversariante de hoje, Dmitri Shostakovich. Espécie de condensado de Shosta — incluindo lirismo, bom humor, ecos populares e militares, além de um daqueles moderati dilacerantes, tudo em versão curta –, o Concerto Nº 1 para piano, trompete e cordas é maravilhoso. Shostakovich foi bom pianista. Poderia ter feito carreira como tal, mas, para nossa sorte, escolheu compor. Foi o vencedor do internacional Concurso Chopin de 1927 e fazia apresentações regulares executando seus trabalhos. O pequeno número de gravações do próprio compositor como pianista talvez deva-se ao fato de ele ter perdido parcialmente os movimentos de sua mão direita ao final dos anos sessenta. Há registros no YouTube de Shostakovich tocando como um velocista o Finale deste concerto.
Trata-se de uma obra espetacular. Era uma boa época para os concertos para piano. O de Ravel aparecera um ano antes, assim como o 5º de Prokofiev. É coincidente que os três sejam alegres, luminosos, divertidos mesmo. É formado de quatro movimentos, sendo o primeiro muito melodioso e gentil, os dois centrais lentos e o último capaz de provocar gargalhadas. A participação de um trompetista meio espalhafatoso é fundamental, assim como de um pianista que possa fazer rapidamente a conversão entre a música de cabaré e a música militar exigidas no último movimento. Vi ontem como as pessoas sorriam durante a audição deste movimento. Não há pontos baixos neste concerto.
A pianista Catarina Domenici saiu-se muito bem, assim como o trompetista — da Ospa — Elieser Fernandes Ribeiro. Este aliás, é tão bom que a orquestra deveria explorá-lo mais. O que o homem toca não é brincadeira. O regente Antônio Borges-Cunha é das poucas pessoas de Porto Alegre que têm coragem de encarar um repertório desses. Só por isso já merece elogios. Afinal de contas, de mesmice basta eu.