Mais um bonito livro da finada CosacNaify. Este é de 2012 e seus dois pequenos volumes vinham enrolados numa imensa folha de um jornal de São Petersburgo de 1836. Era realmente uma obra de arte (veja foto ao final da resenha para entender como os dois pequenos volumes vinham acondicionados). Um dos volumes era o muito cronístico Notas de São Petersburgo de 1836 e o outro — um pouco maior e bonito — era Avenida Niévski.
Avenida Niévski conta o cotidiano desta que é a rua principal de São Petersburgo e aparentemente um dos grandes amores de Gógol. O que é retratado no conto é cotidiano da rua, com seus horários, características, casas comerciais, governamentais e praças, para depois focar-se em dois personagens.
O primeiro é o jovem pintor Piskarióv. Ele vê uma linda mulher caminhando pela avenida e a segue. Ele nota que ela incentiva sua aproximação e fica louco de amor. Mas ambos, em vez de chegarem a uma casa respeitável onde a donzela mora com os pais, vão dar num puteiro chique. Só que o encanto da moça não abandona Piskarióv. Sob o efeito do ópio, ele a imagina virtuosa e vai procurá-la. Paramos por aqui.
O segundo é o tenente Pirogóv, um oficial russo também fisgado pela beleza de uma moça, que descobre ser casada com um artesão alemão. Mesmo assim, ele — extremamente confiante e vaidoso — vai atrás. E, novamente, paramos por aqui.
A fim de nos dar a impressão de estarmos passeando pela Niévski, as páginas do volume são divididas pela metade, em duas partes. A de cima com as letras normais e a de baixo com letras de cabeça para baixo. Assim:
Então, lendo a parte de cima, a gente vai toda a rua por uma calçada, chegamos ao final, viramos o livro e voltamos pela outra calçada, se me entendem. Tudo isso acompanhado de desenhos da própria avenida. Como eu disse, este livro é um objeto de arte.
O outro volume, Notas de Petersburgo de 1836 é um retrato comparativo da vida cultural de Moscou e São Petersburgo da época, com grande foco no teatro. É bastante interessante. São cidades muito diferentes. Em gostos, nas ocupações, divertimento, posturas, vaidades…
Sem jamais perder sua gloriosa e característica verve humorística, Gógol faz de O Capote uma obra-prima de compaixão humana para com a pobreza e a falta de perspectivas de outrem. “Todos nós descendemos de O Capote“, afirmava Dostoiévski. Otto Maria Carpeaux escreveu, concordando com Dostô: “Gógol é o fundador da grande literatura russa do século XIX. Do Capote descende toda aquela literatura de compaixão algo sádica de Dostoiévski e a sensibilidade cinzenta de Tchékov que, assim como o próprio Gógol, chorava por trás do riso do humorista”.
Sem spoilers. O Capote narra a história de Akaki Akakiévitch, funcionário público em São Petersburgo. O protagonista é um solitário e copista de processos que vive para seu trabalho mas que é alvo das brincadeiras de seus colegas em razão de seu casacão — o tal capote — gastíssimo e puído. Ele passa frio com ele durante o inverno. É claro que não contarei o restante da ótima história.
A novela O Retrato é menos conhecida, mas não é muito inferior, não. Tchartkov é um pintor em início de carreira que se vê pressionado por dívidas e está sob a perseguição do proprietário do apartamento onde mora. Um dia, num mercado, ele adquire por baixo preço uma pintura, um retrato que o deixa muito intrigado. Há ali um olhar perturbador, impossível de não considerar. E ele vai cumprir uma rotina de Fausto. O segundo e esclarecedor capítulo é extraordinário.
Tinha lido Almas Mortas quando adolescente, lá nos anos 70. O romance era o volume 42 da coleção Os Imortais da Literatura Universal, da Abril Cultural (livros vermelhos, capa dura, letras douradas, já viram?). Mas aquela velha tradução — mesmo sendo de autoria da ótima Tatiana Belinky — não se compara com o esplêndido trabalho de Rubens Figueiredo na edição recém lançada pela fundamental Editora 34.
Almas Mortas é um livro especialíssimo por diversas razões. Comecemos pelo fato de ser um romance inacabado. Explico: após publicar a primeira parte, Gógol tentou várias vezes completar o romance. Na segunda parte, ele demonstraria seu amor à Rússia e aos russos. Ele fez várias tentativas de escrevê-la e queimou várias vezes os manuscritos da mesma. O caso foi grave. Ele trabalhava um, dois anos e queimava. Escrevia mais e voltava a queimar tudo. Acho que o artista venceu. Ele não quis matar a primeira parte, dobrando-se a quem o criticara por ridicularizar seu país.
Em segundo lugar, há a modernidade. Na verdade, em muitos manuais de literatura o romance é qualificado como a primeira obra moderna da literatura russa. A leitura do livro confirma. O romance é moderno na criação de personagens nem bons nem maus, nem virtuosos nem exatamente corruptos, nem lindos nem feios, nem isso nem aquilo, nem gordos nem magros, como tantas vezes brinca Gógol. Durante a leitura, você esquece que aquilo foi escrito há quase dois séculos e com o romantismo ainda lacrimejando na Europa. Gógol concebeu uma obra que mostra a náusea da sociedade russa (e, por que não, de qualquer sociedade) através de uma história que se desenrola com extrema agilidade. Porque o enredo do livro, longe de ser um acessório, é um elemento importante. Vamos a ele SEM spoilers.
O hilariante Almas Mortas conta a história de Tchítchikov, um personagem que chega um dia à cidade de N. para empreender um negócio desconcertante. Ele busca estabelecer relações com os mais importantes proprietários de terra do lugar e faz a eles uma estranha oferta: comprar seus servos já falecidos a fim de que eles não precisem mais pagar ao Estado os impostos relativos àqueles. Ou seja, em linguagem do Brasil Imperial, ele comprava escravos mortos. As reações variam muito, mas ninguém sabe exatamente o motivo pelo qual Tchítchikov precisa das tais almas mortas.
As viagens de Tchítchikov dão-nos uma excelente visão da relação entre proprietários e servos e do funcionamento da economia da Rússia czarista. Mas há mais: de forma brilhante, Gógol cria alegorias, dando sentido a uma série de fatos aparentemente desconexos e de lógica escorregadia. Sob o manto de uma história cheia de humor e caricatura, de fervilhante energia, há outra realidade que o autor apenas nos deixa espreitar em momentos arrebatadores.
A resposta para a questão da compra de almas não é o ponto crucial do livro, mas contribui significativamente para criar uma atmosfera misteriosa em torno do personagem principal e de suas ações. Fundamental é o modo como Gógol retrata seus personagens. Tchítchikov é nobre na forma, mesquinho em pensamento. O cocheiro Selifán é bêbado e mentiroso. Nozdrióv é trapaceiro e escandaloso. Outros são corretíssimos e burros. Ou inteligentes. Ou corruptos. Enfim, uma fauna. São muitos personagens para descrevermos aqui, mas fica-se impressionado pela vivacidade deles. A gente devora o livro. Não há seres atormentados como em Dostoiévski. As criaturas de Gógol são mais amostras humorísticas de tipos sociais provavelmente existentes, acentuadas pela visão impiedosa do escritor.
Gógol ama descrever a figura do funcionário administrativo e retrata-o sempre de uma forma burlesca e satirizada. Todas as descrições apontam para uma sociedade extremamente burocratizada e de complexa hierarquia. Quando Tchítchikov chega à província, vai cumprimentar o governador, o vice-governador, o procurador, o presidente do tribunal, o chefe da polícia, os maiores donos de terra, os menores, os famosos alguéns, todo mundo. Ou seja…
O tema de Almas Mortas foi oferecido a Gógol por Púchkin. Os dois tinham-se conhecido em 1831. O seu relacionamento seria estreito e Gógol revelou a Púchkin os manuscritos do romance para serem avaliados. Púchkin esperava algo ainda mais cômico, mas aprovou o livro. Em 1842, os censores autorizaram a publicação do romance na Rússia e o escândalo, sobretudo entre as classes dirigentes, foi imediato. Acusaram Gógol de descrever uma Rússia falsa, muito pior do que ela seria. No livro, o país estaria afundado em tolice, ineficiência e corrupção.
Como já disse, a continuação de Almas Mortas foi destruída várias vezes. Naqueles anos, Gógol desenvolvera uma relação obsessiva com a religião. Sucessivas depressões levaram-no a recusar-se a ser tratado e alimentado, vindo a falecer em 1852, dez dias depois de ter queimado novamente o segundo tomo de Almas Mortas. Ainda hoje, gerações de leitores se perguntam como acabaria Tchítchikov. Um tanto cruelmente, podemos considerar a queima dos manuscritos de Gógol como seu último grande ato como escritor. Assim, ele nos legou uma obra incerta e ambígua. Sabemos que ele queria, nesta segunda parte, demonstrar a bondade do povo russo. Ele desejava melhorar a relação com quem o criticara… Ora, cremos que… Foi melhor deixar assim o herói canalha… A obra-prima está incompleta e isto é perfeito.
Trechos de uma carta de Nikolai Gógol:
Eu teria sido perdoado se [em ‘Almas Mortas’], tivesse retratado monstruosidades, mas por mostrar a vulgaridade não me perdoaram. O que assustou o homem russo foi a insignificância, mais do que os vícios e limitações. É um fenômeno impressionante! Um belo susto!
(…)
Quando eu comecei a ler para Púchkin os primeiro capítulos do livro, ele, que sempre rira com minhas leituras (ele era um apreciador do riso), foi aos poucos ficando soturno. Quando a leitura terminou, ele articulou em tom de voz melancólico: “Meu Deus, como é triste a nossa Rússia”.
Ele (Tchítchikov) percorre a nossa terra russa, encontra gentes de todas as condições, nobres e gente “pequena”. Se eu o escolhi foi para evidenciar não os méritos e as virtudes do povo russo, mas sim os seus defeitos e vícios.
É em vão que o senhor se indigna com o tom imoderado de alguns dos ataques a ‘Almas Mortas’. Isso tem seu lado bom. Por vezes, é necessário ter contra si os amargurados.
A apresentação de eventos ocorridos provam o caso muito melhor do que simples palavras e verborragia literária.