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Viajando com Airton Ortiz: “O melhor que a humanidade tem é a diversidade, são as diferenças”
Publicado em 12 de outubro de 2014 no Sul21
Esta é uma das mais longas entrevistas já publicadas pelo Sul21, certamente a mais longa publicada pela editoria de Cultura. Mas tão vasta foi a quantidade de informações que recebemos em plena Praça da Alfândega na manhã de quarta-feira, que não havia como fazer muitos cortes. Nela, o patrono da Feira do Livro de 2014, Airton Ortiz, respondeu a cada uma de nossas perguntas, descrevendo sua trajetória desde seu trabalho na editora Tchê até suas muitíssimas viagens. E não nos estenderemos mais porque o texto é longo, divertido, informal e muito, mas muito informativo.
Sul21 – Airton, tu és de Rio Pardo, não?
Airton Ortiz – É, eu nasci no interior do município de Rio Pardo, na Vila Ferroviária, interior do município. Morei ali até os 13 anos de idade, daí meus pais se mudaram para o interior de Candelária, perto dali, onde morei dos três aos 10 anos de idade. Curioso é que era uma encruzilhada. Em um lado da estrada, onde nós morávamos, era Candelária, no outro era Rio Pardo e no outro era Cachoeira. E a escolinha onde eu fui alfabetizado ficava em Cachoeira. Então eu fui alfabetizado em Cachoeira morando em Candelária. Hoje, minha escola, que tinha 18 alunos, é um centro educacional com quase 200 alunos. Eles me homenagearam dando meu nome para a biblioteca da escola. Com 10 anos, eu fui pra Cachoeira, onde morei até os 20. E vim para Porto Alegre a fim de fazer jornalismo na PUCRS, em 1977. Então, a minha trajetória dá para dividir entre esses três lugares: o interior de Rio Pardo, onde nasci e vivi até os 3 anos; o interior de Candelária, onde vivi dos três aos 10; e dos 10 aos 20, Cachoeira do Sul.
Sul21 – Eu li que tu foste funcionário do Banco do Brasil. Isso foi antes ou depois do jornalismo?
Airton – Antes. Para pagar a faculdade, eu fiz jornalismo na PUCRS.
Sul21 – Isso em 1975?
Airton – Sim, 1975. Como naquela época o curso de jornalismo na PUCRS era considerado um dos melhores do Brasil, eu optei por ela. Daí, na semana seguinte ao vestibular, eu fiz um concurso pro Banco do Brasil. Passei, assumi o cargo e tive que ir pro interior. Fui obrigado a trancar a matrícula na faculdade. Fiquei seis meses no interior, voltei pra Porto Alegre e, com meu emprego no Banco, paguei a faculdade.
Sul21 – O que tu fazia no banco?
Airton – Cara, eu arquivava fichas, ficava seis horas sentado arquivando fichinhas dos clientes do banco por ordem alfabética. Era um trabalho extremamente estressante, aquela rotina não tinha nada a ver comigo. Mas fiquei seis anos ali, terminei a faculdade, abri a editora Tchê e, quando achei que a editora já podia me manter, saí do banco. Então, o banco foi uma coisa importante na minha vida. Possibilitou que eu fizesse a faculdade e fizesse uma pequena economia via fundo de garantia para poder abrir a minha editora.
Sul21 – A editora Tchê era mais centrada em autores gaúchos, regionalismo?
Airton – A editora Tchê tinha como objetivo colocar na roda a cultura do Rio Grande do Sul. Ela era consequência do jornal Tchê, que surgiu um pouco antes da editora. Entre 81 e 82 vieram o jornal, a livraria e a editora.
Sul21 – Livraria?
Airton – Também abrimos a livraria Tchê, ali na Salgado Filho. O padrão do jornal era assim… Cara, não reinventamos a roda, o padrão era O Pasquim. Aliás, o jornal O Pasquim era também ligado a uma editora, a Codecri. E eles também abriram uma livraria no Rio. Uma coisa foi puxando a outra. Codecri queria dizer Comitê de Defesa do Crioléu. Imagina abrir uma editora hoje com esse nome! Era uma coisa incrível. O Pasquim era a cultura carioca, era o que de mais carioquês podia ter no mundo. E o Tchê era a versão gaudéria do Pasquim. Éramos todos fãs do Jaguar, do Ziraldo, do Henfil…
Sul21 – Que autores a Tchê publicou?
Airton – A Tchê publicou, durante 15 anos, cerca de mil títulos até que eu fechei a editora para me dedicar exclusivamente a escrever meus livros. A Tchê publicou boa parte do que está aí. Lançamos um monte de gente. O Carlos Urbim, que veio a ser também patrono da Feira do Livro, o Luiz Coronel, idem, o Celso Gutfriend, que era patronável junto comigo. Até brinquei que eu os lancei e eles me meteram essa bola nas costas de serem patronos antes de mim. E ainda disse pro Celso: tu não vai conseguir, Celso! A Tchê publicou uma quantidade enorme de jovens autores.
Sul21 – E o livro do Sargento Marco Polo Giordani que defende os militares da Ditadura?
Airton – A editora publicou mais ou menos mil livros de vários autores. Era uma editora comercial, não uma editora política, ela não veio para defender essa ou aquela ideologia. Eu sempre fui de esquerda, sou e vou morrer de esquerda. Mas a editora era uma editora plural. Nós publicamos, por exemplo, o Barbosa Lessa, que foi um dos fundadores e defendia o tradicionalismo e publicamos o Tau Golin, que o criticava. Porque o objetivo da editora nunca foi o de defender ou criticar o tradicionalismo, mas publicar pensadores que colocassem a disposição do publico ideias, opiniões, para que o leitor então se decidisse sobre qual linha queria seguir. Publicamos autores que defendiam o neoliberalismo, publicamos diversos autores adotados pelo Fórum da Liberdade de Porto Alegre, que é um movimento de empresários e, ao mesmo tempo, também publicamos os grandes pensadores marxistas aqui do Rio Grande do Sul, entre eles o governador Tarso Genro. Publicamos os livros do professor Otto Alcides Ohlweiler, que foi um grande ideólogo da esquerda aqui no Rio Grande do Sul, publicamos livros de políticos, publicamos o livro do Antônio Britto sobre a Constituinte. Publiquei livro do professor Sérgio Borja, que é o atual presidente da Academia Rio-Grandense de Letras, sobre o impeachment do Collor. Ele defendendo juridicamente o impeachment. O critério que eu tinha como editor era o mesmo critério que todo editor do mundo tem: publicar tudo que as pessoas possam se interessar. Nisso, apareceu um autor que, lá em 1986, foi o primeiro membro do aparelho repressivo que se assumiu como tal. Era o então sargento Marco Pollo Giordani e o livro chamava-se Brasil Sempre. Era uma resposta ao Brasil Nunca Mais. Ele disponibilizava uma série de documentos secretos do exército que nós da esquerda queríamos colocar a mão e não conseguíamos. Obviamente, só se eu fosse muito louco para sonegar do público as informações que ele trazia. O livro está sendo relançado agora, numa edição do autor. Qualquer pessoa, por mais imbecil que seja, sabe que um editor de jornal ou editora não tem que necessariamente compactuar com o que os autores escrevem. É diferente quando tu tens uma proposta ideológica. Uma editora do Partido Comunista, por exemplo, só vai publicar livros de comunistas. Então, essa polêmica não existe.
Sul21 – Bom, e aí tu fechaste a Tchê. Deves ter ganhado dinheiro, porque essas tuas viagens, né…
Airton – As minhas viagens são patrocinadas todas pelo Zaffari. Desde a primeira até hoje, faz 16 anos que eu tenho este patrocínio do Zaffari. As minhas viagens só são possíveis em razão deste mecenato. Hoje já não dependo tanto do patrocínio porque os livros já vendem no Brasil inteiro e eu poderia me bancar com os direitos autorais. Mas, voltando ao fechamento da Tchê: o Brasil passou por um momento econômico de grande concentração da economia com o Collor, as pequenas empresas brasileiras ou se uniram e formaram grandes empresas, ou foram absorvidas por grandes empresas, ou, caso da Tchê, fecharam.
Sul21 – Tu a fechaste em 1997?
Airton – Não, fechei em 2000, em 1997 eu comecei a viajar. Tinha que fechar a Tchê. As grandes livrarias vieram para Porto Alegre, comprando ou absorvendo as livrarias que tínhamos aqui. Chegou um momento em que eu, para vender um livro para as livrarias de Porto Alegre, tinha que ir à São Paulo. Porque a Cultura comprava lá, e também a Saraiva, a Siciliano, etc.
Sul21 – Isso permanece até hoje.
Airton – Sim, estamos numa época em que o mercado livreiro se concentrou nas mãos das grandes redes de livrarias e o mercado editorial se concentrou na mão das editoras estrangeiras. As grandes editoras brasileiras hoje, com a exceção Record e da Saraiva, são de capital estrangeiro. E não sobrou espaço para as pequenas editoras independentes.
Sul21 – Vamos aos livros, qual é a tua proposta?
Airton – A minha proposta como o autor é a mesma que tinha como editor. Levar e disponibilizar conhecimento para as pessoas. Porque eu acho que o acesso ao conhecimento é o maior direito que o ser humano tem, porque só o conhecimento nos liberta, de tudo e de todos, inclusive de nós mesmos. E o instrumento mais fácil de se acessar o conhecimento com profundidade é o livro. O livro é o elemento mais libertador que o ser humano tem, pois nos ensina a pensar e o pensamento liberta. Então, o meu projeto foi unir minha vontade de viajar pelo mundo, que sempre tive, e meu esporte predileto, que é o de escalar montanhas. Tentei viver disso. E achei uma forma de conciliar tudo, que era escrever sobre as minhas expedições pelo mundo. Para meu primeiro livro, de 1997, eu escalei a montanha mais alta da África, que fica na Tanzânia, e voltei de lá com uma história de final feliz, pois consegui chegar ao cume da montanha mais alta da África e uma das mais altas do mundo. E até chegar lá eu vivi uma série de peripécias — fui preso, fui assaltado…
Sul21 – Por que tu foste preso?
Airton – Fui preso porque da África do Sul para Moçambique eu tinha que passar pela Suazilândia, e lá eu peguei carona em uma Kombi. Na fronteira da Suazilândia com Moçambique, o pessoal da Kombi foi preso porque eram pequenos contrabandistas. Eles buscavam na África do Sul essas bugigangas que hoje vamos comprar aqui no Paraguai. Nada sofisticado — levavam conservas, enlatados, leite em pó, sabão em pó, coisas que difíceis de se conseguir em Moçambique. E eu, que peguei carona com esses caras, não tinha a menor ideia disso. E na fronteira foi todo mundo preso, e eu junto. Como eu era estrangeiro, tive um tratamento especial. Quando souberam que eu era brasileiro, um oficial da alfândega perguntou se eu era amigo do Pelé. Eu respondi que era íntimo dele e por isso ele me liberou. Eu escrevi o livro em 1998 e publiquei em 1999. Desde então eu lanço um livro por ano contando as minhas expedições.
Sul21 – Tu és fotógrafo também?
Airton – Também, mas amador. Porque como eu vou normalmente a lugares de difícil acesso, eu mesmo tenho que tirar as fotografias. São lugares aos quais, às vezes, nunca chegou um fotógrafo antes. Tenho um acervo com cerca de 100 mil fotografias do mundo inteiro, mas não sou fotógrafo profissional, minha linguagem é a escrita. A linguagem jornalística nos livros de reportagens, a linguagem do cronista nos livros de crônicas sobre cidades, e a linguagem de romancista nos dois romances que escrevi, cujos temas também são viagens de aventura.
Sul21 – Depois do primeiro livro foste para o Everest, Tibete…
Airton – O segundo livro chama-se Na Estrada do Everest. Eu refiz a trilha da primeira expedição que escalou o monte Everest em 1953. O terceiro livro foi Pelos Caminhos do Tibete. Eu fiquei uma temporada lá camuflado entre os monges. Eu entrei de maneira clandestina no Tibete pelo Himalaia, que faz a fronteira entre o Nepal e o Tibete. O Tibete é um país militarmente ocupado pela China, por isso os chineses não me deram autorização para entrar. Eles não permitem a entrada de jornalistas independentes, a não ser que vá junto com um oficial do governo chinês e isso eu não queria. Aí em Katmandu, eu fiz amizade com a resistência tibetana, e eles me colocaram clandestinamente lá dentro. E isso gerou o livro. Depois o quarto livro foi sobre o Alasca, o quinto foi sobre a Amazônia, depois foi sobre Índia…
Sul21 – E no Alasca tu sofreste bastante?
Airton – No Alasca eu peguei -40ºC. E eu acampei um tempo em uma área selvagem junto com ursos, lobos, com todo aquele tipo de animal selvagem, como alces, renas. Os caras me levaram lá e depois foram me buscar. Eu queria testar a minha resistência psicológica a um ambiente adverso como aquele. Era dia sempre, eu não levei relógio, não sabia se era meio-dia ou meia-noite. Comia quando sentia fome, dormia quando tinha sono, completamente isolado no meio dos animais. E, à medida que o tempo foi passando, fui me adaptando àquele ambiente, e no final eu já fazia longas caminhadas fora do acampamento.
Sul21 – E depois foi a Índia?
Airton – Sim, uma experiência maravilhosa, percorri toda a Índia de trem, por isso o nome do livro é Expresso para a Índia. Foi o país, do ponto de vista cultural, mais interessante que eu já visitei.
Sul21 – Aqui, pelo que eu noto, tu dás uma parada na questão montanhismo. Tu vens pro mundo plano…
Airton – Aqui eu iniciei o que eu chamo de “grandes travessias”. A cultura popular de um povo ela é muito, mas muito mesmo, consequência de sua concepção religiosa. Se tu pegares a Bahia, vais ver que na cultura baiana tudo tem a ver com o candomblé. Se pegares aqui no sul, tudo tem a ver com catolicismo. E assim por diante. Se pegares certas regiões de Santa Catarina, tudo tem a ver com protestantismo. Como a Índia é um país politeísta, a concepção religiosa deles é muito fragmentada, isso gerou uma cultura popular riquíssima. Então, do ponto de vista cultural, a Índia é o país mais interessante do mundo. E o pessoal pergunta sempre isso, qual o país mais interessante… E não dá pra ti escolher um só. O Tibete, por exemplo, é o país mais diferente que eu já vi até hoje.
Sul21 – Hoje, os brasileiros viajam mais.
Airton – O brasileiro está viajando mais, e isso é ótimo, maravilhoso. O que a viagem traz de mais importante para a gente é que ela nos coloca em contato com o diferente. E, à medida que nós vamos viajando, vamos constatando que o contato com o diferente é a maior arma contra o preconceito. Vemos que somos apenas um detalhe em todo o mosaico humano e cultural que há no planeta, e vamos nos dando conta de que somos um pedacinho só, e não o pior, nem o melhor. A gente vai aprendendo a respeitar a cultura alheia. Então, o grande resultado das viagens é nos colocar em contato com as diferenças. E eu digo que de melhor que a humanidade tem é a diversidade. O direito que cada pessoa tem de ser única, que cada cultura tem de ser única, que cada povo tem de ser único, isso é o que de mais importante temos. E aí a gente consegue ter uma visão holística, do mundo, da vida. Bom, o brasileiro está viajando cada vez mais, agora falta um segundo estágio que é o de aprender a viajar. Não se viaja em busca do que tem aqui. Por que a gente viaja? A gente viaja em busca daquilo que só tem naquele lugar. E eu venho martelando muito nisso, quero ajudar as pessoas a viajarem, quero colocar toda essa minha experiência à serviço das pessoas.
Sul21 – Na Europa, vi um brasileiro reclamando que no centro de Praga não tinha shopping center…
Airton – É um absurdo, a gente viaja em busca daquilo que só tem naquele lugar. Por isso é que, das viagens que eu fiz, a mais interessante foi a do Tibete. Lá é tudo diferente do que temos aqui. A noção que eles tem do tempo, tudo. Eu conversando com um tibetano falei: “Pô, no Tibete né, vocês aqui, tá certo que é um país de monges, mas a China vem há mais de 60 anos oprimindo vocês, vocês precisam se libertar”. E ele respondeu: “Não tem problema, vamos nos libertar da China. É uma questão de tempo, pode levar 1000 anos, 2000 anos, vamos nos libertar”. O tempo para eles é diferente dessa pressa que a gente tem aqui no Ocidente. Uma vez eu disse uma frase que meus amigos gostaram muito, eu disse que nada é mais velho que o jornal de ontem. Mas, poxa, ontem recém aconteceu!
Sul21 – Então quer dizer que, na tua opinião, a Índia é o lugar mais interessante, e o que tu mais gostaste é o Tibete?
Airton – Do ponto de vista da cultura popular, a Índia é o país mais rico, porque é a cultura popular mais diversificada que tem no mundo. Porque ela é muito consequência da religião e o politeísmo indiano é extremamente fragmentado. O Tibete é o país mais interessante do mundo porque lá as coisas são únicas. O que tem no Tibete, tu só vais encontrar lá, essa é a frase. Por exemplo, a Tanzânia é o país mais interessante do mundo para admirar a natureza selvagem. Tu vais de jipe pelo país e um terço da Tanzânia são parques naturais. Eles se deram conta que a melhor maneira de ganhar dinheiro é preservar a natureza, principalmente a fauna que eles tem lá. Então tu vais andando de jipe e precisa parar para passarem os elefantes, as girafas que vivem ali. Depois de dois minutos, leões. E o país mais interessante do mundo do ponto da geografia, digamos assim, é o Nepal. A fronteira sul do Nepal está na margem do Ganges, a nível do mar e a fronteira norte é a cordilheira do Himalaia, que tem o Everest, o ponto mais alto do mundo. Então, em uma caminhada, como daqui até Torres tu encontras toda a topografia do mundo e todo o clima.
Sul21 – E depois foste para a Amazônia?
Airton – Foi uma experiência maravilhosa. A viagem para a Amazônia foi também única. Eu não tinha nunca a informação se poderia continuar daquela aldeia em que eu estava para outra. Minha pauta de aventura era cruzar a América do Sul, do Pacífico ao Atlântico, por dentro da selva amazônica. Sair de Lima no Peru e chegar em Belém do Pará. Fui buscar informações e não consegui ninguém que me dissessem “vai que dá”. Foi um voo cego, eu fui indo, de aldeia indígena em aldeia indígena, de uma cidadezinha ribeirinha à outra, de um povoadozinho à outro, e sempre de barco, às vezes nos barcos de linha que eles têm, que eu achei maravilhosos. Eles têm barcos de linha, que são barcos que fazem sempre a mesma viagem levando carga e os passageiros. Usei até as pirogas, aquelas canoas estreitinhas e compridas que é pra ter velocidade. Fui indo, indo, e cheguei no Atlântico assim. Então esse livro foi fantástico porque eu nunca sabia se no dia seguinte eu ia poder continuar. Percorri toda a Amazônia brasileira, uma coisa extraordinária.
Sul21 – E há o calor. Manaus é uma cidade complicada.
Airton – O pior de Manaus é o vapor, porque o calor seco não tem problema, já peguei 55ºC no deserto do Saara e foi tranquilo. Mas o vapor… Por isso muita gente chega na Índia e volta, não aguenta. Eu encontrei uma tribo no interior da Amazônia peruana, perto de Iquitos, uma cidade de 400 mil habitantes, que a estrada mais próxima está há mil km de distância. O acesso é todo por rio, e é uma cidade grande. Lá a tradição é que a índia, quando casa, passa a primeira noite ela passa com o cacique. Só na segunda noite é que ela vai para o marido. Isso é uma tradição medieval europeia, tu deves ter assistido, o filme Coração Valente… E eu encontrei isso lá na Amazônia. É uma coisa que as pessoas não sabem porque não vão lá. Eu dei uma palestra na Universidade Federal de Manaus e brinquei “Pô, tem que trazer um gaúcho pra falar da Amazônia pra vocês”. E aí eles me disseram que a maioria dos livros sobre a Amazônia foram escritos por autores que copiaram de outros livros, que não foram na floresta. Tem muito disso hoje né, as pessoas fazem estudos sobre a Amazônia a partir da informação bibliográfica e reproduz algo que já se sabe. E, se alguém escreveu alguma coisa errada, o erro se perpetua.
Sul21 – Depois teve o Egito…
Airton – Depois teve o Egito, que foi uma viagem fantástica também, porque eu cruzei o deserto do Saara de forma clandestina. Primeiro de jipe, depois com uma caravana de camelos. Eu saí da fronteira do Egito com a Líbia e cruzei parte do deserto num jipe preparado para andar na areia. Depois não tinha como o jipe avançar e aí me juntei a uma caravana de camelos. Nessa viagem, o Beto Scliar, filho do Moacyr Scliar, me acompanhou como fotógrafo. Ele se formou em fotografia em uma universidade de Nova Iorque, e aí o Moacyr me ligoue disse: “Ortiz, na próxima viagem que tu fores, leva o Beto. Pra ele aprender um pouco de experiência de vida, ele é um filho super protegido de mãe judia, vê se ele aprende a fotografar na vida real mesmo”. Quando nós chegamos num oásis já assim há 50 km de Luxor, fomos interceptados e presos pelo exército egípcio porque não tínhamos autorização para realizar aquela travessia. Então eu fiz como sempre faço, eu vou até que alguém me prenda. Aí prenderam a mim, ao Beto e a um mexicano que estava conosco. Colocaram-nos em um trem e nos expulsaram do Egito. Na primeira parada do trem nós pulamos, contratamos um barquinho, uma espécie de canoa com uma vela que desce o Nilo. E descemos clandestinos pelo Rio Nilo durante quatro dias até chegar em Luxor, onde eu queria chegar. Tudo isso sem poder atracar nas margens porque numa delas o exército nos pegaria e, na outra, os terroristas nos pegariam porque é uma área onde os muçulmanos fundamentalistas usam como base operacional, nem o exército vai lá. Então precisávamos ficar no meio. O rio corre do continente para o mediterrâneo, e o vento sopra do mediterrâneo para o continente, então quando a velocidade da água é a mesma do vento, a gente fica parado. Um dia ficamos dez horas parados! Foi demais, uma viagem maravilhosa! Mas cheguei a Luxor, que era o objetivo da viagem.
Sul21 – Depois foste na Trilha da Humanidade, que é saída da África pela Ásia, Alasca até chegar na América, a travessia do homem…?
Airton – É, é uma volta ao mundo mesmo. Eu me propus a reconstituir a história da espécie humana desde o momento em que nós surgimos como uma espécie separada dos demais primatas, até chegar aqui no Brasil. Hoje, quando chamam um humano de macaco, estão ofendendo o macaco, e não o humano. Porque essa história que a gente se originou do macaco, é uma grande bobagem. O macaco se originou do humano, o chipanzé que está no zoológico, no circo, que a gente acha bonitinho, e que pra nós é o macaco, ele é uma ramificação nossa. O que se diz e que as pessoas não entendem muito bem, é que havia grandes primatas, e esses primatas se subdividiram em diversas espécies, e uma das espécies em que eles se subdividiram gerou os humanos, e outras espécies geraram os grandes símios. E essa espécie que gerou os humanos foi se bifurcando, uma dessas bifurcações gerou o chimpanzé. Então o que o cientista considera humano… Eu fui de sítio arqueológico em sítio arqueológico, sempre com datação mais recente, seguindo essa expansão deles pelo mundo. Quando estes bípedes chegaram ao Oriente Médio, onde hoje fica Israel, uns migraram para a Europa e outros migraram para a Ásia atrás das grandes manadas de mamutes. A expansão humana pelo mundo se deu sempre atrás de comida. Chegando ao Oriente Médio, eu segui essa trilha deixada pelos caras que cruzaram toda a Ásia e entraram nas Américas pelo Estreito de Bering. Porque quando eles entraram no Estreito de Bering, nós estávamos vivendo uma era glacial e o Estreito era uma planície seca. Isso tudo hoje não é novidade. E eu fiz esse roteiro. Entrei depois pelo Alasca, segui o Canadá, América Central até chegar num lugar na Amazônia, numa gruta, no interior do Pará, onde estão as pinturas rupestres mais antigas da América do Sul, de 11 mil anos atrás. E dali desci até o interior de Minas Gerais, onde foi encontrado o fóssil mais antigo das Américas. Quanto mais para baixo, mais recente, então esse fóssil é de 10 mil anos, de uma mulher que morou lá, a mais antiga brasileira de que se sabe. E uma coisa notável é que a História do Brasil para nós começa há 500 anos, quando há 10 mil anos isso aqui já era povoado.
Sul21 – Esse livro é um dos mais vendidos de tua autoria?
Airton – É, um dos mais vendidos. Na verdade, os dois mais vendidos são o do Tibete e o da Índia. Por causa dessa questão do misticismo todo. Mas é o meu livro mais importante. É a reportagem mais importante que eu já fiz na vida. A origem dele foi uma série de dez reportagens para a Zero Hora, para o caderno Eureka.
Sul21 – Isso foi em que ano?
Airton – Foi no ano anterior ao ano em que foi publicado o livro, em 2006. Era um sufoco mandar as matérias. Uma história que a gente que é jornalista gosta…: eu estava em Adis-Abeba, na Etiópia, e tinha que mandar uma matéria. Aí fui na Lan House e o cara disse que estava fora do ar. Isso era 10h da manhã; às 11h voltei, estava fora do ar ainda; voltei às 13h e estava fora do ar ainda. Aí eu perguntei se tinha previsão para voltar, e ele o cara me respondeu que “não, está fora do ar há três meses, e não tem previsão de volta porque o governo não pagou o aluguel do satélite”. Aí eu descobri perto da cidade um hotel da rede Sheraton, uma picaretagem muito grande. Eles constróem um hotel na África, cercam o hotel, abrem um campo de aviação lá dentro, pegam os animais doentes, feridos e colocam um zoológico lá dentro para cuidar deles. Aí os aviões da Europa e dos Estados Unidos descem lá dentro do cercadinho do hotel e os caras veem os bichos na jaula… O staff é europeu, a língua é o inglês, a comida é europeia, e os caras voltam dizendo que conheceram a África selvagem. Ali usam cartão de crédito, usam internet, etc. Aí eu fui lá e usei o satélite do Sheraton de Adis-Abeba para mandar a matéria para a Zero Hora. Aí fui finalista do premio Esso de jornalismo. O maior requisito para ganhar o Esso é o grau de dificuldade que o repórter tem para conseguir fazer a matéria. E o Marcelo Rech, que naquela época era o diretor de redação da Zero Hora, foi pro Rio e disse “Ortiz, vamos buscar o premio, porque eu conheço o Esso, já fui jurado e nunca na história do Esso algum repórter teve a dificuldade que tu tivesses para fazer essa série”. Chegamos lá e quem ganhou? Uma matéria do O Globo, sobre a despoluição da Bahia da Guanabara, que o cara fez sem sair da redação. Aí, dizem que nós somos bairristas! O juri e o premiado era amigos. Ainda ontem me perguntaram se eu dou importância para prêmios, mas entre ter prêmios e ter leitores, eu digo que prefiro ter leitores. Porque os leitores pelo menos eu sei que leem os livros, o os caras que julgam os prêmios eu não tenho certeza que eles os leem.
Sul21 – Depois tu foste para o mundo maia?
Airton – Sim, eu percorri toda a América Central visitando as ruínas das cidades maias. Eles têm uma história enigmática. Eles se extinguiram 500 anos antes dos europeus chegarem nas Américas. O auge da civilização maia foi do ano 800 ao ano 1000, por aí. No ano 1100, 1200, eles se extinguiram e ninguém sabe por quê. É um grande mistério, e eu fui em busca desse mistério. E o que eu me dei conta lá, como repórter, é que as cidades maias eram nos vales e foram crescendo muito, e foram ocupando o espaço das lavouras, e eles foram colocando a lavoura das encostas dos vales, e para isso desmataram. É claro que revisei as principais teorias da extinção do povo maia. É uma história longa, mas eu não tenho dúvidas de que a extinção da civilização maia tem muito a ver, se não tudo a ver, com o desmatamento. As cidades maias eram que nem as cidades gregas, cada cidade era um estado independente. E uma coisa curiosa, é que uma cidade maia nunca conseguiu conquistar outra cidade maia, porque eles não conseguiam suprir o exército até lá. Porque tinham que todos os dias levar comida, não tinham como ir acumulando comida. Então todo exército de cada cidade maia tinha um raio até onde ele podia ir, que era até onde os carregadores podiam levar comida durante um dia, a partir dali, os exércitos não podiam avançar. Por isso os maias nunca formaram impérios, diferentemente dos incas, que formaram impérios, porque os incas viviam da batata, e a batata dá em qualquer encosta de montanha.
Sul21 – E quantas línguas tu falas? Porque não se fala inglês e espanhol em todo lugar…
Airton – Não tem outro jeito, tu tens que falar um pouco da língua local. Não é difícil saber um pouco do vocabulário de cada língua. Tem uma listinha com mais ou menos trezentas palavras. Em toda essa nossa conversa aqui, nós não usamos mais de trezentas palavras. Então se tu souberes as palavras chaves de qualquer língua, um vocabulário básico, tu consegues te comunicar com as pessoas. Então cada lugar que eu vou, antes eu estudo um pouco o vocabulário. Só de chegar nestes lugares, a simples presença de um estrangeiro em uma pequena comunidade do interior já é uma agressão. Então, a primeira coisa que tu tens que fazer é romper esta barreira que eles impõem. E a melhor forma é falar algumas palavras na língua deles.
Sul21 — E o Vietname?
Airton – O Vietnã Pós-Guerra! Eu percorri todo o Vietnã, os locais onde existiam as bases americanas, onde existiam as bases vietnamitas, os locais onde se deram as grandes batalhas, percorri os túneis que os vietcongs usavam na guerra. E esse livro tem um propósito: o de recontar a história do Vietnã do ponto de vista vietnamita. Uma pauta que até então ninguém tinha tocado. E quando eu cheguei no Vietnã, a primeira coisa que eu descobri, foi que o que nós chamamos de Guerra do Vietnã, eles chamam de Guerra Americana. Até o nome da guerra muda dependendo do lado que a conta. Nesse livro, eu reconstituo a guerra sob o ponto de vista vietnamita e vou avançando em como é o país hoje, em resultado dessa guerra. Ainda hoje, há regiões inteiras no Vietnã que tu não podes ir porque ainda estão minadas. Todo ano ainda morre uma quantidade enorme de vietnamitas vitima das minas que ainda não explodiram. Sem contar que os americanos jogaram no Vietnã mais bombas do que as que foram utilizadas durante toda a segunda guerra mundial! Todo o lençol freático vietnamita foi contaminado pelas bombas americanas. E as bombas americanas era napalms e aquelas bombas de fósforos que incendiavam. Porque os vietcongs eram guerrilheiros, não tinham um exército convencional, então eles ficavam nas margens dos rios e nas florestas e dali eles atacavam os comboios americanos que desciam os rios. Em resposta, os americanos pegaram o agente laranja e largaram nas margens dos rios para acabar com as florestas, eles desmataram as margens através do agente laranja, desmataram todas as florestas nas margens dos grandes rios vietnamitas. E é óbvio que esse agente químico desceu pro rio e contaminou todo o lençol freático do país. Morreu mais gente no pós-guerra, vítima da contaminação do solo e do rio, do que na guerra propriamente dita. O país hoje não tem vacas nem bois porque o pasto é contaminado. Eles importam leite, importam tudo. E o mais lamentável de tudo é que hoje as empresas mais poluidoras do mundo, que não conseguem licenças em seus países, vão se instalando no Vietnã. Porque o povo vietnamita é tão pobre que, para eles, entre morrer de fome e deixar contaminar o solo, preferem deixar contaminar o solo. E essas empresas poluidoras usam esse artificio sob o pretexto de gerarem empregos, ou seja, de tirarem as pessoas da fome absoluta. O povo fica refém dos empregos. Eu não condeno o cara que se deixa corromper para não morrer de fome. Ele é vítima, o culpado é o corruptor.
Sul21 – E o Zaffari, teu mecenas, o que ganha contigo?
Airton – Ele ganha agradecimentos nos livros e citações minhas. Sempre falo neles em palestras, entrevistas. O que eles ganham é a associação de sua marca a coisas culturais e interessantes. O marketing do Zaffari sempre foi em cima da cultura. Por isso é que eles têm essa imagem tão querida pelo publico gaúcho. Eles investem é para manter uma boa imagem. Eu tenho uma empresa que faz uma clipagem pra mim. Tudo o que sai durante o ano, em TV, rádio, jornal, no final do ano eu levo lá no Zaffari. E junto vai o cálculo daquilo se eles tivessem que pagar.
Sul21 — E a série sobre cidades?
Airton — Em 2010, eu comecei uma série nova. Não eram mais reportagens sobre grandes travessias, mas crônicas sobre cidades. Em 2010 eu lancei sobre Havana; em 2011, Jerusalém; em 2012, eu lancei o Gringo, que é ficção; em 2013, eu lancei o Atenas, e, agora, neste ano, o Paris. Essa coleção é sobre cidades. São crônicas, não é mais reportagem. Então mudaram a pauta e a linguagem.
Sul21 – Um dia vai ter Londres?
Airton – Sim, sim. Vai ter Londres, Nova Iorque, Amsterdam. Tu gostas de música, deixa eu te contar uma… Em Havana, a Catedral se mantém catedral, mas as demais igrejas, que são todas da época colonial, lindíssimas, elas se transformaram em salas de concertos. Então tem uma igreja belíssima que é a sede do coral de Havana. E eu fui lá assistir, e foi uma coisa belíssima. Chegaram os trabalhadores do coral, cada um com a sua roupa, não tinham uniforme nem nada, parecia um bando de colegiais se reunindo para cantar uma musiquinha. Aí começam a cantar, que coisa fantástica! Tem outra igreja colonial, que é a sede da orquestra especializada em música medieval. E o balé de Havana é um dos melhores do mundo.
Sul21 — E a distribuição dos livros? Mudaste de editora.
Airton – Os meus primeiros quatorze livros foram publicados pela editora Record, do Rio. Em janeiro do ano passado, a Marisa Moura, que é minha agente literária, me ligou dizendo que o pessoal da Benvirá queria conversar comigo. Bom, resumindo: o grupo Saraiva resolveu criar um selo de literatura brasileira, chamado Benvirá, e contrataram para editar esse selo o cara que era o editor da Planeta, o Rogério Alves. E ele me convidou. Hoje, eu resolvi o problema da distribuição. Como a Benvirá é um selo da Saraiva, que tem 110 megalojas no Brasil inteiro, as vendas aumentaram. Apesar da Record ser a maior editora brasileira, ela ainda precisava vender para as livrarias. Agora o livro já sai, digamos, da livraria. Mas vamos falar de viagens! (risadas) Então, em Paris… Eu fiquei um tempo num albergue lá, para ter contato com o pessoal que fica em albergue, que são as pessoas mais bem informadas sobre qualquer lugar. Os mochileiros são os caras mais bem informados em qualquer lugar, tanto em Paris quanto no Himalaia, porque viajam em busca de conhecimento, aquilo que vai além do que os guias de turismo oferecem. E fiquei um tempo ali, também, porque eu queria realizar um sonho comum a vários escritores, que é o de escrever um livro, ou pelo menos começá-lo, morando numa marsarda em Paris. E o albergue tinha no último andar, na mansarda, um quartinho. E o livro Paris, eu comecei a escrevê-lo lá. E a frente da mansarda dava para, nada mais nada menos, o Le Petit e o Le Trianon. Bem, dali eu fui para um hotel, porque queria também ficar um tempo em Paris como os turistas ficam. E depois aluguei um apartamento, me estabeleci, e pensei: “bom, agora eu vou morar aqui como um parisiense”.
Sul21 – É, mas não adianta, gosto mais de Londres.
Airton – E eu de Nova Iorque. A minha paixão sempre foi Nova Iorque. Depois de Porto Alegre, é a cidade que eu mais conheço. Bem, falando a verdade… Agora estou balançando entre NY e Paris. Porque Paris, tem muito de nossas raízes. Os escritores e os pintores que admiramos, etc.
Sul21 – E é tudo fácil de encontrar, né? Porque eles colocam as plaquinhas nos edifícios. Aqui morou tal escritor…
Airton – Sim! E aqui em Porto Alegre não tem. Nenhuma placa de onde morou o Erico Verissimo, onde morou o Lupicínio. Tu vais em Havana, cada prédio tem a placa do cara que morou ali. E aí quando eu disse que Porto Alegre tinha que se inspirar em Havana pra atrair turismo, quase deram em mim! “Como em Havana? Em Fidel Castro, na ditadura comunista! Quer dizer que a gente tem que se inspirar em uma ditadura comunista?” Eu não disse isso… Tô falando pra colocar placas! Se eu digo Paris, tudo bem; mas se eu digo Havana… Havana não! É mais pobre e de esquerda do que Porto Alegre… E lá tem, aqui não.
Edward Hopper, os 130 anos do poeta da solidão urbana
Publicado em 22 de julho de 2012 no Sul21.
Edward Hopper nasceu em 22 de julho de 1882, há 130 anos, numa localidade próxima a Nova Iorque, Nyack. Viveu até os 85 anos — faleceu em 1967 — e foi um pintor essencialmente realista, “pequeno” e urbano na sociedade norte-americana, a qual, principalmente no pós-guerra, valorizava a grandiosidade e o ufanismo. Este pintor que ia contra a corrente distinguia-se principalmente pela escolha de seus temas. Seja na pintura de paisagens rurais devastadas da Nova Inglaterra, seja nos panoramas arquitetônicos, há espaços quase esvaziados de figuras humanas – são composições de situações que evocam sentimentos de solidão e tristeza, quadros narrativos em que a cena é representada quase sempre imóvel, sob perspectivas que lembram muito as convenções do cinema e do teatro.
A arte de Hopper permaneceu afastada do sonho americano, da “América” como o grande país da liberdade e da prosperidade. A arquitetura de Nova Iorque e de outras cidades são mostradas meticulosamente – fachadas de lojas e farmácias vazias, lanchonetes quase vazias ou postos de gasolina igualmente – e parecem trabalhar apenas como pungentes símbolos da solidão e da desesperança daquelas pessoas, tão bem caracterizadas nos romances e nas peças de teatro da época, onde, como disse Sinclair Lewis em Rua Principal, Deus era o tédio. Essa relação com a literatura não é nada casual, pois foi nela que a alma dos EUA da primeira metade do século XX foi melhor retratada.
O realismo de Hopper não é uma tradução literal ou mimética da realidade, é antes interpretação. Em sua longa carreira, apenas em 1933 passou ver seu imaginário especificamente descrito como “solitário”. Perguntado sobre o motivo que o levava a pintar a Macomb’s Dam Bridge (1935), uma pintura vazia de pessoas que retrata uma parte bastante populosa de Nova York, inteiramente vazia, ele respondeu com simplicidade que achava que aquela era sua melhor representação.
Segundo o crítico Rolf Renner, a popularidade de Hopper, seus quadros vazios de seres humanos e suas figuras solitárias sugeriam as dores da solidão a um público cada vez mais interessado no pensamento psicanalítico e consciente do anonimato da vida urbana. Em 1964, a insistência destas interpretações de sua obra levaram Hopper a dizer que “a coisa da solidão é exagerada”. Porém, paradoxalmente, na mesma época ele respondeu a um jornalista sobre a solidão profunda e a falta de comunicação em sua arte com o comentário: “Isto é provavelmente um reflexo de minha própria vida e não sei dizer o quando isto é tem pontos de contato com outras pessoas ou com a própria condição humana”. Por algum motivo, mesmo quando as pessoas estão juntas em suas telas, a sugestão da solidão permanece presente.
Há um exemplo muito claro disso: quando Alfred Hitchcock filmou Psicose, desejava que a casa de Norman Bates tivesse um aspecto de isolamento e solidão, de um lugar onde ninguém entrava. Como o gordo inglês não era nada desconectado do que acontecia em outros setores da arte, pediu que se construísse isso aqui e estendeu a seus produtores uma cópia de um quadro de Hopper, House by the railroad, dizendo: “Vamos construir parecido com isso. Nada pode ser mais isolado. Não vamos reinventar nada, OK?”
Como referimos acima em palavras do próprio Hopper, ele foi, desde a infância, um solitário ou ao menos alguém que raramente falava de si. Muitas publicações falam em frustrações, mas pensamos ser mais acertado falar-se em timidez ou numa inadequação que ele representou de forma grandiosa em sua arte, não só através de melancólicas figuras solitárias, mas também através de metáforas de isolamento em lugares onde esperamos ver pessoas presentes.
Já sua associação com a arquitetura é mais complexa. A primeira metade do século XX foi um tempo de nacionalismo emergente e cenas típicas americanas aparecem como sujeitos de sua arte. Sua cidade natal, Nyack, por exemplo, oferecia exemplos de estilos arquitetônicos característicos da América do século XIX. Embora esses estilos tenham sido absorvidos por Hopper em sua juventude, foi só depois que ele viajou para o exterior, entre 1906 e 1910, que veio a apreciar seu encanto. Escrevendo na revista The Arts, em 1927, Hopper comentou sobre artistas contemporâneos norte-americanos cujo trabalho admirava e salientou a necessidade de desenvolver uma “arte nativa”.
Hopper apreciava especialmente um tipo de telhado frequentemente encontrado em casas americanas do estilo Segundo Império — nome emprestado aos franceses –, construídas entre 1860 e 1890. Este estilo, desenvolvido durante o reinado de Napoleão III, é caracterizado por um telhado coberto com telhas pintadas. Entre 1907 e 1909, Hopper fez várias pinturas do Pavillon de Flore do Louvre, que ele podia ver a partir do local onde morava na margem esquerda de Paris. Mais tarde, Hopper redescobriu estes telhados em casas de vários locais dos EUA — Gloucester, Massachusetts, Rockland, Maine, e, provavelmente, no estado de Nova York – e permaneceu atraído pelo estilo, que trazia logo abaixo arcos como no Pavillon ou janelas em arco.
Porém, seus temas e especialmente os lugares que ele pintou, parecem ser produto da necessidade de criar e parte de sua batalha constante contra o tédio que muitas vezes sufocava seu desejo de pintar. O que manteve Hopper em movimento foi sua busca por inspiração, que provocada em pequenas viagens.
Como explicou a um crítico: “O mais importante é ir adiante, ver tudo. Você sabe como as coisas são belas quando você está viajando, não?”.
Conversei uma vez com Guy Pène du Bois sobre isso. Ele utilizou o termo “inspiração”. Eu disse, “essa é uma palavra excelente”. Bem, talvez exista inspiração – talvez seja o clímax de um processo de pensamento. É, no entanto, é difícil saber o que quero pintar. Por vezes passam-se meses sem descobri-lo. Depois vem lentamente: aí entra em cena a imaginação. Acredito que muitas pinturas são pura invenção – nada vem de dentro. É claro que é preciso usar a imaginação: nada se faz sem ela. Mas há muita diferença entre a imaginação e o que o pintor encontra em si mesmo.
Belas e silenciosas como paisagens são suas figuras humanas. O realismo de Hopper flagra e capta o interior de cada uma delas – numa ida ao café, sozinhas na entrada de um cinema, num quarto de hotel, no trem, tomando sol. As figuras humanas pintadas por Edward Hopper demonstram uma melancolia e um silêncio que mais facilmente associaríamos a paisagens.
Hopper parece apenas convidar-nos para comentários verbais acerca dos quadros. Observador e observado entregam-se a um jogo onde o observador acompanha e procura a identidade daqueles que são retratados pelo artista. Os elementos de tal jogo são uma parte do conteúdo de suas obras — desaparecimento, silêncio, sossego, tensão, olhares fugitivos, mas nenhum desfecho.
Sua obra também documenta o paradoxo entre a contradição entre progresso material e individualidade, entre mito coletivo, experiência social e repercussão íntima, transforma em signos uma sociedade que perdeu contato consigo mesma. E esta riqueza é o que faz que seus quadros sejam tão valorizados por nossa cultura. Após a morte do pintor, sua esposa doou o que restava de seus quadros para o Whitney Museum of American Art. Outros trabalhos importantes de Hopper estão no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, no The Des Moines Art Center, e no Instituto de Arte de Chicago.