Mesmo com o início do verão e do expressivo aumento do suor diário, é prazerosa a caminhada matinal de 20 minutos para o trabalho. Fundamental é ter um bom fone de ouvidos, o que desafia toda prevenção de segurança em nossa tranquila cidade que possui a cesta básica mais alta do país e nenhum brigadiano para nos desejar bom dia pelo caminho. Bem, a programação musical de hoje era, indiscutivelmente, a melhor possível.
Aos que não têm vivência com a música, aconselho consultar qualquer enciclopédia, ler qualquer musicólogo, acessar o Google, etc. a fim de ler o que está lá descrito sobre a Missa em Si Menor BWV 232. Boa parte dos comentaristas que têm o viciante hábito de criar listas e classificações de maiores e melhores, costumam colocar a Missa como a maior obra musical de todos os tempos. Boa parte. Tenho treinado para não sair impondo às pessoas prólogos inúteis do tipo “é o melhor filme”, “é o maior dos livros”, e coisas do gênero. No mínimo, é melhor antecedê-las de um “em minha opinião” ou “penso que”.
Tenho ouvido a Missa em Si Menor desde minha adolescência e parece-me que sempre descubro nela um detalhe a mais, um novo encanto. Hoje pela manhã, coloquei nos fones o CD duplo da gravação de Philippe Herreweghe e, por quase duas horas, acreditei num outro mundo. A noção de divindade sempre evitou este cético, mas, como afirmou o também descrente Ingmar Bergman, é impossível ignorar que Bach (1685-1750) nos convence do contrário através de sua arte perfeita. Um dos poucos indultos que concedo ao cristianismo é o de ter sido uma das musas de Bach, embora nas muitas vezes em que o compositor fugiu do sacro, tenha atingido uma qualidade igualmente insuperável.
A grandeza da Missa não é casual. Bach escreveu-a em 1733 (revisou-a em 1749) com a intenção de que ela fosse uma obra ecumênica. Seria a coroação de sua carreira de compositor sacro. Quando a Bach, roubou de si mesmo ou fez retornar alguns de seus melhores trabalhos de sua longa obra. Imaginem que ele trouxe para a Missa uma ária que compusera em 1714! Naquele momento ele fazia uma revisão de si mesmo e, por isso, a Missa também é um compêndio de Bach. Para completar, o trechos compostos especialmente foram criados por um compositor no auge de sua capacidade. A Missa é cantada em latim. Suas outras obras sacras (Missas, Oratórios, Paixões, Cantatas, etc.) sempre utilizaram o alemão e foram apresentadas em igrejas luteranas, porém, na Missa, Bach usa o latim que, em sua opinião, seria mais cosmopolita e poderia trafegar em outras religiões, principalmente a católica. O texto utilizado não foi o das missas de sua época. Era mais antigo e inclui versos retirados após a Reforma, como o significativo Unam sanctam Catholicam et apostolicam Ecclesiam, que é cantado no Credo. É como se Bach pretendesse demonstrar a possibilidade de entendimento entre católicos e protestantes.
Curiosamente, esta obra tão profundamente erudita e religiosa, é hoje mais apresentada em salas de concertos do que em igrejas, pois suas necessidades de tempo (105 a 120 minutos) e de número de executantes são maiores do que as igrejas normalmente dispõem. Não obstante o problema, Bach consegue transformar tanto as salas de concerto quanto nossas casas — assim como nossos ouvidos durante uma caminhada na chuva — em locais de devoção, musical ou religiosa.
Desde os anos 70, compro gravações da Missa. Comecei por uma que não recomendo, a de Karl Richter (3 LPs ou 2 CDs) com a Orquestra e Coro Bach de Munique. Sem dúvida é o registro mais obeso que possuo da Missa e também o mais remendado, uma mistura barrocorromântica das mais estranhas, não obstante o excepcional time de músicos e cantores. A orquestra utilizada por Richter é maior que a dos padrões barrocos e, para fazer frente a isto, o coral teve de ser multiplicado. Há enorme intensidade dramática nos tutti, porém, os trechos camarísticos só valem pelos cantores. É uma gravação sem muito senso de estilo, maníaco-depressiva, capaz de passar da mais louca alegria à expressão mais triste e íntima em segundos. Não gosto.
Minha segunda experiência foi com Andrew Parrott (Solisten des Tölzer Knabenchors e Taverner Consort & Players). Depois da multidão, fui para uma gravação que envolve um contingente mínimo de cantores e instrumentistas. Parrott é um dos precursores da execução de músicas com instrumentos originais. Em minha opinião, a tese é correta. Apesar de achar que cada época possa dar uma interpretação e expressão, busco ouvir preferencialmente o que o compositor ouvia. Porém, como muitos revolucionários, talvez Parrott exagere. Bach dava liberdade a que se executassem suas músicas com grupos maiores ou menores, então Parrott não o contraria, mas torna seu registro indigente. Fiquei sonhando com um meio termo entre Richter e Parrott, entre o faraônico e o indigente.
Então conheci uma gravação mais antiga e muito melhor que a de Parrott. Sim, a solução veio dos Países Baixos. Primeiro com Gustav Leonhardt. Quando a ouvi, pensei: aí está, para mim, esta é a melhor de todas as gravações da Missa. Fui ler as principais publicações e minha impressão foi avalizada. Leonhardt, que foi holandês, convidou outros da orquestra de câmara La Petite Bande e do Collegium Musicum e conseguiu nos enviar sem escalas ao coração de Bach. Porém… Em 1998, veio um registro a cargo do belga Philippe Herreweghe. Claro, deve ser mais fácil fazer uma gravação melhor depois de ouvir seus antecessores; diria até que há ecos do melhor de Richter, Leonhardt, Parrott e Harnoncourt em seu registro, mas há muito de mérito próprio. Herreweghe é difícil de superar.
Hoje, acho ainda que Philippe Herreweghe e seu bom coro, instrumentistas e solistas superam qualquer outra gravação da Missa. E que maneira encontrou Herreweghe e o Collegium Vocale para fazê-la! Ele nunca usa mais de 5 cantores por parte, então o coro é uniforme, de grande sonoridade e dicção clara. Cada linha e voz pode ser ouvida e compreendida distintamente. Os sopranos e contraltos não são feitos por meninos, como nas gravações de Harnoncourt. Com alta maturidade na expressão do barroco, seus poucos vibratos não pesam — são suaves e parecem vir diretamente do século XVIII. Meus ouvidos e mente de velho ouvinte de Bach dizem que Herreweghe faz o que Bach desejava para o seu próprio coro na Igreja de São Thomas em Leipzig.
Li em algum lugar que Herreweghe é agnóstico. Belo ponto pra nós. Será que isso teve alguma influência? Nos primeiros compassos do Kyrie, onde a tradição manda começar por um poderoso grito de agonia por misericórdia, ele nos oferece um apelo perplexo e suave, quase cansado. Movimentos extrovertidos como o Gloria, Et resurrexit e o Sanctus são cheios de emoção. O Qui tollis e o Dona nobis pacem chegam como fervorosas orações. Gostaria de dizer que o Collegium Vocale de Herreweghe tem uma “sonoridade luminosa” e que os instrumentistas estão corretos a cada gesto. Os solistas alcançaram um notável equilíbrio com os instrumentos de época. O tenor Christoph Prégardien e contratenor Andreas Scholl estão magníficos. Subjacente ao profundo sentimento religioso que a obra exala, o ateu pode desmilinguir-se de admiração.
Aqui, você tem a gravação da Missa em Si Menor por Philippe Herreweghe.
-=-=-=-=-=-
Um amigo português, anos atrás, mandou-me um e-mail assim:
Milton. Tens razão (ou quase) do que dizes sobre a Missa do Deus Homem ou do Homem Deus. Ai, Bach, Bach, nestes dias conturbados que passo tenho-te a ti. Olho para o quadro dele que tenho na minha sala de estar e respiro melhor. És o apogeu da Humanidade agora e sempre, hoje e daqui a bilhões de anos se este planeta existir. Jamais haverá outro. Dois Bachs são demais para o Mundo, para a decadente raça humana. Eu tenho pena de morrer (lembra-te do tema) e não poder ouvir a tua musica. Se eu pudesse me levantar da campa de dez em dez anos por duas horas e meia (o tempo da Paixão de S.Mateus) não me importava de morrer já. E já que falo na Paixão de S. Mateus, a do Leonhardt (o pai dos outros todos) é a melhor, ou a de que eu gosto mais. Voltando à Missa… A do Leonhardt, como a ti, também é um disco que me tem acompanhado ao longo da minha vida, também era um dos discos que levava para a ilha deserta. A do Gardiner não, dispenso (É aqui que está o quase). Grande interpretação e uma das referências, sem duvida, a de Phillippe Herreweghe (e uma qualidade de som soberba). A de Masaaki Suzuki da Bis é outra a ouvir e a comprar. Com coro de crianças aconselho também uma boa interpretação de Robert King com a Tolzer Knabenchor da Hyperion.
E é melhor parar por aqui que se eu começo a escrever sobre Ele nunca mais paro. Prefiro ouvi-lo, o que faço religiosamente todos as semanas. TODAS AS SEMANAS. No bom sentido ela é viciante, inebriante, comovente e arrasadora. Ao ouvir as suas grandes obras, deitado de olhos fechados, tenho a sensação que pela primeira vez e única alguém atingiu a perfeição. A sua obra desfaz-me em pedaços, arrasa-me, emagreço, tira-me a dor de dentes e da alma. Sinto-me um anão e ao mesmo tempo um gigante (por o ouvir).
Ai, Bach, Bach… E eu vou morrer um dia!
Cumprimentos
O compositor Gilberto Agostinho acaba de fazer um belo e enriquecedor comentário a este post. Faço questão de publicá-lo como parte do mesmo.
Sempre que possível eu gosto de ouvir música com a partitura na mão. Hábito de músico, além de ser um ótimo jeito de aprender coisas e estudar. Mas existem algumas partituras que assustam a gente, pela clareza e simplicidade na escrita e pelo resultado fenomenal. Bach e Brahms tem disso. Eu fico horas analisando uma passagem simples, a duas vozes, e procurando entender o porque daquela sonoridade fantástica, mas muitas vezes não chego a conclusão nenhuma. Simplesmente não entendo. Parecem notas normais, que qualquer um poderia ter escrito, mas elas não soam assim! Com Mahler, você sabe que aquilo vai soar grande, você enxerga tudo, mesmo na passagem mais complexa. Não é o momento que vale, mas sim a construção. Você tem que caminhar junto com ele. Já Bach… O primeiro compasso (o primeiro compasso!) da Paixão Segundo São Mateus é capaz de me arrebatar, e ali já se encontra toda a profundidade que esta obra vai carregar durante duas horas. Em um compasso! E os recitativos, acordes simples e uma melodia, nada mais. Tudo mais!, na verdade, e eu nunca ouvi recitativos tão profundos como em Bach. As vezes eu me sinto um relojoeiro inexperiente, que tenta abrir os relógios mas não consegue entender nada, muito menos montá-los de volta. A diferença é que a música não é simplesmente uma pequena máquina, e não existem manuais. É uma das coisas que eu lamento ao ouvir Bach, imaginar que eu nunca vou conseguir uma profundidade como aquela nas minhas composições.
E ainda voltou para completar:
Obrigado por colocar meu comentário no corpo do post. Eu não sei se consigo explicar um pouco melhor o que penso, mas vale a tentativa. Já relembro, antes de receber uma chuva de xingamentos, que tudo aqui se trata da minha humilde opinião. Enfim, uma das formas mais simples de se fazer música, na opinião deste declarado contrapontista, é a melodia acompanhada. Mozart e Schubert foram os maiores mestres nesta arte. A coisa é simples: existe um tema, normalmente fácil de ser reconhecido tanto auditivamente quanto pelo olhar (a figuração das notas muitas vezes nos chamam atenção para melodias escondidas, ou para vozes de menor importância, mas que carregam informações do tema). Acontece que em Brahms, por exemplo, muitas vezes nós não enxergamos o tema. Ele simplesmente não está lá! Você ouve a música, você até consegue cantarolar algo incerto mas não enxerga. As notas são muito simples, os ritmos todos simples também. Tudo aquilo podem ser fragmentos de informação. E são. Você tenta analisar harmonicamente, e é tudo fácil. Contrapontisticamente, sem segredos. O ritmo, simples. E então? Por que raios aquilo soa denso, e não só soa, mas é denso? Como carregar estas simples notas com toda esta conotação? Em Bach a ideia de tema e desenvolvimento, como nós conhecemos hoje, nem existia. Mas está lá, a obra é permeada destes fragmentos de informação. Você ouve o baixo, e pronto, lá está uma inversão da melodia principal. Você ouve a linha da soprano, ela também é uma consequência desta. Toda a obra é erguida sobre pilares limpos, claros, simples. E, no entanto, ninguém conseguiu chegar próximo deste domínio artístico. Sibelius é simples também, assusta no começo, mas logo que se ouve o susto passa. A música dele as vezes é rarefeita em informações, e condiz com a partitura. Agora eu ainda não entendo Bach. Parece mecânica quântica, ou uma piada divina. “Se queres olhar fundo, então olhes. Mas não entenderás nadica de nada.”
Francis Marshall mete sua qualificada colher para discordar de alguns pontos do texto:
Leute, mesmo endossando as loas e teses acima, acrescento:
1. Duvido que Bach tenha pensado em solução ecumênica ao compor a Missa em si menor. Na verdade, ele a finalizou, quase toda, e apresentou em partes (com manuscritos, como de costume, copiados na corrida por toda a tropa Bach, inclusive Anna Magdalena, que tinha uma ótima caligrafia) para pleitear um emprego junto ao Rei “católico” em Dresden, Augusto II (Augustus der Stark, ou Augusto, o forte), no final de julho de 1733. Isso explica a linguagem católica meio desajeitada, com arremedos de sua verdadeira e irrevogável fé, luterana. Bach certamente não possuía tempo, biblioteca e motivação para elaborações teológicas maiores. O luteranismo, para ele, era suficientemente universal.
2. Ele cobiçava um cargo em Dresden, doidamente. Era a melhor corte musical da Europa, repleta de Vivaldi, dinheiro, bons amigos… Bach correu a vida toda atrás de melhores postos, e ficou sempre, infelizmente, aquém. Assim, na apresentação da Missa em Dresden,fez uma aposta alta e reuniu seus melhores materiais, reciclando muito de seus arquivos, o que sempre fez com perícia e tino estratégico.
3. Destaque para o Crucifixus, música de uma gravidade patética imensa, pungente. Provém, todavia, de uma cantata amorosa de Vivaldi (RV675), adaptada em seus tempos de Weimar, primeriamente na cantata BWV12 (Weinen, Klagen, Sorgen, Zagen = chorar, lamentar, lastimar, temer), apresentada a 22/04/1714. Este coro reaparece no grande coral inicial da cantata BWV78 (de Leipzig); seu belo baixo cromático tem precedente não só em Vivaldi, mas também na ária do baixo da cantata BWV4 (de Arnstadt, 1707, reapresentada em Leipzig em 1724 e 1725). Eu não consigo passar muitos dias sem ouvir essa música, é algo que muda a cor da paisagem e do tempo vivido. A versão com nossa deusa Emma Kirkby é de se ouvir entra as nuvens e Jupiter.
4. Apesar de tudo, Bach, uma vez mais, saiu de Dresden cheio de honras e nenhum florim a mais no bolso. Recentemente, ofereci-lhe emprego bom, compondo a trilha deste filmeco: http://moviolafm.blogspot.com/2008/10/dresden-glria-morte-e-ressurreio.html
5. Eu sou ateu, agnóstico e pagão estético, mas a espiritualidade musical de Bach é mesmo irresistível, sublime.