Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Para falar de Bach, talvez devamos conhecer um pouco do homem e do ambiente em que viveu. Lembro que Franz Rueb, em seu livro 48 variações sobre Bach, explica o que era a educação escolar no tempo em que Bach era menino. Era algo em torno de 5 horas por dia. Em média, uma hora de matemática e ciências, outra hora para aprender alemão e as restantes 3 horas eram de religião e de cantar música religiosa. Também diz que os meninos eram perigosos à saída da escola. Formavam grupos para cometer pequenos roubos e às vezes perseguiam alguém com pedras nas mãos.

De qualquer modo, a educação terminava quando a família decidia e o filho via de regra aprendia a profissão do pai ou de um parente que admirasse. Claro, os Bach era uma família de músicos, como falarei adiante. E as universidades eram quase impossíveis para quem vivia nas pequenas cidades e principados.

A Alemanha do tempo de Bach não tinha nada a ver com a atual, ela sequer existia. Dividida em pequenos Estados soberanos, dominada majoritariamente pelo luteranismo, cujo impacto na vida cotidiana era fortíssimo, a Alemanha era formada por cortes soberanas. Cada pequeno príncipe, duque ou margrave era senhor em suas terras. A unidade alemã ainda não tinha começado. Cada principado possuía leis e costumes próprios — e, no mais das vezes, uma religião. Eu disse uma. A religião do príncipe (catolicismo, luteranismo ou calvinismo) era a dos seus súditos.

Cada um dos príncipes germânicos tinha seu Kapellmeister, seus cantores e seus instrumentistas, e algumas daquelas cortes tomaram-se centros de música de certo relevo. O que era um Kapellmeister ou Mestre de Capela? “Mestre de capela” é a pessoa que, entre outras obrigações, deve ser responsável pela música de uma igreja. Bach viveu em duas cortes onde foi Kapellmeister: a de Weimar e a de Koethen. A vida nessas cidades pequenas pautava-se pela seriedade, austeridade e gravidade provindas daquela religiosidade que permeava toda a sociedade e regulava a vida de cada indivíduo.

No entanto, na primeira metade do século XVIII, surgiu um elemento novo, o Iluminismo. Um movimento intelectual, em parte sob influência francesa, esboçou-se no interior da sociedade burguesa das cidades alemãs e reagiu contra a tradição luterana e suas estruturas estabelecidas.

Foram 4 as principais forças sociais atuantes na vida e na obra de Bach: as Cortes dos principados, a burguesia urbana, as paróquias luteranas e o Iluminismo. Ou seja, Bach esteve enraizado na sociedade das pequenas cidades alemãs, teve laços que o prendiam à religião luterana, tinha a tentação da vida na corte — da arte sacra e profana — e a cultura Iluminista.

Porém, antes de Johann Sebastian, há os Bach. Eles foram uma família que, longe de constituírem um obstáculo a sua evolução, serviram-lhe como um trampolim de notável potência.

No final do século XVI, o moleiro Veit Bach tocava cítara enquanto olhava o seu grão sendo moído. Ele foi o primeiro Bach conhecido como músico. Até Johann Sebastian, contam-se 33 homens na família: 27 deles foram músicos — organistas, mestres de capela, músicos municipais, violinistas, compositores. O menino Johann Sebastian só via à sua volta irmãos, tios, primos — e seu pai, naturalmente — ligados simultaneamente à música — como a um ofício sólido — e à igreja luterana.

A família Bach parecia ter laços inquebrantáveis com dois desses polos sociais e culturais — à igreja e à música. Não é difícil concluir o poder exercido por essa base familiar sobre a formação do jovem Johann Sebastian. Ele cedo ficou órfão. A família tomou conta dele e o educou. Arranjaram-lhe um lugar como organista — detalhe: ao largar essa colocação, mais tarde, deixou-a para um de seus primos. Ou seja, um Bach nunca estava só na vida. E foi com uma Bach — uma de suas primas — que Johann Sebastian casou.

Seu caminho estava, de certo modo, traçado desde a infância, e as reviravoltas da existência, que em outras circunstâncias teriam podido deixá-lo atrapalhado e isolado, contaram com essa grande e generosa tribo musical.

Johann Sebastian Bach nasceu em 1685, aquele ano espetacular em que também nasceram Haendel e Scarlatti filho. O pai, Ambrosius Bach, que era violinista e “músico municipal” em Eisenach (1), pequena cidade da Turíngia, ensinou o menino a tocar os instrumentos de corda, ao passo que o tio Johann Christoph, excelente compositor e organista na mesma cidade, iniciava-o no órgão. Ainda bem criança, Johann Sebastian fez parte do coro municipal.

Porém, aos nove anos ele já estava órfão de pai e de mãe. Foi seu irmão mais velho, organista em Ohrdruf, que se encarregou de sustentá-lo, ensinando o menino a tocar cravo e composição. Aos quinze anos, por sua própria iniciativa, Johann Sebastian fez-se admitir na escola de São Miguel de Lüneburg (2), onde eram acolhidos jovens pobres com alguma formação musical. Em troca de cantar na igreja, ele recebeu ali uma a educação que provavelmente não receberia em outro lugar, com aulas de retórica, latim, grego, lógica, teologia e, naturalmente, mais música. Lüneburg era uma cidade bem diferente das que Bach havia morado anteriormente: era animada e possuía grande influência da cultura francesa, fosse na música ou na culinária. Talvez seja por isso que Bach decidiu estabelecer-se ali por mais tempo. Trabalhou como cantor em diversos lugares, até que a mudança de voz fez com que buscasse empregos no ramo instrumental. Lá ele aprendeu francês — que era a língua do mundo do espetáculo, da dança, da música de Lully.

Depois, novamente com a ajuda da família Bach, fez sensação em Arnstadt (3), onde havia uma vaga para organista. Foi contratado sem fazer concurso em 1703, com apenas dezoito anos. A adolescência de Johann Sebastian Bach tem qualquer coisa de admirável. Uma espécie de instinto infalível parece movê-lo sem hesitações no sentido de um conhecimento mais amplo. Ele parecia ser dotado de uma maturidade superior à de sua idade, que guiava suas escolhas de maneira precisa. E, lá do fundo da Alemanha, ele descobre a cultura francesa e italiana.

A Itália veio até ele com a música de Frescobaldi. E havia o apelo dos organistas do norte — Georg Bõhm, o velho Reinken e, finalmente, Buxtehude. Para ouvir este último, Bach chegou mesmo a cometer uma estranha fuga: pediu quatro semanas de licença e acabou ausentando-se por quatro meses. Explicando melhor, em outubro de 1705 (20 anos), obteve uma licença de um mês para ir a Lübeck e ouvir o famoso Buxtehude, o mais destacado organista do norte da Alemanha. Bach fez a pé o trajeto de mais de 350 km. Sua visita deve ter sido proveitosa, pois ele não retornou antes de janeiro de 1706 — quatro meses –, e de imediato sua maneira de acompanhar os hinos mudou completamente, o que despertou protestos entre a congregação que, perplexa, estava acostumada a acompanhamentos simples. Este não foi o único dos problemas que Bach enfrentou. Foi censurado pelo consistório pela sua longa ausência e por causa daquelas “escandalosas” liberdades e improvisos ao órgão que confundiam os fiéis. Tendo de acatar as ordens, pouco depois foi censurado por fazer os acompanhamentos demasiado curtos. Além disso, o coro de meninos que ele tinha de reger era tudo, menos competente e dócil, registrando-se vários episódios de confrontos e altercações violentas, incluindo desafios com espada. Logo se tornou claro que ele não mais poderia permanecer em Arnstadt. Aparentemente a derradeira discórdia foi a reprimenda que recebeu por ter acompanhado ao órgão uma donzela cantora — presumivelmente Maria Barbara — numa uma ocasião em que a igreja estava vazia. Importante: naquela época, era proibido às mulheres cantarem nas igrejas. As vozes de sopranos e contraltos eram cantadas por meninos. (Arnstadt)

Então ele rompeu seu contrato tão logo surgiu outra vaga de organista, dessa vez em Mühlhausen, onde também o admitiram depois de uma audição, sem concurso. Casou-se então — tinha 22 anos — com a prima Maria Barbara Bach.

Depois, trocou Mühlhausen (4) pela corte de Weimar (5), com as funções de organista, violinista e compositor. Era, agora, músico “da corte” e não mais um músico municipal ou da igreja — ainda que suas funções fossem, em parte, ligadas à música religiosa. Estava a serviço de um príncipe, não de uma municipalidade ou de uma paróquia. Isso era uma promoção para ele —- mas, de certa forma, uma ruptura com sua tradição familiar.

A proposta que Bach recebeu em Weimar incluía o valor de uma remuneração que era o triplo do que recebia em Mühlhausen, além de que o alojamento de sua família era por conta da corte. Ele recebia ainda adicionais extras e gêneros como, por exemplo, 30 barris anuais da cerveja produzida no castelo e livre de impostos. Ele sempre pedia mais cerveja, por tinha alunos, filhos, família grande e o consumo era pantagruélico. Gente, cerveja é a bebida de Bach.

Esse tempo que Bach passou em Weimar (1708 a 1717, dos 23 aos 32 anos) trouxe-lhe, por outro lado, um enriquecimento musical considerável. Produziu muitas Cantatas e música para órgão. Trouxe tensões, também. O duque que estava no poder era de trato difícil. Bach era mais amigo de seu herdeiro, um melômano apaixonado. Surgiram dificuldades. Ele pediu demissão e acabou preso por um mês — sim, preso por ter pedido demissão, por ter insistido em sair da corte. Passado esse episódio, conseguiu permissão de deixar Weimar por uma outra corte, a do príncipe Leopold de Kõthen (6), onde permaneceu entre os 32 e 38 anos de idade.

E aqui chegamos a, quem sabe, o período mais feliz e importante da vida de Bach. Os cinco anos passados por ele em Köthen tiveram como resultado boa parte da música instrumental de Bach que ouvimos hoje. Até a tristeza pela morte de sua esposa Maria Barbara resultou em música, resultou na Chaconne da Partita Nº 2 para Violino Solo. Há poucos registros de textos escritos por Bach. Porém, quando morou em Köthen, tinha feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

Curiosamente, o cineasta Ingmar Bergman comentou o fato no livro Lanterna Mágica:

Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou foi destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

O príncipe Leopold, de Köthen era inteligente, aberto, agradável e músico (ele era violista). Também reunira em torno de si a melhor orquestra da Alemanha (dezessete músicos, muitos dos quais virtuoses famosos). Lá, Bach gozava não somente de consideração e de bom salário, mas de verdadeira amizade por parte de Leopold e dos que o rodeavam. Essas condições ideais para um artista — ter à sua disposição todos os meios para criar e saber que sua obra é compreendida e apreciada, que artista não sonhou com isso? –, iriam permitir a Bach uma produção abundante. Concertos, sonatas (quase toda a sua música de câmara data dessa época), O cravo bem temperado, as suítes e partitas, as aberturas para orquestra, os Concertos de Brandenburgo…

Muito teria para se falar da música de câmara de Bach, que em sua maior parte data do período de Kõthen: sonatas para violino e cravo, para violino solo e violoncelo solo.

Em Köthen, Bach casou-se pela segunda vez, com Anna Magdalena Wilcken, filha de um trompetista da orquestra e cantora da corte. Manifesta-se, contudo, nesse período, uma insatisfação. E é por onde se pode medir o domínio exercido, consciente ou inconscientemente, pela tradição familiar. O príncipe Leopold era calvinista e, em Kõthen, a música religiosa não tinha qualquer participação no culto. O papel de Bach era, portanto, exclusivamente profano. Ao que parece, Bach teria sentido fortemente a necessidade de voltar a trabalhar para a igreja, como sempre haviam feito seu pai e seus antepassados. Tentou, de início, conseguir um lugar como organista em Hamburgo. Até que apareceu a chance de ir para a Thomasschule [Escola de Santo Tomás] em Leipzig (7).

Então Bach mudou o curso de sua vida e renunciou a todas as vantagens adquiridas. Por um salário menor, escolheu o posto de Leipzig, repleto de inconveniências que não demoraram muito a tornar-se insuportáveis. A Escola de Santo Tomás de Leipzig era uma antiga instituição criada pela Reforma. Meio orfanato, meio conservatório, estava estreitamente inserida na vida da igreja e na da cidade.

A função que Bach exercia já tinha vivido melhores dias. Johann Kuhnau, o predecessor de Bach, era simultaneamente professor de letras, de teologia, professor de música e diretor das atividades musicais da igreja, regente do coro, regente da orquestra e — é claro — compositor. Mas, em 1730, essa função já era anacrônica, tal como a estrutura da escola. E aqui intervém o último dos fatores culturais de que falei mais atrás: o Iluminismo estava provocando uma modificação nas relações e nas estruturas sociais. A Escola de Santo Tomás, com sua organização antiquada, já não correspondia às aspirações intelectuais do século XVIII. O reitor da Escola desejava fazer da Escola de São Tomás algo mais moderno. E a função de Bach era um dos fatores que o atrapalhava. Bach pedia mais recursos para a música religiosa, uma disponibilidade maior dos alunos, enquanto o reitor gostaria de vê-los estudar latim ou grego, de preferência, a gastar horas e horas com ensaios no coro. O impasse era total, e Bach se revelou muito pouco político. Ele apenas brigava e sua música “fora de moda”, não agradava. Ele negligenciava os cursos de latim e os transferia a inspetores. Tudo virou uma grande luta.

A tragédia — pois trata-se autenticamente de uma — é que essa amarga decepção vinha precisamente daqueles para quem havia escolhido trabalhar e consagrar sua vida. Por essa estrutura paroquial ele renunciara à vida fácil da corte e à segurança de Köthen. Ao buscar o modelo social, cultural e religioso que foi o de todos os Bach antes dele e à sua volta, J.S. Bach escolheu um caminho que era já anacrônico e retrógrado.

Os primeiros anos de Bach em Leipzig dão testemunho da felicidade que, no início, a situação lhe proporcionou, o que se pode medir por sua vitalidade criadora: foram 48 cantatas só durante o ano de 1723 — quase uma por semana —, duas Paixões (São João em 1723 e São Mateus em 1729), motetos, e a Missa em si menor em 1733.

Mas, aos poucos, não somente ele se desinteressou da escola, descarregando suas obrigações sobre os inspetores, como se fez mais vagaroso na criação de suas composições: umas poucas cantatas, apenas, ao longo dos vinte últimos anos de sua vida. É que, para Bach, compor era um ofício e como seu ofício parecia ter-se tornado inútil — então ele praticamente se calou. Em Bach não havia a noção de criar uma obra para a posteridade. E a movimentada vida em sua casa, entre filhos e alunos passou a interessá-lo mais.

Os últimos anos de sua vida foram tristes. A música evoluía. O estilo “galante” foi se impondo pouco a pouco. Um compositor menor, mas bom, como Telemann, adaptou-se à perfeição aos novos tempos. Bach não mudou. Seu estilo estava fora de moda. Só uns poucos especialistas o compreendiam. Não escrevia mais que algumas obras difíceis — como A Arte da Fuga –, destinadas a um pequeno número de melômanos capazes de apreciá-las. Recolheu-se a um isolamento altivo e intransigente.

Ainda houve ocasiões festivas, como a viagem à corte de Potsdam, onde seu filho Carl Philipp Emanuel era cravista e durante a qual Frederico II dispensou-lhe honrarias. Mas a saúde de Bach se enfraqueceu. Ele teve catarata e ficou totalmente cego após um charlatão operá-lo. Este charlatão foi o médico John Taylor. A existência de Taylor foi altamente destrutiva para a música. As cirurgias de Taylor incluíam o uso de sangue e de fezes de pombos recém abatidos, além de açúcar e sal. No final de março de 1750, Taylor operou duas vezes a catarata de Bach em Leipzig e o cegou. Bach adoeceu logo após a segunda operação e faleceu menos de quatro meses depois. Oito anos depois, Taylor operou e cegou também Handel, que morreu logo a seguir.

Muito se tem simplificado a personalidade de Bach. Porque teve vinte filhos, porque sua vida transcorreu aparentemente como um fio ininterrupto sem maiores perturbações, sem paixões tempestuosas, sem aventuras, centrada no estudo e no trabalho, resolveu-se fazer dele um modelo de perfeito cidadão, pai perfeito de 20 filhos, marido perfeito, compositor perfeito. Em parte é verdade: Bach constitui um desmentido ao estereótipo da arte maldita, da arte inadaptada, do gênio marginalizado. Parece ter passado pouco por dramas íntimos, mas teve, sem dúvida, sofrimentos e dores. Sua vida nas cortes e nas igrejas, à exceção de Köthen, era a de brigar por mais recursos sendo muito pouco político. Sim, era um brigão, um resmungão. Houve a morte de uma mulher amada, a de numerosos filhos, dos quais dez não chegaram à adolescência. Ou seja, não se deve aceitar facilmente essa ideia de serenidade perpétua.

O que impressiona na vida de Bach, como em sua obra, é uma força e persistência imensas. Não foi um homem amável ou diplomata. Desde a adolescência, Bach parece ter sido adulto. Solucionava seus problemas familiares — duas esposas, vinte filhos, incontáveis alunos — com uma segurança que poucos artistas parecem ter possuído. Se houve serenidade, foi uma conquista. Talvez sua obra contenha sofrimento e dor, sentidas e superadas.

Johann Sebastian Bach

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O fundamento da gramática musical de Bach é o contraponto. Pode-se dizer que tem no contraponto a sua língua materna, sua maneira natural de falar. Bach é o herdeiro de toda a tradição polifónica europeia — digamos, de cinco séculos de polifonia. Uma melodia, para Bach, nunca vem só: engendra por si mesma uma ou muitas outras, independentes e complementares. O pensamento musical de Bach apresenta-se sempre, e da maneira mais espontânea, como uma polimelodia, uma estrutura combinatória em que mais de uma linha musical conserva toda a sua independência melódica.

O virtuosismo de Bach no domínio do contraponto é espantoso. Ele parece capaz de “combinar” qualquer melodia com uma outra, ou consigo mesma, de todas as formas imagináveis.

Homens como Lully e Haendel, por exemplo, pensam a música de outra forma. Com eles, só a melodia principal move-se no tempo; sua harmonização é pensada em função da eficácia imediata do acorde. Bach, no entanto, pensa “simultaneamente” nos dois sistemas, e nisso está a fonte da extraordinária eficácia de sua linguagem musical. Virtuose do contraponto, ou seja, sempre à espreita da “perspectiva” desenhada pelas melodias ao longo de seu desenrolar no tempo, jamais perde de vista o resultado produzido no imediato pela superposição das notas captadas em sua simultaneidade.

Isso explica, também, que Bach não tenha herdeiro musical. Sua síntese é única, porque não se poderia fazer algo assim senão entre 1700 e 1750. A evolução da estética musical torna-a impossível mais tarde. Já no fim de sua vida, Bach era incompreendido e “superado” aos olhos de seus contemporâneos. Seu filho Friedemann, tão próximo do pai no pensamento musical, viveu dilacerado pela impossibilidade de realizar um ideal estético anacrônico.

Bach é ao mesmo tempo um arquiteto e um miniaturista. Mas a força de seu discurso musical, o poder de sua invenção melódica são tais que essas inflexões e essas intenções expressivas acham-se sempre perfeitamente integradas. Uma obra de Bach tem sempre duas dimensões, assemelhando-se de certo modo àqueles quadros flamengos que podem ser decifrados a duas distâncias. A uma primeira distância, admiram-se as linhas, as massas, as proporções, a luz, as figuras, o desenho. Ouve-se uma cantata ou a Paixão segundo São Mateus como quem olha, a dois metros, o retrato de Arnolfini e de sua esposa por Van Eyck. Mas, se chegarmos mais perto, perceberemos, no espelho que está por trás do casal, todo um mundo em miniatura, como um quadro dentro do quadro e que a dois metros não era possível distinguir.

Bastante adaptado a partir de trechos do capítulo sobre Johann Sebastian Bach, publicado no livro História da Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin.

Ouvindo a Missa em Si Menor de J. S. Bach

Ouvindo a Missa em Si Menor de J. S. Bach

bach-caricatura11Mesmo com o início do verão e do expressivo aumento do suor diário, é prazerosa a caminhada matinal de 20 minutos para o trabalho. Fundamental é ter um bom fone de ouvidos, o que desafia toda prevenção de segurança em nossa tranquila cidade que possui a cesta básica mais alta do país e nenhum brigadiano para nos desejar bom dia pelo caminho. Bem, a programação musical de hoje era, indiscutivelmente, a melhor possível.

Aos que não têm vivência com a música, aconselho consultar qualquer enciclopédia, ler qualquer musicólogo, acessar o Google, etc. a fim de ler o que está lá descrito sobre a Missa em Si Menor BWV 232. Boa parte dos comentaristas que têm o viciante hábito de criar listas e classificações de maiores e melhores, costumam colocar a Missa como a maior obra musical de todos os tempos. Boa parte. Tenho treinado para não sair impondo às pessoas prólogos inúteis do tipo “é o melhor filme”, “é o maior dos livros”, e coisas do gênero. No mínimo, é melhor antecedê-las de um “em minha opinião” ou “penso que”.

Tenho ouvido a Missa em Si Menor desde minha adolescência e parece-me que sempre descubro nela um detalhe a mais, um novo encanto. Hoje pela manhã, coloquei nos fones o CD duplo da gravação de Philippe Herreweghe e, por quase duas horas, acreditei num outro mundo. A noção de divindade sempre evitou este cético, mas, como afirmou o também descrente Ingmar Bergman, é impossível ignorar que Bach (1685-1750) nos convence do contrário através de sua arte perfeita. Um dos poucos indultos que concedo ao cristianismo é o de ter sido uma das musas de Bach, embora nas muitas vezes em que o compositor fugiu do sacro, tenha atingido uma qualidade igualmente insuperável.

A grandeza da Missa não é casual. Bach escreveu-a em 1733 (revisou-a em 1749) com a intenção de que ela fosse uma obra ecumênica. Seria a coroação de sua carreira de compositor sacro. Quando a Bach, roubou de si mesmo ou fez retornar alguns de seus melhores trabalhos de sua longa obra. Imaginem que ele trouxe para a Missa uma ária que compusera em 1714! Naquele momento ele fazia uma revisão de si mesmo e, por isso, a Missa também é um compêndio de Bach. Para completar, o trechos compostos especialmente foram criados por um compositor no auge de sua capacidade. A Missa é cantada em latim. Suas outras obras sacras (Missas, Oratórios, Paixões, Cantatas, etc.) sempre utilizaram o alemão e foram apresentadas em igrejas luteranas, porém, na Missa, Bach usa o latim que, em sua opinião, seria mais cosmopolita e poderia trafegar em outras religiões, principalmente a católica. O texto utilizado não foi o das missas de sua época. Era mais antigo e inclui versos retirados após a Reforma, como o significativo Unam sanctam Catholicam et apostolicam Ecclesiam, que é cantado no Credo. É como se Bach pretendesse demonstrar a possibilidade de entendimento entre católicos e protestantes.

Curiosamente, esta obra tão profundamente erudita e religiosa, é hoje mais apresentada em salas de concertos do que em igrejas, pois suas necessidades de tempo (105 a 120 minutos) e de número de executantes são maiores do que as igrejas normalmente dispõem. Não obstante o problema, Bach consegue transformar tanto as salas de concerto quanto nossas casas — assim como nossos ouvidos durante uma caminhada na chuva — em locais de devoção, musical ou religiosa.

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Desde os anos 70, compro gravações da Missa. Comecei por uma que não recomendo, a de Karl Richter (3 LPs ou 2 CDs) com a Orquestra e Coro Bach de Munique. Sem dúvida é o registro mais obeso que possuo da Missa e também o mais remendado, uma mistura barrocorromântica das mais estranhas, não obstante o excepcional time de músicos e cantores. A orquestra utilizada por Richter é maior que a dos padrões barrocos e, para fazer frente a isto, o coral teve de ser multiplicado. Há enorme intensidade dramática nos tutti, porém, os trechos camarísticos só valem pelos cantores. É uma gravação sem muito senso de estilo, maníaco-depressiva, capaz de passar da mais louca alegria à expressão mais triste e íntima em segundos. Não gosto.

Minha segunda experiência foi com Andrew Parrott (Solisten des Tölzer Knabenchors e Taverner Consort & Players). Depois da multidão, fui para uma gravação que envolve um contingente mínimo de cantores e instrumentistas. Parrott é um dos precursores da execução de músicas com instrumentos originais. Em minha opinião, a tese é correta. Apesar de achar que cada época possa dar uma interpretação e expressão, busco ouvir preferencialmente o que o compositor ouvia. Porém, como muitos revolucionários, talvez Parrott exagere. Bach dava liberdade a que se executassem suas músicas com grupos maiores ou menores, então Parrott não o contraria, mas torna seu registro indigente. Fiquei sonhando com um meio termo entre Richter e Parrott, entre o faraônico e o indigente.

Então conheci uma gravação mais antiga e muito melhor que a de Parrott. Sim, a solução veio dos Países Baixos. Primeiro com Gustav Leonhardt. Quando a ouvi, pensei: aí está, para mim, esta é a melhor de todas as gravações da Missa. Fui ler as principais publicações e minha impressão foi avalizada. Leonhardt, que foi holandês, convidou outros da orquestra de câmara La Petite Bande e do Collegium Musicum e conseguiu nos enviar sem escalas ao coração de Bach. Porém… Em 1998, veio um registro a cargo do belga Philippe Herreweghe. Claro, deve ser mais fácil fazer uma gravação melhor depois de ouvir seus antecessores; diria até que há ecos do melhor de Richter, Leonhardt, Parrott e Harnoncourt em seu registro, mas há muito de mérito próprio. Herreweghe é difícil de superar.

Hoje, acho ainda que Philippe Herreweghe e seu bom coro, instrumentistas e solistas superam qualquer outra gravação da Missa. E que maneira encontrou Herreweghe e o Collegium Vocale para fazê-la! Ele nunca usa mais de 5 cantores por parte, então o coro é uniforme, de grande sonoridade e dicção clara. Cada linha e voz pode ser ouvida e compreendida distintamente. Os sopranos e contraltos não são feitos por meninos, como nas gravações de Harnoncourt. Com alta maturidade na expressão do barroco, seus poucos vibratos não pesam — são suaves e parecem vir diretamente do século XVIII. Meus ouvidos e mente de velho ouvinte de Bach dizem que Herreweghe faz o que Bach desejava para o seu próprio coro na Igreja de São Thomas em Leipzig.

Li em algum lugar que Herreweghe é agnóstico. Belo ponto pra nós. Será que isso teve alguma influência? Nos primeiros compassos do Kyrie, onde a tradição manda começar por um poderoso grito de agonia por misericórdia, ele nos oferece um apelo perplexo e suave, quase cansado. Movimentos extrovertidos como o Gloria, Et resurrexit e o Sanctus são cheios de emoção. O Qui tollis e o Dona nobis pacem chegam como fervorosas orações. Gostaria de dizer que o Collegium Vocale de Herreweghe tem uma “sonoridade luminosa” e que os instrumentistas estão corretos a cada gesto. Os solistas alcançaram um notável equilíbrio com os instrumentos de época. O tenor Christoph Prégardien e contratenor Andreas Scholl estão magníficos. Subjacente ao profundo sentimento religioso que a obra exala, o ateu pode desmilinguir-se de admiração.

Aqui, você tem a gravação da Missa em Si Menor por Philippe Herreweghe.

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Um amigo português, anos atrás, mandou-me um e-mail assim:

Milton. Tens razão (ou quase) do que dizes sobre a Missa do Deus Homem ou do Homem Deus. Ai, Bach, Bach, nestes dias conturbados que passo tenho-te a ti. Olho para o quadro dele que tenho na minha sala de estar e respiro melhor. És o apogeu da Humanidade agora e sempre, hoje e daqui a bilhões de anos se este planeta existir. Jamais haverá outro. Dois Bachs são demais para o Mundo, para a decadente raça humana. Eu tenho pena de morrer (lembra-te do tema) e não poder ouvir a tua musica. Se eu pudesse me levantar da campa de dez em dez anos por duas horas e meia (o tempo da Paixão de S.Mateus) não me importava de morrer já. E já que falo na Paixão de S. Mateus, a do Leonhardt (o pai dos outros todos) é a melhor, ou a de que eu gosto mais. Voltando à Missa… A do Leonhardt, como a ti, também é um disco que me tem acompanhado ao longo da minha vida, também era um dos discos que levava para a ilha deserta. A do Gardiner não, dispenso (É aqui que está o quase). Grande interpretação e uma das referências, sem duvida, a de Phillippe Herreweghe (e uma qualidade de som soberba). A de Masaaki Suzuki da Bis é outra a ouvir e a comprar. Com coro de crianças aconselho também uma boa interpretação de Robert King com a Tolzer Knabenchor da Hyperion.

E é melhor parar por aqui que se eu começo a escrever sobre Ele nunca mais paro. Prefiro ouvi-lo, o que faço religiosamente todos as semanas. TODAS AS SEMANAS. No bom sentido ela é viciante, inebriante, comovente e arrasadora. Ao ouvir as suas grandes obras, deitado de olhos fechados, tenho a sensação que pela primeira vez e única alguém atingiu a perfeição. A sua obra desfaz-me em pedaços, arrasa-me, emagreço, tira-me a dor de dentes e da alma. Sinto-me um anão e ao mesmo tempo um gigante (por o ouvir).

Ai, Bach, Bach… E eu vou morrer um dia!
Cumprimentos

O compositor Gilberto Agostinho acaba de fazer um belo e enriquecedor comentário a este post. Faço questão de publicá-lo como parte do mesmo.

Sempre que possível eu gosto de ouvir música com a partitura na mão. Hábito de músico, além de ser um ótimo jeito de aprender coisas e estudar. Mas existem algumas partituras que assustam a gente, pela clareza e simplicidade na escrita e pelo resultado fenomenal. Bach e Brahms tem disso. Eu fico horas analisando uma passagem simples, a duas vozes, e procurando entender o porque daquela sonoridade fantástica, mas muitas vezes não chego a conclusão nenhuma. Simplesmente não entendo. Parecem notas normais, que qualquer um poderia ter escrito, mas elas não soam assim! Com Mahler, você sabe que aquilo vai soar grande, você enxerga tudo, mesmo na passagem mais complexa. Não é o momento que vale, mas sim a construção. Você tem que caminhar junto com ele. Já Bach… O primeiro compasso (o primeiro compasso!) da Paixão Segundo São Mateus é capaz de me arrebatar, e ali já se encontra toda a profundidade que esta obra vai carregar durante duas horas. Em um compasso! E os recitativos, acordes simples e uma melodia, nada mais. Tudo mais!, na verdade, e eu nunca ouvi recitativos tão profundos como em Bach. As vezes eu me sinto um relojoeiro inexperiente, que tenta abrir os relógios mas não consegue entender nada, muito menos montá-los de volta. A diferença é que a música não é simplesmente uma pequena máquina, e não existem manuais. É uma das coisas que eu lamento ao ouvir Bach, imaginar que eu nunca vou conseguir uma profundidade como aquela nas minhas composições.

E ainda voltou para completar:

Obrigado por colocar meu comentário no corpo do post. Eu não sei se consigo explicar um pouco melhor o que penso, mas vale a tentativa. Já relembro, antes de receber uma chuva de xingamentos, que tudo aqui se trata da minha humilde opinião. Enfim, uma das formas mais simples de se fazer música, na opinião deste declarado contrapontista, é a melodia acompanhada. Mozart e Schubert foram os maiores mestres nesta arte. A coisa é simples: existe um tema, normalmente fácil de ser reconhecido tanto auditivamente quanto pelo olhar (a figuração das notas muitas vezes nos chamam atenção para melodias escondidas, ou para vozes de menor importância, mas que carregam informações do tema). Acontece que em Brahms, por exemplo, muitas vezes nós não enxergamos o tema. Ele simplesmente não está lá! Você ouve a música, você até consegue cantarolar algo incerto mas não enxerga. As notas são muito simples, os ritmos todos simples também. Tudo aquilo podem ser fragmentos de informação. E são. Você tenta analisar harmonicamente, e é tudo fácil. Contrapontisticamente, sem segredos. O ritmo, simples. E então? Por que raios aquilo soa denso, e não só soa, mas é denso? Como carregar estas simples notas com toda esta conotação? Em Bach a ideia de tema e desenvolvimento, como nós conhecemos hoje, nem existia. Mas está lá, a obra é permeada destes fragmentos de informação. Você ouve o baixo, e pronto, lá está uma inversão da melodia principal. Você ouve a linha da soprano, ela também é uma consequência desta. Toda a obra é erguida sobre pilares limpos, claros, simples. E, no entanto, ninguém conseguiu chegar próximo deste domínio artístico. Sibelius é simples também, assusta no começo, mas logo que se ouve o susto passa. A música dele as vezes é rarefeita em informações, e condiz com a partitura. Agora eu ainda não entendo Bach. Parece mecânica quântica, ou uma piada divina. “Se queres olhar fundo, então olhes. Mas não entenderás nadica de nada.”

Francis Marshall mete sua qualificada colher para discordar de alguns pontos do texto:

Leute, mesmo endossando as loas e teses acima, acrescento:
1. Duvido que Bach tenha pensado em solução ecumênica ao compor a Missa em si menor. Na verdade, ele a finalizou, quase toda, e apresentou em partes (com manuscritos, como de costume, copiados na corrida por toda a tropa Bach, inclusive Anna Magdalena, que tinha uma ótima caligrafia) para pleitear um emprego junto ao Rei “católico” em Dresden, Augusto II (Augustus der Stark, ou Augusto, o forte), no final de julho de 1733. Isso explica a linguagem católica meio desajeitada, com arremedos de sua verdadeira e irrevogável fé, luterana. Bach certamente não possuía tempo, biblioteca e motivação para elaborações teológicas maiores. O luteranismo, para ele, era suficientemente universal.
2. Ele cobiçava um cargo em Dresden, doidamente. Era a melhor corte musical da Europa, repleta de Vivaldi, dinheiro, bons amigos… Bach correu a vida toda atrás de melhores postos, e ficou sempre, infelizmente, aquém. Assim, na apresentação da Missa em Dresden,fez uma aposta alta e reuniu seus melhores materiais, reciclando muito de seus arquivos, o que sempre fez com perícia e tino estratégico.
3. Destaque para o Crucifixus, música de uma gravidade patética imensa, pungente. Provém, todavia, de uma cantata amorosa de Vivaldi (RV675), adaptada em seus tempos de Weimar, primeriamente na cantata BWV12 (Weinen, Klagen, Sorgen, Zagen = chorar, lamentar, lastimar, temer), apresentada a 22/04/1714. Este coro reaparece no grande coral inicial da cantata BWV78 (de Leipzig); seu belo baixo cromático tem precedente não só em Vivaldi, mas também na ária do baixo da cantata BWV4 (de Arnstadt, 1707, reapresentada em Leipzig em 1724 e 1725). Eu não consigo passar muitos dias sem ouvir essa música, é algo que muda a cor da paisagem e do tempo vivido. A versão com nossa deusa Emma Kirkby é de se ouvir entra as nuvens e Jupiter.
4. Apesar de tudo, Bach, uma vez mais, saiu de Dresden cheio de honras e nenhum florim a mais no bolso. Recentemente, ofereci-lhe emprego bom, compondo a trilha deste filmeco: http://moviolafm.blogspot.com/2008/10/dresden-glria-morte-e-ressurreio.html
5. Eu sou ateu, agnóstico e pagão estético, mas a espiritualidade musical de Bach é mesmo irresistível, sublime.

330 anos do gênio de Johann Sebastian Bach

330 anos do gênio de Johann Sebastian Bach
A assinatura de Bach

Publicado no Sul21 em 28 de março de 2015

Talvez, para nosso tempo, seja difícil entender o homem que foi Johann Sebastian Bach. Ele nasceu há 330 anos, em 21 de março de 1685 (*), no que hoje é a Alemanha, numa família de músicos. Era um tempo em que era comum os filhos adotarem a profissão dos pais. Na região da Saxônia, o nome Bach era de tal forma relacionado à música que alguém com tal sobrenome só poderia ser músico e provavelmente trabalhava em alguma igreja. Seguindo a árvore genealógica da família Bach, dos 33 Bach homens, 27 foram músicos. Só que o talento explodiu espetacularmente no menino Johann Sebastian. É claro que ele, além de exercer outras funções, também trabalhou como Kapellmeister — termo que designa o diretor musical de uma igreja.

Durante um longo período de sua vida, escreveu uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música e ainda ensaiar. Isso fez com que ele nos deixasse uma imensa obra vocal. Também escreveu muito para um instrumento fora de moda, o órgão. E, se em Weimar as obrigações de Bach estavam prioritariamente vinculadas ao serviço religioso e como organista na corte cristã, na corte calvinista de Köthen, Bach pode dedicar-se à música secular, criando um dos mais imponentes e impressionantes conjuntos de obras solo para teclado, violoncelo, flauta e violino da história da música ocidental. Deixou-nos mais de 1000 obras de todos os gêneros, à exceção da ópera.

Obs. sobre o vídeo acima: na época, era proibido que as mulheres cantassem em igrejas.

Como dissemos, ele era um homem de outra época. Bach, por exemplo, não se preocupava em construir uma obra. Aliás, em seu tempo não existia a noção de “obra” de compositores. A música era consumida e esquecida. Como seus contemporâneos, Bach compunha sem a preocupação de colecionar-se, tanto assim que uma parte de sua produção foi perdida. O que se sabe de forma consistente a respeito de Bach é uma série de curiosidades: suas brigas com os empregadores, sua prisão, seus muitos alunos, os dois casamentos, os 20 filhos, a produção própria de cerveja e algumas poucas anotações pessoais.

Uma única anotação é muito célebre e pessoal. Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach, em seu luto, escreveu no alto de uma partitura um pedido: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim. Se a criatividade fazia parte da “alegria” que tinha receio de perder, isso nunca aconteceu.

Emil Cioran escreveu que A música de Bach é o único argumento que prova que a criação do universo não pode ser vista como um grande erro e que Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Os ateus gostam de contestar a religiosidade de Bach tendo por base as muitíssimo pragmáticas trocas de documentos entre Bach e os religiosos, mas nada sustenta tal tese. Talvez o que os perturbe sejam as constantes afirmações de melômanos ateus de que, durante a execução de algumas obras sacras de Bach, principalmente a Missa em Si menor, dizem acreditar em Deus por duas horas.

Pois Bach tem disso: pode-se passar horas analisando uma passagem simples, a duas vozes, procurando entender a razão pela qual o compositor obteve aquela sonoridade fantástica. É incompreensível e passamos a pensar que Cioran não exagerou. Simplesmente não se entende porque algo tão simples é tão profundo. Parecem notas normais, que qualquer um poderia ter escrito, mas elas não soam assim. Porém, muitas vezes é algo complicadíssimo, mas também funciona da mesmo forma. Com Mahler, sabe-se que algo vai soar grande, enxerga-se tudo, mesmo na passagem mais complexa. Enquanto que em Bach… O primeiro compasso da Paixão Segundo São Mateus já é capaz de arrebatar. Ali já se encontra toda a profundidade que esta obra vai carregar durante três horas. Ouve-se o baixo, e pronto, lá está uma inversão da melodia principal. Ouve-se a linha do coral, e também é uma consequência desta. Toda a obra é erguida sobre pilares limpos, claros, simples. E, no entanto, ninguém conseguiu ombrear-se a tal domínio artístico.

Em vez de adjetivar exageradamente uma série de obras bachianas, vamos tomar por base o texto 10 (petites) choses que vous ne savez (peut-être) pas sur Jean-Sébastien Bach para caracterizar fatos da vida do compositor. Ampliamos em muito a matéria original, retiramos e acrescentamos outros itens.

 16 (pequenas) coisas que (talvez) você não saiba sobre Bach

1. A prisão

Johann Sebastian Bach esteve quase um mês na prisão — entre 6 de novembro a 2 de dezembro de 1717 — durante seu período em Weimar. O crime era o de traição a seu patrão. Fora-lhe recusado o cargo de Kapellmeister na cidade, e ele solicitou permissão para partir e tentar a sorte em outro lugar. Queria o posto de maestro em Köthen. Bach insistiu e insistiu para ser demitido. Acabou preso. De acordo com o relatório do tribunal, o motivo da prisão foi o de “forçar a sua demissão”. Era, decididamente, outra época.

2. A infeliz operação de catarata

O grande doutor John Taylor (1703-1772) operou duas vezes a catarata de Bach em 1750. Fez o mesmo com Handel em 1753. Fracassou com ambos. Pior, matou Bach, enfraquecido após as cirurgias, e deixou Handel inteiramente cego.

3. O medo na concorrência

Durante uma viagem a Dresden em 1717, houve uma brincadeira entre aristocratas. Foi organizada uma competição para decidir quem tinha mais habilidades para a improvisação: se Johann Sebastian Bach ou Louis Marchand, famoso cravista e organista francês. Na véspera da grande “luta”, ao entrar num salão, Marchand deu de cara com Bach ensaiando. Foi o suficiente. Marchand deixou um recado onde alegava uma doença súbita e fugiu de madrugada.

4. O trabalho não era fácil

Ser Kappellmeister não era simples. Regente do coro da igreja, da orquestra, compositor, ensaios e mais ensaios, além de professor de música e catecismo. Em relatório de 1706, quando tinha 21 anos, Bach dizia mais: que as crianças “já não temem seus professores, elas até mesmo lutam em suas presenças, carregam espadas e pedras não somente pela rua, mas também na sala de aula.”

5. Bach teve 20 filhos

Aos 22 anos de idade, casou-se com uma prima, Maria Barbara Bach. Deste casamento, ele teve 7 filhos, dos quais sobreviveram quatro:  Catharina Dorotheia, Johann Gottfried Bernhard e os compositores Wilhelm Friedmann e Carl Philipp Emanuel. Maria Barbara morreu em maio de 1720. Depois de algum tempo, ele conheceu a soprano Ana Magdalena Wilcken e casou-se pela segunda vez em 1721. Teve 13 filhos com ela, dos quais 7 faleceram ainda bebês. Sua casa, ainda acrescida de diversos alunos residentes, era lotada. Como ele arranjava tempo para compor?

6. O desamor de Leipzig

Se Bach é apelidado hoje de O Kantor de Leipzig, não podemos dizer que a cidade lhe desse uma contrapartida afetuosa. Seus chefes eram rápidos para lembrá-lo de sua “incompetência”. Em 1727, um assessor escreveu que Bach não compusera nada durante todo o ano. Hoje, sabemos que ele, como sempre, trabalhou louca e produtivamente naquele ano. Em 1730, ele foi repreendido e advertido pelo mesmo motivo. Quando de sua morte, um jornal da cidade publicou uma notinha onde dizia que “um homem de 67 anos (ele tinha 65), o Sr. Johann Sebastian Bach, maestro e Kantor na Escola St. Thomas”, morrera. Nada mais.

Um dos poucos retratos de Johann Sebastian bach
Um dos poucos retratos de Johann Sebastian Bach

7. Ausente das aulas

O maestro John Eliot Gardiner enfatiza a violência do ambiente em que o compositor passou a infância. Eram comuns as rivalidades entre gangues, as brigas entre estudantes e as maldades sádicas. O menino Johann Sebastian esteve ausente por 258 dias em seus três primeiros anos de escola. O motivo mais comum para tais ausências era a violência. Isso em um sistema escolar que ensinava preceitos religiosos por 70% do tempo.

8. O amor pelo café

O gosto de Johann Sebastian Bach pelo café vem de sua participação na instituição de Gottlieb Zimmermann, o Café Zimmermann, onde o compositor apresentava-se regularmente durante a década de 1730. O café era uma novidade recente e sucesso absoluto naquele início de século XVIII. Na época, era encarado como uma moda passageira e um luxo. O compositor dedicou uma Cantata profana ao produto (o BWV 211, a Cantata do Café) que conta a história de uma moça casadoura que diz preferir a bebida a mais de mil beijos e afirma que só aceitará casar com um marido que lhe dê café. No inventário de Bach, há menção a coisas raras como dois potes de café (um grande e um pequeno) e um açucareiro.

https://youtu.be/YC5KpmK6oOs

9. Ele bebia. E como

Se o conselho da cidade de Leipzig tratava-o com dureza, deve-se notar que Bach gozou de relativa liberdade na cidade luterana. Ele produzia sua própria cerveja e pagava mais imposto sobre a produção desta do que gastava com habitação. As notas examinadas por seus biógrafos indicam que a família Bach consumia toneladas de cerveja. Um relatório de gastos com impostos do compositor em 1725 (tinha 40 anos) dá conta de um consumo espetacular, mesmo considerando a enorme família e alunos.

10. Escreveu música para curar a insônia

Uma de suas obras mais importantes, as Variações Goldberg, foi composta para um ex-embaixador russo na corte eleitoral da Saxônia, o conde Hermann Karl von Keyserling. O conde passava noites e noites sem dormir. Quando o desespero batia mais forte, ele chamava um de seus empregados, o jovem cravista Johann Gottlieb Goldberg, para lhe dar um recital particular. Certa vez, o conde mencionou, na presença de Bach, que gostaria de ter algumas obras de caráter suave para Goldberg executar. Elas deveriam ou consolá-lo em suas noites sem dormir ou encaminhá-lo para a cama. Bach imaginou que a melhor maneira de atender a esse desejo seria por meio de variações. Assim nasceram as Goldberg.

11. Tudo sobrava, sobretudo talento

A perfeição daquilo que criava — e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu — era pura necessidade individual de fazer as coisas bem feitas. Como era pouco compreendido, brincava sozinho criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma Cantata corresponde ao capítulo e versículo da Bíblia daquilo que está sendo cantado. Em seus temas aparecem palavras — pois a notação alemã é feita através de letras — e suas fugas envolvem complexidades que só podiam ser apreendidas por especialistas. O próprio nome B-A-C-H (Si Bemol, Lá, Dó, Si) é utilizado muitas vezes, sempre com significado. Então Bach era não apenas um fantástico melodista capaz amolecer as pernas do ouvinte, como um sólido teórico capaz de brincar com seu conhecimento. Em poucas palavras, pode-se dizer que ele sobrava… Sua obra, mesmo com a perda de mais de 100 Cantatas e de outras obras por seu filho mais velho, o preferido de Bach, Wilhelm Friedemann, corresponde a 153 CDs da mais perfeita música. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou mais de 6 dias ininterruptos de música.

12. O entendido em acústica

Bach era constantemente chamado a outras cidades para analisar a qualidade de órgãos e dar conselhos sobre a acústica de igrejas e salas. Arranjou alguns inimigos em suas viagens ao considerar alguns locais verdadeiras tragédias sem solução. Mas também tinha a fama de fazer acertos milagrosos.

13. A gênese de A Oferenda Musical

Frederico II da Prússia (Frederico, o Grande) quis conhecer Bach e convidou-o para um sarau em seu palácio. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, um evidente desafio, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio para os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada A Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.

https://youtu.be/Uyu-btfnOhc

14. Os Concertos de Brandemburgo quase viraram papel de embrulho

Na verdade não precisariam das outras quase 1100 composições para colocar Bach como um dos maiores compositores de todos os tempos. Bastariam os Concertos de Brandenburgo. São seis esplêndidos concertos para diversos instrumentos que… Bem, conta a lenda que suas partituras estavam sendo guardadas para serem utilizadas em uma casa comercial como papel de embrulho. Esta história é tão inacreditável que nos damos o direito de duvidar dela…

15. O cinema gosta muito

Bach flutua em ondas na modas cinematográficas. Já houve o tempo em que se ouvia a Tocata e Fuga em Ré Menor, ou a Chaconne para violino solo ou a ária Erbarme dich em vários filmes. No ano passado, Lars von Trier fez uma enorme homenagem ao BVW 639 Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ em Ninfomaníaca — a música é explicada em detalhes pelo personegam Seligman. Pawlikowski fez o mesmo em Ida, vencedor do Oscar de 2015 de melhor filme estrangeiro. Andreï Tarkovski já tinha feito o mesmo no clássico Solaris.

16. Bach está no seu celular… E nos aviões

Ele estava tão a frente do seu tempo que grande parte dos toques dos celulares foram compostos por ele…

Bem, e quando dois músicos resolvem brincar em um voo, qual é o ponto em comum que eles encontram?

Tinha um celista no meu voo. Francisco Vila, um violoncelista, e Maximilian, um comissário de bordo beatboxer, brincam com a Bourrée do Prelúdio Nº 3 para Violoncelo Solo de Bach.

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(*) Afinal, Bach nasceu em 21 ou 31 de março de 1685? Vamos falar de 1582? Naquele ano, o calendário gregoriano foi introduzido em alguns lugares da Europa, não em todos. A Itália, a Espanha, Portugal e a Polônia, os mais católicos, aceitaram a mudança ditada pela igreja, o resto não. Só depois é que todos os outros países aderiram. O 21 de março de 1685 da Alemanha não era o mesmo 21 de março de 1685 na Itália, Espanha etc. Havia 10 dias de diferença. O dia em que Bach nasceu foi “chamado” de 21 de março na Alemanha, onde eles ainda estavam usando o calendário juliano. É o que vale! Mas Bach nasceu num 31 de março, considerando o calendário que todos usam hoje, o gregoriano. Da mesma forma, é muitas vezes dito que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Não é verdade. As mortes foram separadas por 10 dias. A de Shakespeare ocorreu em 23 de abril de 1616 (juliano) e equivalente a 3 de maio de 1616 (gregoriano). O que é certo é que podemos comemorar dois aniversários de nosso maior ídolo. E sempre com a cerveja que Bach tanto gostava e produzia em quantidades industriais em sua própria casa.

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A primeira Missa a gente nunca esquece

A primeira vez que ouvi a Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach foi na interpretação de Karl Richter (1926-1981) e da Orquestra Bach de Munique. Hoje, após a revolução das interpretações com instrumentos originais, é uma gravação de valor apenas histórico, mas mesmo assim, é ABSOLUTAMENTE IRRESISTÍVEL para mim e, se não vou às lágrimas, é porque o supergo segura a barra.

Abaixo, o Cum Sancto Spiritu, trecho central da maior obra musical já escrita em todos os tempos — não, exagero nenhum, estou ultrabem acompanhado nesta opinião.

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E agora, o belíssimo e estranhamente melódico — em obra tão contrapontística — Agnus Dei lá quase do final.

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O Imprescindível na Música Erudita – Parte II

Continuando esta empreitada maluca e superior a mim

1722: O Cravo Bem Temperado (Vol.1) – BWV 846-869, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Um verdadeiro golpe de estado na música. O que Scarlatti fizera apenas instintivamente, Bach sistematizou. O império da separação rigorosa de tons maiores e menores começa aqui. A pureza de cada uma das tonalidades e a faculdade de se utilizar, em qualquer composição, todas as 24 tonalidades possíveis encontra aqui sua Bíblia. É uma profissão de fé a favor das tonalidades (ou temperamentos) iguais. A primeira das duas coletâneas de 24 prelúdios e fugas sob o estranho nome de “Cravo Bem Temperado” é um marco na história da linguagem musical. Trata-se de um manifesto sonoro. É a conclusão, o resultado de um século e meio de pesquisas, por meio das quais a música passou, progressiva e empiricamente, do sistema modal e de temperamento desigual, à estrutura sonora que foi utilizada desde o classicismo e romantismo até a época moderna. Só isso. Como se não bastasse, os 24 prelúdios e fugas deste volume 1 tornaram-se parte do repertório dos pianistas e cravistas por seus méritos musicais, além dos teóricos. Mesmo durante a época em que tantas outras obras-primas de Bach caíram no esquecimento, O Cravo Bem Temperado continuou a ser estudado e trabalhado por pianistas. Até hoje é assim. São modelos perfeitos de escritura polifônica para teclado. Muitíssimas gravações. Destaco as grandes e clássicas gravações de Wanda Landowska (cravo) e de Glenn Gould (piano), mas atualmente fico com a gravação maravilhosa e cheia de detalhes surpreendentes de Daniel Chorzempa (Philips, 4 CDs 446 690-2). Maurizio Pollini acaba se aventurar no volume 1 com excelente resultado.

1723: Magnificat – BWV 243, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Por que não dizer que são é a versão vocal dos Concertos de Brandenburgo, de tal forma esta música está impregnada de alegria e otimismo? Emoldurados por dois corais (inicial e final), seus movimentos são breves e de características emocionais bem definidas. É grande música; suave e etérea. Talvez tenha que pensar muito para encontrar outra música de tamanha simplicidade e exuberância. Em 1730, Bach revisou esta obra em latim, que é muito utilizada no Natal e na Páscoa pelas igrejas. Nos outros dias do ano, costuma ser ouvida em muitos templos profanos… como nossos apartamentos. A gravação da Naxos (8.550763) é barata e boa.

1723: Os Concertos para Violino – BWV 1041-1043 e 1052, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Minha mulher não deve ler isto, mas a verdade é que aqui está o melhor Vivaldi que se tem notícia. Bach passou anos estudando, transcrevendo para o órgão e arranjando os concertos de Vivaldi, Marcello e Corelli — compositores italianos que amava. Só que um dia o inevitável ocorreu: ele mesmo resolveu compor concertos italianos e os fez muito melhor que seus modelos. Há muitíssimas gravações excelentes desta música tão popular. Novamente indico a Naxos com seus CDs de bom preço. O Vol.2 dos Complete Orchestral Works (8.554603) é uma jóia. A regência é de Helmut Müller-Brühl e a orquestra é a Cologne Chamber Orchestra.

1729: A Paixão Segundo São Mateus – BWV 244, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A maior obra de Bach? Talvez. É tão dramática quanto os Oratórios de Handel, sobretudo nos coros do povo, curtos e incisivos; é da mais profunda e sincera emoção religiosa, “capaz de converter um ateu”. Seria preciso escrever muitos posts para dar idéia do terreno em que acabo de entrar. Trata-se de uma obra colossal, síntese incomparável da mística gótica, da devoção luterana e da inspiração dramática do barroco. E é, acima de tudo, acima mesmo de qualquer determinação estilística ligada a este ou àquele período histórico, como uma mensagem que nos chega de um outro mundo que por misericórdia se digna a falar nossa língua. É a Revelação , no sentido bíblico. E aqui escreve um ateu. Dois coros (mais um de crianças), duas orquestras, dois órgãos que se respondem de partes distantes da igreja – herança dos venezianos, novamente – solistas vocais e instrumentais. As árias desta música… Se começo a descrever não paro mais. Aqui serei mais firme: penso que a melhor gravação seja a que John Eliot Gardiner fez para a Archiv com The Monteverdi Choir, The London Oratory Junior Choir e The English Baroque Soloists (427648-2). É cara.

1730: Sonatas para cravo, de Domenico Scarlatti (1685-1757).

Quando alguém fala em Scarlatti, está se referindo ao pai, Alessandro, e não a Domenico, o filho. Este homem tímido escreveu 555 pequenas sonatas de um movimento para cravo e não precisou de mais nada. Durante os dez anos em que esteve ligado à corte portuguesa como mestre de capela e professor de música da jovem princesa Maria Bárbara, D. Scarlatti compôs quase toda sua obra. Há indícios de um “caso psicológico” aqui. Enquanto seu pai era vivo, Domenico escreveu óperas sem importância; depois da morte de Alessandro, enveredou por caminhos totalmente diversos e tornou-se um grande compositor. Maria Bárbara — que depois tornou-se rainha — salvou seu professor do anonimato, fazendo publicar, para seu uso pessoal, os 13 volumes das famosas sonatas, que hoje estão fora de moda. Por quê? Não sei. Entre os anos 70 e 80 gravava-se D. Scarlatti aos borbotões. É música de primeira linha, alegre, onde soam as expressões mais íntimas ao lado dos sons das festas populares ibéricas. As gravações que Ralph Kirkpatrick e Gustav Leonhardt fizeram das sonatas são extraordinárias. Difícilmente alguém encontrará melhor introdução à música erudita do que as belas sonatas no esquecido Scarlatti.

1731: Cantatas BWV 80 e 140, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Poderíamos passar horas discutindo sobre a melhor das Cantatas de Bach. Há para todos os gostos, mas, além da que já destaquei, tenho que citar estas duas. A espetacular BWV 140 trata da parábola das virgens prudentes e imprudentes, mas ouça antes de rir… O coral central (o famoso Coral dos Tenores) é esplêndido. À melodia do hino que é entoada pelos tenores junta-se uma melodia completamente diferente vinda dos violinos. É de uma doçura raramente encontrada nas cantatas de Bach: aí se descreve a graciosa procissão das donzelas saindo ao encontro de Jesus, o noivo celeste. Já disse, ouça a música antes que seu sorriso se congele. É uma obra-prima! A BWV 80 é uma festa e foi escrita para isso mesmo. Foi ouvida pela primeira vez no Festival da Reforma de 1724 e revisada depois. É música absurdamente bela, cheia de contrastes em que os temas de Bach cantam poemas do próprio Lutero. Um espanto! Só ouvindo. O primeiro coral e a primeira ária (dueto) são inesquecíveis. São cantatas facílimas de achar. A Naxos tem uma grande gravação da BWV 80, mas não sei se ela gravou a BWV 140.

1736: Stabat Mater, de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).

Morreu aos 26 anos. Dizem que era muito bonito e um conquistador inescapável. Uma lenda conta que um marido ciumento o envenenou. Mas outros o descrevem como feio e aleijado. Não dá para saber. Seu Stabat Mater é muito gravado e executado. Também é de pouca profundidade emocional e NUNCA deve ser ouvido após qualquer obra de Bach. Mas é tocantemente lírico e tem muitos admiradores, inclusive eu. É bonito. A polifonia passa longe de Pergolesi — ele é um melodista e, talvez, um compositor de óperas nato –; os críticos hostis gostam de lembrar que sua grande obra seria a ópera-cômica La Serva Padrona, mas isto só a Claudia, minha mulher, pode avaliar. A ópera é terreno dela. Estou fora. A gravação de 1985 de Claudio Abbado com a London Symphony Orchestra é impecável.

1738: Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A maior. A campeã. Ler aqui.

Paro ao examinar quais seriam as próximas músicas. São duas obras que mereceriam posts exclusivos, assim como a Missa em Si Menor acima: o Messias, de Handel, e as Variações Goldberg, de Bach.

Bibliografia além da memória:
– Encartes de milhares de CDs e vinis.
– História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin. Editora Nova Fronteira, 1997, 1256 págs.
– Johann Sebastian Bach, de Karl Geiringer. Jorge Zahar Editor, 1985, 366 págs.
– Uma Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux. Alhambra, 1977, 356 págs.

As 100 obras essenciais da música erudita segundo a Bravo! ou Vendendo ignorância

Sou um sujeito que está sempre rindo. Morro um pouco a cada dia, mas abstraio-me autenticamente do fato. Então, às vezes quero escrever uma coisa bem alegre ou criativa, esquecendo a Mônica Leal e a Pâmela, mas não dá. Me chamam de volta para que eu meta o pau.

A lista de cem obras essenciais da música erudita da revista Bravo! parece ter sido feita… Sei lá, quem sabe por ocorrências no Google? Proponho um acerto com você, caro leitor. Acho que você concorda que é fácil fazer listas e, quanto mais longas forem, mais fácil fica, certo? Se a lista contiver alguns absurdos, você diz que é questão de gosto e fim. Pois a Bravo! conseguiu fazer a lista errada, aquela que demonstra claramente que seus autores não têm a menor vivência na audição de obras do gênero erudito. Essa lista não é questão de gosto, é questão de polícia.

Moacy Cirne, neste post, já havia destruído a relação da e com a Bravo! utilizando como arma apenas uma obra ausente, as Vésperas da Virgem, de Claudio Monteverdi. Bastou. Trata-se de uma omissão que realmente desqualifica toda a lista. Tem razão a maior autoridade brasileira das histórias em quadrinhos, uma lista de uma centena sem as Vésperas é como deixar de fora Grande Sertão: Veredas ou Cidadão Kane em listas análogas de romances brasileiros ou cinematográfica. Mas não apenas o Moacy merece divertir-se, eu também! Analisarei uma poucas coisinhas… HÁ absurdos inacreditáveis na lista.

82º) Concerto para Oboé, de Mozart: é óbvio que o autor da lista não fez teste de bafômetro. Por favor, meu caro ouvinte, ouça este concerto e depois a Sinfonia Concertante para Violino e Viola, ou quaisquer dos Concertos para Piano de 23 a 27 do mesmo Mozart. Um bêbado, sem dúvida.

71º) Tocata e fuga em ré menor: aqui, tenho a primeira convulsão séria. Obra menor de Bach, o alcoolizado autor da lista deixou de FORA TODOS OS SEIS CONCERTOS DE BRANDENBURGO!!!

57º e 83º) A Morte e a Donzela e Trio Op. 100, de Schubert: são obras excelentes, mas esquecer o Quinteto de Schubert é embriaguez de cair deitado.

49º) Missa em Si Menor, de Bach: aqui, a piada foi a de colocá-la atrás da Sinfonia Fantástica de Berlioz. Não, a piada foi muito maior. Há certo consenso que a Missa seria uma espécie de Cidadão Kane da história da música, ou seja, que seria estaria no topo de todas as listas, mas o chumbeado autor coloca-a lá no meio…

11º) Dichterliebe, de Schumann: HAHAHAHAHA, os lieder de Schubert ficaram de fora — exceção feita aos Winterreise — e o Quarteto e Quinteto de Schumann também, mas essas cançõeszinhas de Schumann, simplesinhas e humildes, quase chegaram ao Top 10 do borracho.

4º) O cachaceiro botou a Sagração da Primavera, de Stravinski, em quarto lugar. Será necessário um alongamento muito severo para que alguém razoável admita que a obra esteja colocada no Top 10. Muuuuuito alongamento.

13º) Mais risadas, um único quarteto de cordas de Beethoven está na lista e não é o 130, nem o 132, nem a Grosse Fugue, Op. 133. Estranhamente o pinguço acertou bem onde não devia: no meio. O Op. 131 é belo com seus sete movimentos e um Andante avassalador, mas convenhamos.

84º) Questão de gosto: a Pastoral não poderia estar nesta lista. Mas o bebum a trouxe.

58º) O que faz Dvorak aqui? Hein, beberrão?

38º) Sinfonia “Inacabada”, de Schubert: essa entrou no carteiraço. E a Nona, conhecida como “A Grande”, biriteiro? Em que ela é menor? É por ter sido “Acabada”?

22º) Quadros de uma Exposição, de Mussorgski, é a vigésima-segunda obra essencial de todos os tempos do ébrio…

48º) Réquiem, de Verdi: é uma surpresa encontrá-lo aqui, mas já que o gambá o conhecia, por que deixou-o apenas em 48º? Merecia o Top 20!

95º) 4`33, de Cage: bem, se A Sagração estava em quarto pela importância histórica, esta obra de Cage deveria estar nas imediações, junto de algo de Stockhausen, um dos grandes ausentes da lista, pau d`água.

93º) Intermezzo, Op. 118, de Brahms: a imensa música de câmara — sonatas para violoncelo e clarinete, trios, septetos — de Brahms está inteiramente ausente da lista… Por quê, meu Deus, o esponja escolheu isto?

76º) Carmina Burana, de Orff: sem comentários. Viu, chupa-rolha?

É absolutamente necessário rir de uma publicação dessas, senão vêm as dores de cabeça, úlceras, etc. E citei apenas os primeiros absurdos que me ocorreram, nem explorei os despautérios cometidos ao barroco. Não me perguntem onde vai parar um jornalismo cultural que orienta assim os jovens e inexperientes. O cara que fez esta lista estava desnorteado, aturdido. Menos mal que o blog P.Q.P. Bach recebe 60.000 visitas por mês. E está à distância de um clique. E não custa nada.