O Clube Pickwick, de Dickens, hoje está em Brasília

O Clube Pickwick, de Dickens, hoje está em Brasília

Uma das maiores tragédias da minha vida é já ter lido os Pickwick Papers — não posso voltar atrás e ler pela primeira vez.

Fernando Pessoa

Dickens é uma das felicidades da vida, uma das razões para se ter medo da morte.

Charlles Campos

Dias atrás, após mais uma leitura de notícias absurdas de Brasília, com participação especial atuação de ministros como Ernesto Araújo, Abraham Weintraub, Damares Alves, presidente e filhos, etc., lembrei de um livro cômico muito fora de moda que li na juventude, As Aventuras do Sr. Pickwick, de Charles Dickens (1812-1870).

The Posthumous Papers of the Pickwick Club (mais conhecido em países de língua inglesa como The Pickwick Papers) foi escrito por Dickens entre 1836 e 1837. Na verdade, foi publicado em 20 partes mensais entre abril de 1836 a novembro de 1837, sob o pseudônimo de Boz. Ele apresenta nomes diversos tanto no Brasil quanto em Portugal, com variações como As Aventuras do Sr. Pickwick, Os Cadernos de Pickwick, Documentos de Pickwick, Os Papéis de Pickwick e Documentos do Clube Pickwick.

O romance narra as aventuras de um grupo de estudos científicos, o Clube Pickwick, composto pelo líder Mr. Pickwick (uma espécie de Quixote) e seus três pupilos: Mr. Tupman (o celibatário sempre apaixonado), Mr. Snodgrass (o poeta) e Mr. Winkle (o esportista). Financiados pelo clube, eles viajam pela Inglaterra — com particular ênfase no interior do país — fazendo descobertas e observando o desenvolvimento da ciência, assim como analisam as diversas variações no comportamento humano.

Mas todos são muito burros e suas conclusões são inacreditavelmente cômicas. Eu morria de rir lendo o livro. Não posso dizer que faça o mesmo lendo o que dizem Ernesto Araújo e Weintraub, mas a idiotia está tão presente que, se morasse longe do Brasil, riria deles.

O livro foi fundamental na carreira de Dickens. Ele obteve enorme êxito literário e reconhecimento popular durante a publicação do livro. Há um personagem sensacional, o criado do Sr. Pickwick, Samuel Weller. Sua entrada no romance teve efeito devastador, foi um êxito instantâneo. Sua inserção no quinto capítulo da narrativa fez com que as vendas mensais explodissem. Imaginem que foram vendidos 400 do número 4 e, após o surgimento de Weller, as vendas cresceram de tal modo que chegaram a ser impressos 400.000 exemplares dos últimos números.

Thomas Carlyle, numa carta ao primeiro biógrafo de Dickens, conta o desconsolo de certo padre que, depois de prestar conforto espiritual a um enfermo, suspirou: “Bom, o que interessa é que daqui a dez dias sai mais um número dos Pickwick Papers, graças a Deus.”

Outro dos personagens do livro, o gordo Joe, foi utilizado posteriormente para caracterizar uma patologia alcunhada como síndrome de Pickwick (ou A Síndrome da Hipoventilação Alveolar da Obesidade), posto que Joe descreve fielmente um quadro da doença: obesidade e sonolência excessiva, acompanhadas de demais sintomas.

O livro tem muita crítica social. Quem está lá? Notem o que há em comum com o Brasil de hoje:

— A religião e os falsos pregadores, ou pregadores corrompidos.

— Os advogados e o atravancamento na execução da justiça, a distorção de leis e possíveis processos de corrupção.

— A magistratura corrente à época, que concede poder a cidadãos apenas voltados aos próprios interesses da classe.

— Os políticos e sua conduta desonesta, bem como o eleitorado irresponsável.

— O jornalismo sem compromisso com a verdade, o respeito e a imparcialidade.

— A sociedade burguesa, com sua hipocrisia e conduta interesseira.

— A corrupção do sistema carcerário de devedores e a falta de assistência ao cidadão mantido em regime fechado (muitos presos pobres morriam de fome e frio nas prisões, enquanto sistema jurídico permitia brechas que auxiliavam apenas os devedores ricos).

— O sistema de justiça, que desfavorecia o devedor trabalhador.

— O novo estado das relações entre patrão x empregado, motivado pelo advento da burguesia e da revolução industrial.

A tudo isso junta-se um turbilhão de boas piadas, ridicularizando a sociedade e entendendo como “naturais” as diferenças sociais. Weller (ou Veller) é inteligentíssimo — tem soluções fáceis para quase tudo — e portanto sabe da burrice do Clube Pickwick, mas como é o criado… Além disso, há uma pesada crítica ao espírito cientificista da época. Os personagens principais, embora abertos aos procedimentos racionais da ciência, demonstravam grande inabilidade para situações que exigiam praticidade e que protagonizam a maior parte dos episódios cômicos do livro.

Ainda me lembro da surpresa de que Dickens poderia me fazer rir alto, e foi isso que me fez amá-lo.

Pickwick é desigual e heterogêneo, mas genial. Como diz Chesterton, “Em Pickwick, Dickens não escreveu exatamente literatura, escreveu mitologia”.

Texto parcialmente copiado (adaptado) de fontes diversas.

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Dickens, rest (and laugh) in peace

A obra de Charles Dickens está agonizando. Não a vejo mais por aí e não posso afirmar que esteja estar preocupado com o fato. Mas acho que dois de seus livros são muito bons: o livro de estreia Pickwick Papers e um dos últimos de sua enorme obra, Grandes Esperanças. Mas ele é mais conhecido pelo xaroposo Oliver Twist e pelo bom David Copperfield.

Seus livros demonstram a longa decadência de uma verve cômica para dar lugar à pieguice. Se os Pickwick Papers podiam rivalizar com Swift e Fielding, Dickens foi pouco a pouco aderindo às lágrimas até ficar um tio chato que chora por cada tristeza social e pessoal vitorianas. A exceção é o esplêndido e simbólico Great Expectations.

Hoje me acordei com um nome na cabeça: Samuel Weller. Li os Pickwick na casa da praia de meus pais, lá em 1972-3, tinha 15 ou 16 anos. A lembrança que tenho desta personagem é a melhor possível. Ignoro se era mesmo tão engraçado. Dando uma pesquisada rápida na Wikipedia, dou de cara com esta frase: A recepção do público a Pickwick não foi calorosa desde o início. Só quando aparece a personagem de Sam Weller, o criado de Pickwick e que acompanha as aventuras do seu amo ao jeito de um Sancho Pança ao lado de Dom Quixote, é que as vendas sobem de 400 exemplares para 40 000!

Lembro que há uma cena de caçada no livro na qual, durante a leitura, eu dava gragalhadas que me impediam de ler o livro. Tenho a impressão de que isto nunca voltou a acontecer, mesmo que eu tenha a maior admiração pelo escritos cômicos de muita gente, desde Sterne, Swift e Fielding até John Kennedy Toole, LF Verissimo e Cláudia Tajes.

Menos mal que tenho (ou tive) outros companheiros de leitura que também admiram o incrível mordomo do chefe do Clube Pickwick. Quando colocamos Sam Weller no Google Images, damos de cara com um monte de canecos de cerveja, bibelôs e pratos representando o personagem. Não sei que valor terá em antiquários.

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