A mulher de dois esqueletos, de Julia Dantas

A mulher de dois esqueletos, de Julia Dantas

Este é um exemplar do chamado romance híbrido, isto é, aquele que mistura gêneros. Cada capítulo nos surpreende e não somente por seus saltos temporais. Começa com um (bom) conto escrito pela personagem principal, segue com a vida  da mesma durante a pandemia, há um capítulo-catálogo todo de medos e desejos relacionados à gravidez, etc. Na verdade, o romance parece um livro de contos com a mesma personagem em quase todos eles.

Não pretendo estragar a leitura de ninguém, mas digo que o capítulo-conto de abertura é bastante pânico, seguido por outro que traz uma discussão puxada pelo namorado da escritora a respeito do conto do primeiro capítulo. E aqui o livro segue já de outra forma. O chamado “namorado” não é abusivo, mas digamos que tende a ser. Ele não apenas complica a vida como pode, como vai invadindo o espaço físico da autora dentro do pequeno apartamento que dividem durante a pandemia. Ele é hábil nisso. Julia também é muito hábil e sutil ao descrever o relacionamento. Parece que ela também cede a ele. Se a personagem evita o conflito, Julia evita a crítica direta. Paradoxalmente, a contenção é um catalisador feminista fortíssimo para quem lê. (Posso dizer que estava lendo este capítulo durante a madrugada e que ele me acordou totalmente. Putz, achei o tal namorado um baita chato).

Há um capítulo que lembra o Ítaca, do Ulysses de Joyce, mas sem as perguntas. É um interessante catálogo ou catecismo de medos e desejos da personagem-escritora a respeito de engravidar. Ela está com quase 40 anos e, se não tiver filhos agora, a biologia logo decidirá por ela. Muitos dos medos são irreais e lá vamos nós para mais uma intervenção do resenhista gonzo. (Afinal, um obstetra que leu o livro inteiro numa tarde — prova de sua alta qualidade — voltou aqui na Bamboletras e deu risadas sobre algumas das suposições da personagem. Elas seriam totalmente fantasiosas. Conheço um pouco o problema: minha ex teve dois filhos de mim e, se eu tinha mil receios do que poderia acontecer, imagine uma portadora imaginativa).

Para aumentar a dúvida, nos capítulos seguintes Julia passa a tratar seu parceiro não mais como “namorado” e sim como “companheiro”. Ora, parece que o cara é outro e este é bem legal, mais digno de ser pai, creio eu. (Sim, quem lhes escreve é um homem cuja barriga só cresce por ser glutão, mas achei o sujeito digno de uma paternidade, fazer o quê?).

Importante ressaltar que há muito humor no texto de Julia. Não vou contar o final, vou deixar para vocês saberem como Vitor Ramil, Caio Fernando Abreu e suas runas entram na história, mas afirmo que Julia Dantas leva brilhantemente sua história até a última página com um texto inteligente, interessante, leve… E dubitativo.

Recomendo!

Se eu fosse o “namorado”, jamais desalojaria Julia de sua cadeira de balanço. Tenho uma igual. Foto: Renan Mattos / Agencia RBS

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Coisas soltas que fazem parte do fracasso das esquerdas

Coisas soltas que fazem parte do fracasso das esquerdas
  1. Não adianta ofender quem vota no Abobado da Enchente. Aliás, chamá-lo de Abobado da Enchente é errado. Chamar de chinelo, então, nem se fala, é erradíssimo. Chinelo é ser / estar sem grana, é estar sempre mal arrumado, chinelo sou eu. Tornaram Melo o Rei dos Chinelos, coisa que ele recebeu de braços abertos como o Rei da Maioria.
  2. Enquanto a gente condenar o voto das pessoas por serem absolutamente burros, totalmente desinformados ou causado por mau caráter, não vamos entender o que efetivamente define o voto e não saberemos como disputá-lo, restando apenas esse prêmio de superioridade autoconferida. Parabéns a quem quer agregar ofendendo!
  3. Os argumentos para mudar o voto têm de ser outros. Podem ser as múltiplas suspeitas de corrupção de sua gestão que nunca vão adiante. (Chega a ser cômico como tudo dá em nada quando a direita é acusada. Já quando a esquerda é acusada, dá).
  4. Em nível mais geral, temos que exorcizar a esquerda, temos que dar um jeito de desdemonizá-la.. Afinal, Lula governa e o mercado acha normal. Cadê o demônio? Até o Moody`s — que é uma empresa norte-americana de serviços financeiros que também classifica os países segundo o risco para investir neles — virou comuna porque aprova o Haddad.
  5. E, mein Gott, como fazer os evangélicos recuarem da política quando tantos políticos da própria esquerda pedem bênçãos e votos a eles? Todos os políticos ignoram a laicidade, este é mais um caso para exorcismo.
  6. Convivemos com anos e anos de incultura, de educação de péssima qualidade, e isso segue sendo cultivado. Então é um longo caminho que nem começou. Que, aliás, estamos cada vez mais longe de começar.

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A criação do monograma (selo) de Johann Sebastian Bach

A criação do monograma (selo) de Johann Sebastian Bach

J. S. Bach desenhou este monograma para si mesmo, na esperança de ser nomeado Compositor da Corte do Eleitor da Saxônia (daí a coroa). O selo de Bach é composto por suas iniciais JSB sobrepostas à imagem espelhada e encimadas pela citada coroa. Foi uma tentativa de alcançar mais um cargo. Não conseguiu. Mas ficou lindo, né?

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Os vereadores eleitos em Porto Alegre e aquele

Dentre os vereadores eleitos em Porto Alegre há os excelentes, os aceitáveis, os fascistas e os especiais. Vejam o “nome” do último vereador da lista do PL. Porto Alegre é demais!

Vereadores eleitos

PSOL
Karen Santos – 20.207
Grazi Oliveira – 14.321
Pedro Ruas – 12.070
Roberto Robaina – 10.033
Atena Roveda – 4.260

PT
Jonas Reis – 8.235
Alexandre Bublitz – 7.144
Juliana Souza – 6.261
Aldacir Oliboni – 4.856
Natasha – 4.718

PL
Jessé Sangalli – 22.966
Comandante Nádia – 18.010
Fernanda Barth – 7.063
Coronel Ustra – 2.669

Republicanos
Gilvani o Gringo – 7.759
José Freitas – 6.746
Carlos Carotenuto – 4.644

MDB
Psicologa Tanise Sabino – 6.270
Rafael Fleck – 5.908
Professor Vitorino – 5.315

PP
Mariana Lescano – 6.389
Vera Armando – 5.693
Mauro Pinheiro – 5.661

PSDB
Moisés Barboza Maluco do Bem – 8.603
Marcelo Bernardi -7.759
Gilson Padeiro – 7.070

PCdoB
Erick Denil – 5.376
Giovani Culau e coletivo – 4.902

Novo
Ramiro Rosário – 16.450
Thiago Albrecht – 7.615

Podemos
Giovane Byl – 12.115
Hamilton Sossmeier – 4.053

Cidadania
Marcos Felipe – 6.618

PSD
Claudia Araujo – 6.321

PDT
Márcio Bins Ely – 6.296

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Pablo Marçal, o Faker

Pablo Marçal, o Faker

Pablo Marçal publicou um laudo falso — com nome de clínica com erro, assinado por um médico já morto na data do laudo — que dizia que Boulos fora internado por overdose de cocaína.

Fez isso 48h antes do pleito. Claro, o tal laudo vai colar pra muita gente. Sabe-se que a acusação sempre repercute mais do que o desmentido. Tem gente que diz que onde há fumaça há fogo… Nem sempre as metáforas funcionam.

O que não entendo é o fato da candidatura de Marçal ainda não ter sido cassada. Também não entendo o fato de outras prisões (sim, aquelas) não terem ocorrido ainda. Cadê a tal da Justiça? Ou a partir de agora vale tudo?

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As Willis: Sexo, Morte e Escaravelhos, de Carlos Gerbase

As Willis: Sexo, Morte e Escaravelhos, de Carlos Gerbase

Não há nenhum problema em um livro ser divertido, né?, desde que seja bem escrito e com bons artifícios para a gente ficar preso à leitura. Um escritor não precisa tentar sempre escrever a bíblia. Por exemplo, várias histórias da incensada Mariana Enriquez — e eu sou dos que a adoram — são apenas isso: divertidos. Eu gostei demais deste As Willis, de Carlos Gerbase. Largava e pegava o livro novamente, para ler mais um capítulo. É preciso que haja livros assim, capazes de desviar nossa atenção da loucura diária e, se eles forem intrigantes e inteligentes, melhor. Ainda melhor se tiverem uma pitada de humor negro. E se incluir sexo, magnífico! Aqui tem tudo isso.

Originalmente, as Willis são espíritos de virgens que morreram antes de casarem e que aparecem no balé Giselle ou Les Willis, de Adolphe Adam. Giselle é um dos mais famosos balés românticos e costuma ser dançado na ponta dos pés, como manda a tradição. No argumento original, as Willis saem de suas tumbas à noite para atrair homens com a dança e levá-los à morte. O balé tem música bastante chata, mas, se esquecermos desta e dos bailarinos nas pontas dos pés, vai sobrar uma história perfeitamente gótica.

O gótico literário foi uma vertente do romantismo voltada para o obscuro. Fala de morte, insanidade, sonhos e demônios, coisas assim do tipo Frankenstein (1818), de Mary Shelley. A origem das Willis parece estar em Heine (1797-1856) que escreveu sobre uma lenda alemã em que os espíritos das noivas que morreram antes do casamento atraem seus noivos para a floresta, a fim de fazê-los dançarem até a morte. Acho que o nome deveria ser dito vilís (francês) ou vilis (alemão?) e não como o nome do ex-deputado Jean Wyllys, que não foi ameaçado exatamente por virgens.

As Willis tem quase tudo do gótico — claro, os cemitérios também se fazem presentes, no caso, o da Santa Casa em Porto Alegre. Não se preocupem, ninguém dança até morrer, não foi um spoiler, mas, obviamente, o autor baseou-se na história original e faz referências à tradição, apesar de desobedecê-la. Há uma Giselle na trama, há um Alberto apaixonado por ela — no original ele é Albrecht –, e há a Rainha das Willis, que se chama Myrtha em ambas as histórias. Tem também uma bailarina que se chama Margot (Fonteyn?).

Faço este “intermezzo culto” não para me mostrar nem para dizer que Gerbase copiou uma história existente. A história original é ínfima e há muito de invenção nas Willis de Gerbase, que também são virgens que morreram antes do casamento e que podem, sim, matar. E matam facilmente por serem belas e por se alimentarem de suas conquistas através de mecanismos não antropofágicos que não irei explicar por motivos óbvios. Estaria contando parte fundamental da história.

As Willis é um tremendo livro de entretenimento, passado todo em Porto Alegre. Eu me diverti bastante com a boa trama criada sobre a base que expliquei acima, A coisa funciona maravilhosamente. O livro não é sanguinolento, o bom humor perpassa toda a história. Há uma interessante dupla de policiais, uma dupla de irmãs Willis sensacionais e um pastor evangélico que é exatamente aquilo que se espera dele. E, já disse, a coisa funciona.

O livro é uma espécie de tese acadêmica muito livre, escrita por Irina, uma willi. Sabe-se que Gerbase é ou foi professor na PUCRS e que deve ter sofrido horrores com alunos e com o formato insípido das teses (opinião minha). Além de professor, Gerbase dirigiu e fez o roteiro de vários filmes e isto está claro no livro. Como numa boa série, ele consegue envolver o leitor, deixando para o final o desenlace de várias tramas. Eu engoli o livro rapidinho. E curti.

Recomendo!

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Compre o livro na Livraria Bamboletras, na Av. Venâncio Aires, 113. Ah, não mora em Porto Alegre? Use o WhatsApp 51 99255 6885. A gente manda!

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Bárbara, 30 anos

Bárbara, 30 anos

Num domingo, 25 de setembro, há 30 anos, vi a Bárbara Jardim Ribeiro pela primeira vez. Era no fim da tarde e fomos ao Parque da Redenção com nosso filho Bernardo, de 3 anos. Lá, a bolsa estourou e acabamos no hospital. Poucos minutos depois, ouvi a indignação dela por ter sido retirada do quentinho. Ela berrava de forma verdadeiramente espetacular. Toda satisfeita, a pediatra me trouxe a bebê. Lembro de ter dito Que fera, enquanto observava aquele serzinho de cabelos lisos e pretos e cara de índia. Depois ela ficou loira e crespa, depois castanha clara e crespa, cor de chá, prova de que 30 anos é muito tempo. Hoje, acho que sempre se desprende um ar feliz da Bárbara e as pessoas adoram me dizer, rindo, que conhecem ela. Como se fosse um privilégio. E é. Eu acho ela maravilhosa. É minha filha.



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Atrás do balcão da Bamboletras (LIV)

Devíamos estar ali pelo início de junho. Houvera a enchente de maio e todo mundo estava deprimido, pois ela atingira, direta ou indiretamente a todos. A livraria, claro, estava com poucos clientes e a gente bem desesperado. Aliás, deixa pra lá… Mas a situação de muitos cães era ainda pior. Centenas ou milhares fugiram e estavam perdidos nas ruas.

Numa tarde nublada, por volta das 15h, saí da livraria para olhar o céu e dei de cara com um simpático cão, meio grande e preto. Não era um viralatão bonito, mas havia muita vida e esperteza naquele corpo. Acho que ele teve a sensibilidade de ver que eu fiquei com pena dele. E entrei de volta para a livraria.

Quando fomos fechar, às 19h, o Bruno me chamou. Queria perguntar o que deveria fazer com aquele cachorro na nossa porta. Ele estava em pé, bem sedutor, abanando o rabo pra nós. Bruno perguntou se eu queria ficar com ele. Respondi que temos o exclusivista Vassily Kandinsky, o gato da Elena, que entraria em crise com a companhia. (Ele não suporta outros gatos e eu sou mal e mal aceito).

— OK, então ele é meu.

E o Bruno chamou o cachorro, que o acompanhou até seu apartamento, sem coleira, a umas 6 quadras da livraria. Depois me mandou fotos do cachorro comendo e bebendo água. Ficou muito feliz e passou a chamá-lo pelo nome ultrachique de Besançon.

Viraram uma dupla. Digno de seu nome, Besançon mostrou-se muito educado. Jamais fez xixi em casa, por exemplo. Só que, na ausência do Bruno, pulava a janela do apartamento de primeiro andar e fazia passeios pela marquise. Óbvio que achava que aquilo era uma parte divertida do apê. Afinal, dava para ver as pessoas lá embaixo indo e vindo.

Um dia, o Bruno estava voltando do almoço quando viu um monte de gente na frente de seu prédio. Iam chamar os bombeiros porque um louco tinha deixado um cachorro na marquise. Impossível que o cão sozinho tivesse chegado ali. E o Bruno viu o Besançon todo feliz com o show. Latia e balançava o rabo, totalmente realizado com o sucesso alcançado.

Então o Bruno gritou:

— Já pra casa, Besançon!

O cachorro levou um susto e pulou pelo vãozinho da janela que ele mesmo tinha conseguido abrir com o focinho. Alívio geral.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Que romance é tão essencial que até os mortos querem saber do que se trata? Descobri que no início do livro de Jean Giraudoux, Bella (1926, jamais traduzido para o português), o narrador, ao participar de um serviço funeral para os colegas de escola que caíram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, passa a ouvir as vozes de seus amigos mortos. A maior parte deles falam sobre coisas mundanas e militares: os desconfortos da guerra, os insuportáveis oficiais comandantes. Mas a última voz é a de um jovem atormentado pelo pensamento de que nunca teve a chance de ler certo romance. O que o jovem morto quer é que o narrador resuma A Cartuxa de Parma. Sim, este é um livro que você deve ler antes de morrer, para usar um lugar comum.

A Cartuxa de Parma, de Stendhal, é um belíssimo épico político, além de uma história muito íntima de intrigas amorosas e sérias frustrações eróticas, ambientado na corte principesca de Parma, durante a época do próprio autor. Desde o momento em que apareceu, em 1839, o último romance completo de Stendhal foi considerado uma obra-prima. Apenas um ano após sua publicação, Balzac o elogiou em uma longa resenha que imediatamente estabeleceu a reputação do romance. ”Vejo perfeição em tudo” foi apenas um dos louros que Balzac deu à Cartuxa, no que foi certamente um dos maiores atos de generosidade literária que se conhece. Sessenta anos depois de Balzac, André Gide classificou o livro como o maior de todos os romances franceses e uma das duas únicas obras em língua francesa que poderiam ser contadas entre as 10 melhores da literatura mundial. (O outro seria As Ligações Perigosas). E há mais: em um artigo de 1874, Henry James colocou Cartuxa “entre os dez melhores romances de todos os tempos”. Eu, pequeno e humilde, faço o mesmo.

À primeira vista, o esqueleto da história de Stendhal sugere um simples romance histórico. A história começa com a tentativa do jovem e obstinado aristocrata italiano Fabrício del Dongo de ter uma vida coerente consigo mesmo como soldado no exército de Napoleão. Ele não sabe nada de guerra ou de armas e a cena cômica de que ele participa em Waterloo sem saber bem onde está, o que deve fazer e sentindo nojo de tudo aquilo, ensinou o Tolstói de Guerra e Paz. O russo confessou que sabia este capítulo de cor e salteado. Mas sigamos o Cartuxa sem dar muitos spoilers. Depois, de forma absolutamente cínica, Fabrício tenta estabelecer-se como prelado na Igreja Católica Romana sem desgrudar de suas muitas amantes. Há as tentativas de sua bela tia Gina, duquesa de Sanseverina, e de seu amante, o astuto (e casado) primeiro-ministro conde Mosca, para ajudar a estabelecer Fabrício na corte. Há a prisão de Fabrício na temida Torre Farnese. Há também seu caso de amor infeliz com a linda — e um tanto chata — filha de seu carcereiro, Clélia.

Então o que, exatamente, torna o Cartuxa tão indispensável para o soldado de Giraudoux? Ora, parece-me que Cartuxa exala um ar incomparável do qual todo ser humano precisa absolutamente ter respirado pelo menos uma vez. Não que este ar seja puro… Em nossos dias, estamos quase tão longe do romance de Giraudoux quanto os personagens de Giraudoux estavam da publicação de Stendhal. Por que o romance continua tão novo?

Em 4 de novembro de 1838, Stendhal (o mais famoso dos mais de 200 pseudônimos usados ​​por Henri-Marie Beyle, um diplomata de carreira nascido em Grenoble e amante de todas as coisas italianas, principalmente das mulheres) sentou-se em sua mesa no número 8 da Rue Caumartin em Paris, deu ordens para que não fosse incomodado mesmo que a cidade estivesse pegando fogo e começou a ditar um romance. O manuscrito foi concluído em apenas sete semanas, no dia seguinte ao Natal — um feito impressionante, quando você pensa que uma edição típica tem 500 páginas. A rapidez de sua composição se reflete na vivacidade narrativa pela qual o livro é tão bem conhecido. (Há momentos onde a velocidade claramente cobrou seu preço. Duas ou três vezes, Stendhal volta para explicar fatos que deixou para trás, mas até isso faz com grande charme).

A ideia do livro estava martelando a cabeça de Stendhal há algum tempo. Seus diários do final da década de 1820 estão cheios de anotações sobre as histórias complicadas da nobreza italiana. Os esboços do romance devem muito a uma crônica do século XVII sobre a vida de Alessandro Farnese, mais tarde Papa Paulo III, que Stendhal conhecia. (Farnese, que se tornou Papa em 1534, tinha uma linda tia, Vandozza Farnese que era amante do astuto Rodrigo Borgia. Ele assassinou o criado de uma jovem. Foi preso e escapou. Finalmente, manteve como amante uma mulher chamada Cléria.) Então, embora a extraordinária velocidade da composição do romance possa ser atribuída a um lampejo quase sobrenatural de inspiração, ela também pode ser vista como resultado de um longo processo.

Assim como as circunstâncias de sua criação, o romance parece espontâneo. O ritmo rápido da narrativa é compensado por uma avaliação fria e sarcástica da natureza humana e, em particular, da política. Stendhal era um liberal que, como jovem idealista, seguiu Napoleão para a Itália, Áustria e Rússia. Depois, viu-se como diplomata em uma época de alto cinismo político. O desgosto com a complacência burguesa de seus compatriotas desempenhou um papel importante em sua admiração pelos italianos, que considerava mais autênticos — mais profundos e mais suscetíveis a emoções violentas –, como ele escreveu em seu diário. A paixão italiana está evidente no livro, mas é o ímpeto, a velocidade do romance, que o faz uma leitura tão boa.

O que torna incontornável A Cartuxa de Parma não é seu estilo urgente, até mesmo impaciente (“Aqui pediremos permissão para passar, sem dizer uma única palavra sobre eles, por um intervalo de três anos”). O livro é uma lição de política, da linha tortuosa da política. Mosca e Gina são craques. Gina é também uma hábil manipuladora amorosa, mas parece desejar o impossível. Os personagens são vítimas de emoções incontroláveis. Há também o herói do romance, Fabrício, que, quando adolescente, desobedece seu pai conservador e foge para lutar por Napoleão. O que mais ressoa para os leitores não é o idealismo de Fabrício — que é, afinal, endêmico entre os protagonistas de romances românticos –, é que ele é sistematicamente desmentido pelas duras e ocasionalmente ridículas realidades da vida. (Fabrício, para nossa alegria como leitores, dorme durante boa parte de Waterloo). Mas há mais alguma coisa moderna: a forma com que o bom senso lhe escapa, às vezes disfarçado de inteligência…

Fabrício tenta se moldar a algum plano — um plano que, como o romance demonstra, nunca é capaz de seguir. Isto mais parece século XXI do que XIX. Não é de se admirar que ele se expresse tão frequentemente na interrogativa: “O que vi foi uma batalha? Essa batalha foi Waterloo?”, “Sou tão hipócrita?”. Uma medida irônica da incapacidade de Fabrício de dominar a arte de viver é que ele encontra a verdadeira felicidade apenas na segurança uterina de sua cela de prisão na Torre Farnese (como muitos notaram, ele está preso por exatamente nove meses), da qual ele reluta em escapar depois de se apaixonar por Clélia.

Fabrício não é o único personagem vívido e estranhamente contemporâneo aqui; você poderia facilmente argumentar que os verdadeiros heróis são sua tia e seu amante. Mestres políticos e sociais, eles são muito mais complicados e interessantes do que o jovem que eles passam tanto tempo tentando, em vão, estabelecer numa vida adulta. (Mosca para Gina: “Podemos encontrar para você um marido novo e acomodado. Ele teria que ser extremamente avançado em anos, pois por que você deveria me negar a esperança de eventualmente substituí-lo?”) Gina, em particular, é uma das grandes criações da imaginação romanesca do século XIX: brilhante, sedutora, astuta, vulnerável, apaixonada e, ainda assim, impotente, presa de uma paixão proibida por seu lindo sobrinho. Nós a conhecemos aos 13 anos, tentando conter uma risadinha diante da aparência esfarrapada de um oficial napoleônico que foi alojado no opulento palácio de seu irmão e daquele momento em diante nunca conseguimos tirar os olhos dessa mulher que, apesar de sua posição social e do dilema em que se encontra, nunca é menos do que totalmente humana. Mosca, também, que, na geometria perfeita do amor não correspondido, adora Gina desesperadamente de uma forma que ele sabe que nunca será correspondido, é uma criação intrincada, complexa e conflituosa em sua vida pública e privada. Além disso, é vítima de paixões eróticas que o agarram, na prosa extraordinária de Stendhal, “como uma cãibra”.

Não podemos esquecer que o ímpeto narrativo é claramente o trabalho de um escritor que, como seu herói, se rebelou em sua juventude contra sua família estupidamente convencional, um homem que queria ser conhecido como um artista e amante de mulheres. (O epitáfio de Stendhal, em italiano, que ele concebeu quando ainda tinha 30 anos, diz: “Ele viveu. Ele escreveu. Ele amou.”) Mas A Cartuxa também é o trabalho de um diplomata experiente, muito familiarizado com a política e os compromissos que a vida impõe. A voz mais velha do autor aparece no destino que ele escolhe para seus personagens.

Então, o romance é parte Fabrício e parte Mosca e Gina. Ou, para colocar de outra forma, ele contém as melhores qualidades de seus rivais franceses contemporâneos: ele tem as conspirações de Balzac, com assassinatos, documentos forjados, disfarces e a hipocrisia motivada pela política, e também o estilo glacial de Flaubert. Em outras palavras, tem algo para todos.

A Cartuxa transmite claramente o que Henry  James chamou de ”inquietação” da ”mente superior” de Stendhal por meio de uma série de escolhas sutis, mas bastante concretas. Há romantismo, mas há o estilo muito francês que Proust chamou de “voltairiano”, o estilo de ironia do século XVIII.

Antes de explicar o que significa, afinal, cartuxa, posso tentar dizer o que há no mundo de A Cartuxa de Parma? Há acertos públicos e erros privados, erros públicos e acertos privados, banquetes com inimigos, velocidade, história épica com detalhes jornalísticos, amores desastrosamente insatisfeitos, idealismo, cinismo, negligência da juventude satisfeita, tristes sabedorias da velhice, minutos dos quais a gente lembra em detalhes e três anos que não interessam, grandeza, desordens, magnificência.

Não é de se admirar que o jovem soldado de Giraudoux tenha sentido que precisava conhecer A Cartuxa de Parma. O que mais os mortos desejariam que não fosse a vida?

P.S. — Stendhal gostava de títulos estranhos. Ele jamais explicou o motivo pelo qual outra obra-prima sua se chamava O Vermelho e o Negro. Já a tal A Cartuxa de Parma é citada de passagem apenas no antepenúltimo parágrafo do livro… O que é? É um convento da ordem religiosa dos cartuxos. Esta ordem religiosa de grande austeridade foi fundada por São Bruno em 1066.


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Atrás do balcão da Bamboletras (LIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LIII)

Entra um cliente esbaforido e pergunta pelo livro X. Diz que precisa dar de presente hoje para sua mulher, que faz aniversário. Eu lhe respondo que vendi o último à tarde, depois olho para trás e vejo que há um exemplar na reserva. Eu prometi para o cliente que reservou entregar-lhe o livro entre 10 e 12h amanhã. Mandei até uma foto do livro, idiota que sou. Chega aquele momento de reflexão que começa por PQP.

— PQP, o cara está aqui, quer o livro. E o livro está ali.

Já notei que todo livreiro gosta de correr riscos. Nem é pela grana, é pela função mesmo, pelo prazer da logística alucinada de correr atrás. Penso que posso ir cedinho na distribuidora, pegar o livro — se houver… — e abrir a Livraria um pouco depois do horário.

Retiro lentamente o livro da prateleira das reservas e digo para o cliente que olha, este está reservado e coisa e tal. O cara é um bom sujeito e diz que não quer me prejudicar junto a outro cliente. Eu reflito novamente, desta vez começando por f°da-se.

— F°da-se, dou um jeito.

E vendo o livro.

Enquanto passamos o cartão, ele me pergunta sobre quem escreve aquelas resenhas no perfil da Livraria Bamboletras. Eu digo que sou eu. E ele diz:

— Muito, mas muito melhor que os textos das editoras. A gente fica se coçando pra ler os livros.

Eu agradeço e digo que se não escrever algo, é como se não tivesse finalizado a leitura.

Então, amanhã pela manhã, às 8h30, estarei correndo para fazer a substituição. Se vocês verem um louco correndo pelo centro de Porto Alegre, há boas chances de ser eu.

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Deu tudo certo, mas com emoção. Fui na distribuidora e não tinha o livro. Pedi em outra e tinha, mas o motoboy que foi buscar teve im contratempo — o cabo do acelerador da geringonça se rompeu. Mas entregamos o livro sem problemas ao meio-dia. O livro era fácil de achar: era o excelente Bambino a Roma, de Chico Buarque.

 

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Notas de Concerto: a Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach

Notas de Concerto: a Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach

Vamos começar falando de um compêndio que influenciou gerações de melômanos no Brasil. O tal livro é Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux. Muita gente da minha geração e das anteriores (talvez também das posteriores) leram este livro. Na parte que fala de Bach, Carpeaux o colocava como o maior compositor de todos os tempos (OK), mas dizia ousadamente que a Missa em si menor era a maior obra de todos os tempos. Carpeaux gostava de afirmativas bombásticas e de comparar alhos com bugalhos, mas era um cara tão respeitado — era colunista o autor de uma História da Literatura Ocidental em oito volumes, reconhecera Grande Sertão: Veredas com um clássico absoluto 15 dias após seu lançamento e já tinha feito o algo parecido com outros autores — que todo mundo até se vestia melhor em casa para ouvir a tal maior obra de todos os tempos. E, mesmo que ele tenha se enganado na medição das obras — eu sei lá! –, está muito próximo de ter falado a verdade. Na verdade, a Missa em Si Menor, foi primeiramente aclamada como a “maior composição musical de todos os tempos e todas as culturas” por seu primeiro editor, Hans-Georg Nägeli, de Zurique em 1818. E é isso que vocês vão ouvir hoje.

Talvez algum desavisado espere um padre hoje na Ospa, então acho que mais do que natural explicar o que é uma Missa em música. Pode-se dizer que a Missa é uma obra musical religiosa cantada por solistas e/ou coral que, diferentemente da maioria dos Oratórios, Paixões — como o Messias de Handel — e Cantatas, não possui recitativos. O que é o recitativo? Trata-se de gênero de canto declamado, surgido no final do século XVI, que passou a integrar óperas, cantatas e oratórios. Servem de conexão entre as árias cantadas. OK, e o que é uma ária? Ária é qualquer composição musical escrita para um cantor solista, tendo quase o mesmo significado de canção. Podem ser duetos, tercetos, etc. tb. E o que é um coral? É uma composição escrita para coro ou coro e orquestra. Geralmente (mas não necessariamente) usa-se o termo “ária” quando está contida dentro de uma obra maior, como uma ópera, cantata ou oratório e “canção” quando é uma peça avulsa. Existe canção em música erudita? Certamente. Purcell, Richard Strauss e principalmente Schubert praticaram o gênero com resultados magníficos. A Missa em si menor é formada de magníficas árias e corais.

Mas a Missa possui outra característica: ela, teoricamente, tem uma estrutura e texto padrão em latim. A estrutura básica compõe-se do Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. E quem compôs Missas? Quase todos os grandes compositores: Palestrina, Bach, Haydn, Rossini, Beethoven, Schubert, Bruckner, Janáček, etc.

I. Missa (Kyrie & Gloria)

Intervalo

II. Symbolum Nicenum (Credo)
III. Sanctus
IV. Osanna, Benedictus, Agnus Dei et Dona nobis pacem

Outra espécie de Missa é o Réquiem. Todos nós conhecemos os famosos Réquiens de Mozart, o de Verdi, o Réquiem Alemão, de Brahms e o War Requiem, de Britten, etc. Além disso, há obras sobre partes da missa ou outros textos litúrgicos, como o Gloria (Vivaldi e Poulenc), o Magnificat (Bach), o Te Deum (Purcell, Haydn, Mozart, Bruckner), o Stabat Mater (Vivaldi, Pergolesi), o Exsultate, jubilate (Mozart), entre outros.

Agora, vamos a Bach. É verdadeiramente notável o porte e o grau de influência de Bach, assim como sua colocação como pedra fundamental de toda a nossa cultura musical. O mundo criado por Bach foi desenvolvido numa época em que não havia plena noção de obra; ou seja, Bach não se colecionava para servir à posteridade como os autores passaram a fazer logo depois. Ele escrevia para si, para seus alunos e contemporâneos. Sabe-se pouco a seu respeito como pessoa. Sabe-se que estava sempre procurando cargos mais bem reminerados, que era brigão, que bebia (e produzia) muita cerveja, que teve muitos filhos. Muitos mesmo.

Teve 7 com a primeira esposa Maria Barbara que viveu e trabalhou com ele de 1707 e 1720 (13 anos). Três caíram na alta mortalidade infantil da época. E teve 13 com Anna Magdalena, com quem ficou casado entre 1721 e 1750 (29 anos), dos quais sete faleceram prematuramente. Quatro dos filhos tornaram-se compositores (Wilhelm Friedemann, Carl Philipp Emanuel, Johann Christian e Johann Christoph Friedrich), um filho tinha problemas mentais e havia quatro meninas que chegaram à idade adulta.

Com tantos filhos, era natural que Bach procurasse sempre melhores empregos. À época, fazer isso poderia ser um grande problema. Os empregadores consideravam traidores quem fazia isso. Por exemplo, quando Bach recebeu uma oferta do Príncipe Leopold, de Köthen, Bach pediu permissão para deixar Weimar, onde trabalhava. Mas o Duque de Weimar não quis perder os serviços de seu brilhante músico e recusou o pedido. Como Bach insistisse, o Duque não teve dúvidas em colocá-lo na prisão, isso sem nenhum processo. Bach passou trinta dias preso. Porém, ao sair da prisão, em dezembro de 1717, partiu imediatamente para Köthen com sua família já de quatro filhos, sendo nomeado mestre de capela da corte do Príncipe Leopold.

Mesmo com os filhos e os alunos, a perfeição e o número de obras que Bach criava e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu, era inacreditável. Tentaremos dar dois exemplos:

(1) Suas obras completas, presentes na coleção Bach 2000, estão gravadas em 153 CDs. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou 6 dias e nove horas ininterruptas de música… original,

(2) como se não bastasse, ele parecia divertir-se criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma ária de Cantata ou Paixão, corresponde ao capítulo da Bíblia onde está o texto daquilo que está sendo cantado. Em seus temas também aparecem palavras — pois a notação alemã (não apenas a alemã) é feita com letras. Ou seja, pode-se dizer que ele sobrava…

E imaginem que durante boa parte de sua vida Bach escrevia uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música, copiar as partes e ainda ensaiar para apresentar domingo, todo domingo.

Mas se ele era tão ocupado, por que escreveu uma Missa de grandes proporções? Há duas teses:

  1. Bach escreveu-a em 1733 (revisou-a em 1749) com a intenção de que ela fosse uma obra ecumênica. Seria a coroação de sua carreira de compositor sacro. Quando a Bach, roubou de si mesmo ou fez retornar alguns de seus melhores trabalhos de sua longa obra. Imaginem que ele trouxe para a Missa uma ária que compusera em 1714! Naquele momento ele fazia uma revisão de si mesmo e, por isso, a Missa também é um sumário de sua obra sacra. Para completar, o trechos compostos especialmente foram criados por um compositor no auge de sua capacidade. O que apoia esta tese do ecumenismo, da unidade cristã é o fato da Missa ter sido escrita em latim, contrariamente às Cantatas e Paixões, sempre escritas em alemão. Tal fato deixaria a Missa mais próxima dos católicos.
  2. Mas hoje a tese mais aceita é muito outra. Na verdade, pleiteava um emprego junto ao Rei “católico” em Dresden, Augusto III) em 1733. Isso explica a linguagem católica. Ele cobiçava um cargo em Dresden, loucamente. Era a melhor corte musical da Europa, repleta de Vivaldi, dinheiro, bons amigos… Bach correu a vida toda atrás de melhores postos, e ficou sempre, infelizmente, aquém. Assim, ao apresentar da Missa em Dresden, fez uma aposta alta e reuniu seus melhores materiais, reciclando muito de seus arquivos, o que sempre fez com perícia. O Kyrie e o Gloria foram compostos naquele ano, o primeiro como um lamento pela doença de Augustus, o Forte, que veio a falecer em 1 de fevereiro de 1733, e o segundo para celebrar a ascensão de seu sucessor, o Eleitor da Saxônia e mais tarde rei da Polônia, o Rei Augusto III, que, para assumir o trono da Polônia, se converteu ao catolicismo. Estas duas seções foram apresentadas por Bach a Augustus III, junto com uma nota datada de 27 de julho de 1733, como uma Missa com as partes Kyrie e Gloria, na esperança de obter o título de Compositor da Corte da Saxônia, lamentando-se de que havia sofrido imerecidamente, uma injúria após outra em Leipzig. Provavelmente, estas partes da Missa foram executadas em 1733, na Sophienkirche, em Dresden, onde Wilhelm Friedemann Bach trabalhava como organista desde junho, sem a presença daqueles a quem eram dedicados.
Johann Sebastian Bach – carta na qual o compositor alemão dedica o Kyrie e o Gloria de sua ‘Missa em Si Menor’ a Frederico Augusto, Eleitor da Saxônia. Datada de 19 de agosto de 1733.

— O Sanctus foi composto em 1724
— O Credo pode ter sido escrito em 1732.
— Em 1747 ou 1749, Bach copiou toda a partitura.

A Missa em Si menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach, é uma obra monumental que merece ser ouvida por várias razões:

  1. Síntese do Gênio de Bach: Esta obra é frequentemente vista como o ápice da carreira de Bach, sintetizando suas habilidades como compositor de música sacra. Ela combina estilos e técnicas que Bach desenvolveu ao longo de sua vida, unindo elementos de música coral, orquestral e solos vocais em uma obra magistral.
  2. Diversidade Estilística: A Missa em Si menor abrange uma impressionante variedade de estilos musicais. Desde o uso do contraponto renascentista até elementos do barroco tardio, Bach demonstra sua capacidade de fundir e elevar diferentes tradições musicais. Isso faz da Missa uma verdadeira enciclopédia de técnicas musicais da época.
  3. Profundidade Espiritual: Embora Bach tenha sido um luterano devoto, a Missa em Si menor é uma obra universal em seu alcance. Ela transcende divisões confessionais, oferecendo uma expressão profunda da espiritualidade cristã. A música é emocionalmente poderosa, capturando desde a solenidade do “Kyrie” até a exultação do “Gloria”.
  4. Complexidade Técnica e Beleza Harmônica: A complexidade técnica da Missa é extraordinária. As fugas, as sobreposições harmônicas, e a interação entre vozes e instrumentos são de uma sofisticação raramente igualada na música. No entanto, apesar dessa complexidade, a obra nunca perde sua beleza melódica e harmônica, sendo ao mesmo tempo acessível e profundamente rica.
  5. Legado Histórico: A Missa em Si menor é uma das obras mais influentes da música ocidental. Ela foi redescoberta e valorizada no século XIX, e desde então, tem sido um pilar do repertório coral e orquestral. Sua importância histórica e musical a coloca entre as maiores composições já escritas.
  6. Experiência Emocional: Ouvir a Missa em Si menor é uma experiência emocional poderosa. A combinação de vozes, orquestra e a arquitetura musical de Bach cria um impacto que vai além das palavras. Cada seção da Missa evoca uma gama diferente de emoções, desde a penitência até a glória, fazendo dela uma obra completa e emocionalmente envolvente.

Esses aspectos fazem da Missa em Si menor uma obra que não só deve ser ouvida, mas também estudada e apreciada como uma das maiores realizações da música clássica.

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E aqui está a palestra para o Notas de Concerto:

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O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

Este livro é um torpedo, uma obra-prima. Simenon era um mestre da análise psicológica. Em O homem que via o trem passar, acompanhamos Kees Popinga, um sujeito de lógica nada normal. Normal, Popinga assim parece nas primeiras páginas. Em sua bela vila em Groningen, na Holanda, ele leva uma vida pacífica e previsível com sua esposa, a quem chama de “mãe” — exceto na cama, espero — e seus dois filhos, Frida e Carl. Popinga exerce uma importante posição na melhor casa de importação e exportação da região, a de Julius de Coster en Zoon. Em suma, está tudo certo, tudo está bem planejado e certinho nesta vidinha enfadonha. Kees proíbe-se de entrar em certos bares que são taxados de inadequados. Quanto ao bordel local, onde, durante anos, estivera Pamela, a mulher que ele considerava a mais atraente que existia, Popinga nunca colocaria seu pé. Por nada no mundo. Pamela era uma das amantes de de Coster.

Sem spoilers. Tudo que contarei agora está no início do livro. Um dia, ocorre um problema na firma e Popinga precisa falar com o chefe à noite.  Não o encontra, mas, finalmente, por acaso, ao passar por um bar, Popinga o vê pacificamente instalado numa mesa de bar. O chefe também o vê e gesticula mui gentilmente para que Popinga entre. Com total tranquilidade e cinismo, Julius anuncia ao seu encarregado de negócios que a Companhia será declarada em liquidação muito em breve porque, entre outras coisas, ele, Julius, contrabandeia e contrabandeia há vinte anos. Então, Julius conta-lhe que decidiu desaparecer discretamente, naquela mesma noite, para se refugiar na Inglaterra, onde uma poupança o espera. E aconselha Popinga a fazer algo semelhante. Ali mesmo, de Coster lhe entrega uma graninha e faz uma vaga promessa de retomar futuramente seus negócios com Popinga.

E o mundo de Kees cai. Em primeiro lugar, com o dinheiro que lhe foi dado por de Coster, Popinga compra uma passagem para Amsterdam. Acontece que de Coster abandonou ali, no Carlton Hotel, a famosa Pamela, que ali mantinha há algum tempo. Popinga se apresenta a ela e, sem preâmbulos, por achar natural seu pedido (“afinal, era o trabalho dela, não era?”), exige passar uma hora de sexo com ela. A jovem cai na gargalhada na cara dele. Azar dela.

Depois, ele vai para Paris. Embora os personagens que o rodeiam — principalmente Jeanne Rozier, seu amante Louis e um bando de bandidos — pertençam à realidade, existe, para Popinga, apenas uma realidade: a sua. Kees Popinga reina supremo, está nas manchetes, escreve aos diretores de certos jornais para corrigir o que, segundo ele, é falso nas matérias a seu respeito. Ele até se dá ao luxo de escrever ao Comissário que o persegue. Aos poucos, ele se deleita com a fama, mas sobretudo com a habilidade excepcional com que escapa de seus perseguidores, pessoas que vivem dentro das normas. Ele acaricia, lisonjeia e constantemente insiste no valor de sua inteligência. Kees Popinga escapa de todos porque é o mais esperto.

O livro é enormemente envolvente. Kees é de enorme verossimilhança. Simenon explora seu personagem em profundidade, lá de dentro de seu cérebro de psicopata. O resultado é espetacular. Não pensem em um livro sangrento, nada disso. Sangue não é com Simenon, seu negócio são seres humanos. E, apesar do desvio e da perversão e da megalomania, é a impressão de um ser humano que o leitor leva de Kees Popinga, O homem que via o trem passar.

Georges Simenon (1903-1989)

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Na praia, de Ian McEwan

Na praia, de Ian McEwan

Este é um dos melhores McEwan que já li. O livro localiza-se num ponto muito curioso dos costumes do século XX, pouco antes da liberação sexual dos anos 60, bem no final da repressão na Inglaterra, coisa que seguiu aqui no Brasil por mais alguns anos, conforme meu corpo pode testemunhar com certa tristeza.

Edward Mayhew e Florence Ponting acabaram de casar. Ele é um historiador de uma família mais pobre, ela é uma talentosa violinista principal de um quarteto de cordas com aspirações a Wigmore Hall — diga-se de passagem, o melhor lugar do mundo. Ambos tem 22 anos. Sua história de amor cresce muito a partir da primeira frase do livro, que antecipa o que leitor lerá depois: “Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente  impossível”.

A lua de mel acontece na praia Chesil, em um hotel. Eles comem a ceia nupcial sob a guarda de dois garçons, como intrusos. Logo eles irão embora, deixando-os com os problemas de uma retidão moral que só os atrapalha. Florence parece preferir nunca ter ninguém a tocando, nem mesmo esse homem que ela verdadeiramente ama. Ela ficou muito preocupada após a leitura de um manual de casamento que só falava em mucosas, glande e penetração, jamais em prazer. Enquanto isso, Edward sonha silenciosamente com o deleite sem fim que será possuir Florence. Esses dois mundos já colidiram (ou colidem) várias vezes, e não costuma dar certo. Poderia dar uma bela comédia, mas o momento é grave e o tratamento de McEwan também, além de poético e compreensivo.

Como já disse, os dois se amam, mas a inexperiência de Edward e aquilo que Florence sente como um ataque à sua virtude, serão um drama verdadeiro. McEwan acha o tom perfeito para lidar com esse relacionamento, transformando-o em algo muito perturbador. Tanto Edward quanto Florence temem que ela seja “frígida”, essa palavra antiga, e veem esse estado como espécie de maldição para todo o sempre.

McEwan interrompe a narrativa com dois capítulos longos e maravilhosos que detalham seus passados e o encontro de Florence e Edward, junto às pequenas mitologias que eles estabelecem um com o outro. O idílio na aldeia da infância de Edward é perturbado por um acidente sofrido por sua mãe quando a guerra termina. Florence é sufocada em uma casa burguesa, por uma mãe filosófica e um pai rico. As implicações dessas diferentes educações reverberam neles. Nos romances de McEwan, sabemos, ninguém escapa de sua classe social.

O final, belo e triste, traz uma qualidade de conto de fadas à novela. Claro, seria horrível contá-lo aqui. McEwan é o malvado de sempre. O olhar de Florence pelo Wigmore Hall na cena final é puríssima (e boa) literatura.

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Anton Bruckner (1824-1896)

Anton Bruckner (1824-1896)

Hoje, 4 de setembro, é o dia dos 200 anos de nascimento de um dos compositores que mais amo: Anton Bruckner.

Ele nasceu em Linz, na Áustria, e foi uma figura estranhíssima. Este ano, li a biografia que Lauro Machado Coelho escreveu sobre ele. Muitas coisas começaram a fazer sentido.

Dizia a lenda que Bruckner era quase um idiota. Nada disso. Mas havia o ambiente rural e quase tacanho em que o compositor nasceu, a desgraça de ser um jeca, a sua insegurança neurótica, seu alto conhecimento e seus incríveis — de modo positivo — resultados como aluno. Porém, mesmo sendo um espetacular improvisador ao órgão, professor e compositor, Bruckner era um ingênuo que propunha casamento às moças mais inatingíveis, era hiper religioso, anotava tudo o que fazia, gastava e recebia, sabia quantas árvores existiam em todos os seus caminhos diários, pois as contava, além de outras esquisitices absolutamente originais. Quando transferiu-se de Linz para Viena, quis ter certeza de que seria aceito de volta caso fosse um insucesso em Viena. Insegurança total, sempre.

Também ficava agradecido a quem regia sua música, a ponto de se submeter a humilhações. Halb Genie, halb Trottel (metade gênio, metade pateta) era o que se dizia dele. Podem imaginar esse homem saído da pequena Linz (Sankt Florian) para a sofisticada Viena? Pois ele adquiriu o respeito de gente como, por exemplo, Gustav Mahler. Sua música foi adotada por Hitler como símbolo da força e da pureza arianas, mas logo os historiadores descobriram que, Bruckner, devoto de Richard Wagner, não era nem um pouco antissemita e o nazismo desgrudou dele assim que a guerra acabou. Quando os maestros judeus começaram a ser preteridos, Bruckner passou a convidá-los para estrear suas sinfonias, deixando de lado os “alemães”.

Compondo sinfonias imensas, realizou grandes esforços para ver sua obra aceita – inclusive revisando-a incessantemente… Não podia ouvir uma opinião contrária que já saía reescrevendo tudo. E criou imensa obra, cheia de diferentes versões. Um prato delicioso para os musicólogos.

Sou muito Bruckner e minhas sinfonias preferidas são a 3, 4, 5, 7 e 9. Ele tem 11, mas parou na nona. Ele tem uma Sinfonia de Estudo, que não era para ser publicada. Insegurança. Era tão boa que tornou-se a Sinfonia N° 0 (Nullte). Teve outra a qual ele também não deu número. Bruckner declarou que ela “gilt nicht” (não contava)… Hoje, é tocada, claro.

Sua música trazia a estranheza de parecer por vezes imitar o órgão, seu instrumento, sempre com muitas pausas significativas e entradas em fortíssimo para alegria dos metais da orquestra.

Bem, esta é minha pequena homenagem a este gênio. Abaixo, uma boa piada sobre suas incontáveis revisões.

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Memento Mori, de Muriel Spark

Memento Mori, de Muriel Spark

É inacreditável que Muriel Spark (1918-2006) tenha escrito o divertido Memento Mori em 1959, com apenas 41 anos. Seu conhecimento sobre as pessoas velhas já era enorme! A expressão Memento mori significa “lembre-se de que é mortal” ou “lembre-se de que vai morrer”. (Na antiguidade, era usada pelos filósofos estoicos como expressão de reflexão. Nos mosteiros católicos, é uma saudação utilizada pelos monges como um exercício diário de aceitação da morte.) E é isso que ouve um grupo de velhinhos ingleses  quase todos os dias de um anônimo que lhes telefona. Alguns estão em clínicas geriátricas, outros flanando por aí, alguns ricos, outros não. E chamam a polícia para descobrir o autor das mensagens, sempre ditas assim, sem mais. Este mote filosófico e brilhante é o estopim para um belo livro de Dame Muriel.

Eles suspeitam que quem telefona é um de seus inimigos ou parentes hostis. Quem estaria tentando assustá-los? Ou estariam interessados nas heranças? Mas o chamador fala com vozes e sotaques diferentes para pessoas diferentes e tem um conhecimento inexplicável de seus movimentos. Várias explicações sobre a origem das ligações são propostas, mas nenhuma se encaixa em todas as evidências. A polícia fica perplexa, e o inspetor aposentado Mortimer, ele mesmo um suspeito aos olhos de alguns, conclui: “na minha opinião, é a própria Morte”. Quem será?

Embora o assunto seja a inevitabilidade da morte e as várias aflições, físicas e mentais, da velhice, o romance está longe de ser mórbido ou deprimente. Pelo contrário, é maravilhosamente engraçado do começo ao fim.

Um romance sobre a morte pode ser engraçado? Sim, se ele for sobre como sobre a morte é percebida, temida, negada e antecipada de várias maneiras pelos idosos. À medida que o tratamento médico e a tecnologia continuam a melhorar, a morte é adiada cada vez mais para mais e mais pessoas, mas isso é uma bênção mista. Temos que viver mais com todas as indignidades e aflições da velhice, da incontinência ao Alzheimer, enquanto aguardamos o fim inevitável, sobre o qual só a fantasia das pessoas tem algo de reconfortante a dizer.

A ficção inglesa dos anos 50 é muito boa. Lembro agora apenas de Lucky Jim e de Sábado à noite, domingo de manhã, duas obras-primasDeve ser o Alzheimer. Ops, o telefone está tocando. Já volto.

Muriel Spark

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Onze anos de Elena e Milton

Onze anos de Elena e Milton

Onze anos de Elena e Milton. Quando digo que, descontando uns outros, és meu primeiro amor, brinco apenas parcialmente. De certa forma é mesmo. Explico. Todo relacionamento de qualidade assim mais ou menos, um dia chega a seu topo e começa a descer. O quão íngrime é a descida depende de muitas coisas, às vezes o ângulo é tão severo que a gente desce como um carro sem freios matando um monte de coisas pelo caminho: respeito, vontade de se aproximar, tudo. Mas, onze anos depois, ainda me dá aquela súbita vontade de te abraçar mesmo quando estou longe e isto é impossível. Ou seja, devemos estar em terreno quase plano. E ontem, quando estava palestrando, eu sempre dava uma olhadinha pra ti em busca de alguma inspiração. Parece até que funcionou. Sou um bobalhão apaixonado. Eu não sei se faço bem pra ti, mas do contrário tenho convicção e quero mais onze.

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Sergio Faraco é o novo patrono da Feira do Livro, Rafael Guimaraens fica na fila

Sergio Faraco é o novo patrono da Feira do Livro, Rafael Guimaraens fica na fila

Desejava que o Rafael Guimaraens fosse o patrono da Feira do Livro, é sempre um reconhecimento. Ele há anos escreve sobre Porto Alegre e seus livros são cada vez melhores. Mas houve uma enchente este ano e ele tem um livro sobre a Enchente de 41. Talvez algumas ôtoridades ficassem de nariz torcido com um sujeito que, além disso, criticou bastante a postura de alguns deles durante os eventos de maio.

Só que escolheram Sergio Faraco, o maior contista brasileiro, um fantástico escritor que jamais tinha sido patrono. A escolha de Faraco evita qualquer protesto. Claro, basta abrir um livro dele para fechar a boca. O cara é genial.

De minha parte, sempre fui meio avesso à feira do livro. Lembro que lá em 2014 ou 15, quando ainda não era dono de livraria — era jornalista do Sul21 –, fui chamado a improvisar algo sobre a Feira para o jornal.

Tenho aquele defeito de ser sincero. É uma droga isso. Parei na frente da câmera pilotada pela querida Roberta Fofonka e, em plena praça, disse algo que era mais ou menos assim, de costas para a Rua da Ladeira.

“Esta é a festa das editoras e das distribuidoras. Fora os sebos, é uma feira de lançamentos, a maioria de autoajuda. Não há grande atenção pelo que está sendo vendido. É meio nauseante passar entre as maiores bancas, pois elas vendem os mesmos livros. Então, se você quiser literatura (e apontei para trás), suba a Ladeira e dobre à esquerda na Riachuelo. Ali está o que você procura”.

A coisa foi ao ar e alguém da organização pediu para falar com minha chefe. Ela deu risada e me chamou. Tomamos um café juntos.

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Bambino a Roma, de Chico Buarque

Bambino a Roma, de Chico Buarque

Bambino a Roma é um livro escrito com leveza, narrando as aventuras do menino Chico Buarque na Itália durante os dois anos em que seu pai deu aulas na Universidade de Roma — entre 1953 e 1955. Sérgio Buarque de Hollanda viajou de navio com a esposa e os sete filhos do Rio de Janeiro até Gênova e de lá para Roma. Eu achei uma delícia ler o livro. O texto tem a dimensão do tema tratado, além de não se desviar de temas espinhosos. Há, por exemplo, alguns abusos, como os cometidos por Mr. Welsh, um professor de inglês que gostava de passar a mão na bunda dos alunos por dentro de suas cuecas, Chico incluído.

Mas o abuso não é o principal, o principal é a amizade com Amadeo (o filho do quitandeiro com o qual jogava futebol), a relação com as meninas, sua paixão por algumas delas, a relação com os irmãos, a apendicite, as fugas da escola, as correrias por Roma de bicicleta e o pai sempre distante como eram os pais do passado — alguns ainda o são, certo? E as coisas de guri… Afinal, levante a mão quem teve uma irmã mais velha e não a observou pelo buraco da fechadura para ver como era! Tive duas.

O humor do relato nos deixa espreitar as fragilidades daquele menino que dançou numa festa com Alida Valli, quase sufocado por seus seios. Ele tinha 10 dez anos. Durante a narrativa, Chico algumas vezes põe em dúvida o que conta, riscando partes daquelas imagens saudosas e nos fazendo abordar certas partes com um olhar oblíquo.

O tom do livro me parece perfeito — sem ser exageradamente nostálgico ou piegas, lemos uma visita compreensiva de um velho a uma parte de sua infância. Os capítulos finais do livro (sem spoilers, apesar de que estou louco para contar) são extremamente sutis e bonitos. E um tanto angustiantes.

É biografia ou autoficção? Certamente é autoficção. Chico modifica detalhes, enrola a gente com humor e perspicácia e… Entrega elegantemente o jogo, mas apenas para os leitores atentos. Ah, o livro tem algumas fotografias de família assim como de alguns bilhetes da época.

Recomendo!

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Atrás do balcão da Bamboletras (LII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LII)

9h de sábado. Desço ainda com sono para a Livraria Bamboletras. O telefone toca. Nem tinha ligado o computador. Atendo e do outro lado está uma voz apressada perguntando se eu tenho o último livro do Chico Buarque. Respondo que sim.

— Então vou mandar um Uber aí AGORA. Quero fazer uma surpresa para o café da manhã da minha esposa. Faz uma embalagem de presente enquanto eu faço o pix.

Ainda estava meio dormindo quando o motoboy chegou.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LI)

Eu estava na Livraria Bamboletras e subi correndo para terminar um café. Quando cheguei na cozinha, a Elena me perguntou:

— Quem estava tocando piano lá embaixo? Tocava muito bem.

Pois bem, eu não sei quem estava tocando. Ou melhor, sei muito bem, mas ignoro o nome dela. Era uma senhora de mais de oitenta anos. Sei que ela entrou com sua filha e neto. Olhou para o piano e disse que era pianista. Vi que suas mãos tremiam bastante, só que li Alucinações Musicais, brilhante livro de Oliver Sacks, e sabia que ela deixaria de tremer quando pusesse as mãos no teclado.

Ofereci o piano pra ela tocar. Ela olhou para a filha e perguntou se dava tempo pra ela dar uma experimentada antes do aniversário ao qual iriam.

A filha disse claro mãe, vai. Ela iniciou hesitante, obviamente não conhecia o piano. Na segunda música já estava perfeitamente adaptada e nos fez ouvir um interessante Czardas, de V. Monti.

Ficou tão feliz com o piano que não parava de elogiá-lo e queria dar presentes pra todo mundo, pro neto, pra filha, pro genro que chegou depois, pra todo mundo.

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