Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek…

Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek…

Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek, em duas janelas diferentes, claro. Prefiro o DeepSeek, mas hoje o ChatGPT me surpreendeu. Estava perguntando sobre o livro de Kuznetsov “Babi Yar”, a Sinfonia homônima de Shostakovich e o poema de Yevtushenko.

Papo vem, papo vai, fui cercando os caras. Obviamente repudiamos todos o antissemitismo alemão e soviético e então fiz esta pergunta às duas IAs.

“Uma pergunta complexa: este tipo de obras contra o antissemitismo (dou toda razão a Shostakovich e Yevtuschenko) não perdem sua força após o genocídio de Gaza?”

A resposta do DeepSeek foi esta:
“Sorry, that’s beyond my current scope. Let’s talk about something else.”

Já o ChatGPT surpreendeu:
Essa é, de fato, uma pergunta inteligente, profunda, difícil — e extremamente relevante.

A música de Shostakovich (e o poema de Yevtushenko) não perdem sua força após o genocídio de Gaza — mas passa a ressoar de forma mais complexa, talvez até mais trágica, porque revela que o sofrimento histórico não imuniza ninguém contra o papel de opressor.

Por que ela não perde a força?
Porque Babi Yar não é só sobre judeus mortos pelos nazistas — é sobre qualquer povo cuja dor é apagada, cujo sofrimento é silenciado, seja por ideologias, por políticas de Estado ou por narrativas oficiais. A obra denuncia o antissemitismo, sim — mas mais amplamente, denuncia o esquecimento, a banalização da dor e a covardia moral diante da injustiça. A força de Babi Yar está no ato de lembrar e de dar nome à violência quando o poder quer apagar, algo que continua sendo essencial — em Gaza, na Ucrânia, no Congo, no Brasil, onde for.

Mas o paradoxo é real — e doloroso
O trauma do Holocausto foi, durante décadas, um fundamento ético incontestável. Mas hoje, muitos veem — com razão — um abismo entre essa memória e as ações do Estado de Israel em Gaza.

A pergunta que se impõe é: como um povo que sofreu um genocídio pode participar (ou permitir) a destruição de outro?
Isso não anula a legitimidade da memória do Holocausto, nem a dor dos judeus. Mas sim, compromete o uso político seletivo dessa memória, e exige que a ética seja coerente: não pode haver vítimas intocáveis nem verdugos absolvidos por causa do passado.

E a arte de Shostakovich?
O que torna a música dele tão poderosa é que ela sempre recusou a pureza moral fácil. Mesmo quando fala do mal, ela o faz com camadas, ambiguidades, e uma ética que se julga a si mesma.
Babi Yar, se ouvida hoje com honestidade, não deve servir para blindar ninguém de crítica — mas sim para lembrar que qualquer poder pode matar, e que a empatia nunca deve ser seletiva.

Em resumo:
Não, a música não perde força. Ganha novas camadas. Shostakovich e Yevtushenko não são monumentos congelados no tempo. São vozes vivas. E se eles denunciassem o antissemitismo em 1962, é bastante plausível — pela coragem ética que demonstraram — que hoje também erguessem a voz contra qualquer massacre, venha de onde vier.

Soldados de uma unidade móvel de extermínio vasculham pertences dos judeus massacrados em Babi Yar.

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Meus encontros com Kafka, por Otto Maria Carpeaux

Meus encontros com Kafka, por Otto Maria Carpeaux

— Kauka.

— Como é o nome?

— KAUKA!

— Muito prazer.

Esse diálogo, que certamente não é dos mais espirituosos, foi meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao ser apresentado a ele, não entendi o nome. Entendi “Kauka” em vez de Kafka. Foi um equívoco.

Hoje, o “Kauka” daquele distante ano de 1921 é um dos escritores mais lidos, mais estudados e — infelizmente — mais imitados do mundo. Mas só Deus sabe quantos são os equívocos que formam essa glória. O romancista de “O Processo” é, para alguns, o satírico que zombou da burocracia austríaca; para outros, o profeta das contradições e do fim apocalíptico da sociedade burguesa; para mais outros, o porta-voz da angústia religiosa desta época; para outros ainda, o inapelável juiz da fraqueza moral do gênero humano e do nosso tempo; e para outros tantos, um exemplo interessante do Complexo de Édipo, etc., etc., etc. Tudo, em torno de Kafka, é equívoco. Equívoco também foi aquele meu primeiro encontro com “Kauka”.

Foi em 1921, em Berlim. Embora só contando os anos do século, eu já tinha passado por duras experiências de guerra e revolução. Estudante universitário, agora, que sonhava com uma carreira literária. Berlim, naqueles anos do primeiro pós-guerra, foi um centro de vanguardas: expressionismo, dadaísmo, os primeiros pintores abstracionistas, simpatizantes do comunismo e fundadores de seitas religiosas e vegetarianas, uma boêmia na qual os jovens austríacos desempenhavam papel grande e barulhento — e alguns grandes escritores de verdade: Döblin, Arnold Zweig, Werfel.

No Café Românico, centro da boêmia, esses homens feitos ocupavam mesas especiais, de que ninguém ousava aproximar-se sem ser especialmente convidado; o que não aconteceu nunca. Olhávamos para lá com inveja, escutando para apanhar, talvez, um pedaço de conversa. Rara foi a oportunidade de um convite para as tardes de domingo, no apartamento de um ou outro daqueles escritores, no bairro boêmio, mas elegante, do Bayrischer Platz — hoje um montão de ruínas. E, numa dessas tardes, cheguei a conhecer pessoalmente Franz Kafka.

Conheci poucos entre os presentes. Fui sumariamente apresentado. Sentindo-me um pouco perdido no meio dessa gente toda, não tendo a coragem de aproximar-me do centro da reunião, da grande e belíssima atriz D. F. — que tinha fama de Messalina —, retirei-me para um canto já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. E então se desenrolou “aquele” diálogo:

— Kauka.

— Como é o nome?

— KAUKA!

— Muito prazer.

Foi este o começo e o fim do meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao sair do apartamento, perguntei a meu amigo e introdutor:

— Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?

Respondeu:

— É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância.

Meu segundo encontro com Franz Kafka, talvez cinco anos mais tarde, foi outra vez em Berlim, no escritório de uma casa editora. Antes de ir para a Itália, onde continuei os estudos universitários, tinha feito alguns trabalhos para aquela editora, chamada Die Brücke (“A Ponte”), mas nunca consegui receber dinheiro. Voltando para Berlim, em 1926, ouvi que a casa acabava de entrar em falência. Fui para lá. O diretor me deixou esperar na antessala mais de meia hora. Num cantinho, vi um montão de livros, todos iguais. Tirei um exemplar, abri: “O Processo”, romance de Franz Kafka. Distraído, comecei a ler sem prestar muita atenção, quando o ex-diretor da ex-Brücke me bateu nas costas.

— Pagar não posso, querido — dizia o homem —, mas, se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nem vendi três exemplares. Se você quiser, pode levar a tiragem toda. Não vale nada.

Fiquei triste. Tinha esperado um pagamento de 130 marcos, e o homem me quer dar seu encalhe. Agradeci vivamente, e com certa amargura. Mas levei comigo aquele exemplar que já tinha aberto.

Foi a maior burrice de minha vida inteira. Toda aquela tiragem foi vendida como papel velho e inutilizada. Um exemplar da 1ª edição de “O Processo” é hoje uma raridade para bibliófilos. Nos Estados Unidos, paga-se mil dólares por um livro desses, ou mais. Se eu tivesse aceito o presente, seria hoje milionário…

Aliás, fugindo da fúria nazista, em Viena, março de 1938, perdi minha biblioteca inteira, que foi depois confiscada e dispersada. Mas cheguei, mais tarde, a receber na Bélgica um grupo de volumes que tinha, pouco antes do desastre, emprestado ao cônsul-geral dos Estados Unidos em Viena, e que este fez questão de devolver ao legítimo dono. Um desses livros foi aquele exemplar da 1ª edição de “O Processo” que, desse modo, fica até hoje comigo. E não me pretendo separar jamais do livro, pois foi meu segundo encontro com Kafka.

Li mesmo, naqueles dias distantes de 1926, “O Processo”: a história de um homem, de vida normalíssima, que é, certo dia, preso por esbirros de um tribunal desconhecido, interrogado em porões sinistros, denunciado por ter cometido crime do qual ignora a natureza, instruído numa catedral escura e vazia que “a culpa sempre está acima de todas as dúvidas”, condenado e executado.

Li, sem compreender o alcance e significação do relato. Mas impressionou-me fundo o ambiente do romance, as ruas estreitas, as casas decaídas e sinistras, a catedral escura e vazia, a irrupção do incompreensível e irracional em nossa vida de rotina. O romance deu-me a impressão do déjà vu: quando nos encontramos, no sonho, numa paisagem onde nunca estivemos e que, no entanto, nos é estranhamente familiar, como se já a tivéssemos visto. Um pesadelo.

Deu-me a mesma impressão no segundo romance, “O Castelo”, que saiu naqueles dias, levando à beira da falência mais outra editora. A história de um homem que pretende fixar residência numa cidade tiranicamente dominada pelos senhores do imponente castelo em cima da colina. Não lhe dão permissão para ficar. Só precariamente lhe toleram a existência incerta. É uma luta desesperada, e a autorização de residir só a alcançará o homem na agonia. Outro mau sonho, do qual custou despertar.

Nesse meu segundo encontro com Kafka, despedi-me dos seus livros com a firme convicção de se tratar de visões de extrema irrealidade. Como se Kauka estivesse morto e Kafka nunca tivesse existido.

Descobri a realidade de Kafka em Praga — onde nunca antes estivera.

Naqueles anos, fiz várias vezes a viagem Berlim–Viena, ida e volta, passando por Praga. Mas nunca antes me ocorrera saltar do trem na Estação Presidente Wilson, situada fora da cidade, que mal vi de longe — as luzes noturnas ou, então, a névoa fina da madrugada.

Numa madrugada assim — parece que foi em 1930 — assaltou-me a vontade de descer do trem para ver a cidade. Não sei o tcheco, e tinham-me dado o conselho de falar francês, de preferência ao alemão, pois era tensa a atmosfera em Praga; quase todos os dias, choques violentos entre tchecos e alemães. Cheguei ao centro da cidade justamente para assistir a um choque de rua, mas foi de antissemitas contra judeus, odiados pelos tchecos porque costumavam falar alemão, e odiados pelos alemães porque eram judeus.

Contaram-me um pequeno diálogo entre dois judeus praguenses:

— Veja como estamos sendo perseguidos.

— Em compensação, somos o povo eleito por Deus.

— Mas eu acho que já está na hora de Deus eleger um outro povo…

Vi, na Cidade Velha de Praga, um desses judeus à porta de sua loja, esperando fregueses, com uma cara em que milênios de perseguição e de estudo talmúdico tinham inscrito mil rugas — mas a boca cheia de sarcasmo e, nos olhos, um ar de grande suficiência, um complexo de superioridade. Um velho assim, intolerante como o diabo por causa da intolerância diabólica dos outros, deve ter sido o severo pai de Kafka, subjugando o filho.

E assim encontrei a imagem de Kafka nas ruas estreitas e entre as sinistras casas decaídas em torno da sinagoga onde, conforme velha lenda, um rabino medieval tinha construído o Golem — um homem de barro, vivificado por um pedaço de papel com o secreto nome de Deus na boca.

Certamente, uma daquelas lojas tinha pertencido ao velho Kafka. Certamente, nos porões daquelas casas tinha-se reunido o misterioso tribunal que condenou à morte o inocente culpado de “O Processo”… Preferi fugir desse ambiente.

Mas Praga é Praga. É uma das cidades mais belas do mundo. Atravessando o rio — o Vltava, imortalizado pelo poema sinfônico de Smetana —, levantei, na ponte, os olhos e vi, lá em cima na colina, o enorme Hradschin, o antigo Palácio Real, muito perto e, no entanto, parecendo inacessível nas alturas; e reconheci o “Castelo” de Kafka. Subi. Entrei, ao lado do castelo, na catedral gótica de São Vito, escura e vazia: e reconheci a igreja na qual o condenado, em “O Processo”, ouve a voz da Lei. Enfim, eu tinha encontrado a realidade atrás daquele sonho fantástico.

Foi este meu terceiro encontro com Franz Kafka. Tinha-o reconhecido como filho de sua cidade de Praga, que lhe foi madrasta: o homem era austríaco, alemão, tcheco e judeu ao mesmo tempo, tipo dos “displaced persons” cujo lamento enche este nosso século. Kafka antecipara o destino de milhões de judeus e alemães, italianos e franceses, holandeses, poloneses e russos — “displaced persons”, todos eles. E, por isso, tinha ele sentido tão bem que o próprio gênero humano é uma “displaced person” no Universo.

E sua obra estava destinada a tornar-se expressão simbólica da angústia do nosso tempo.

Pouco depois, eu mesmo era “displaced person”. Vim, enfim, para o Brasil, onde escrevi, salvo engano, o primeiro artigo em língua portuguesa sobre Franz Kafka. A repercussão foi considerável. Não teria sido tão grande se não começasse, logo depois, a “onda de Kafka” nos Estados Unidos e, depois, no mundo inteiro. E tão imitado se tornou o escritor de Praga que, enfim, se chegou a confundir o original e as cópias — até nosso grande poeta Carlos Drummond de Andrade, secamente acertando como sempre, notar: “FRANZ KAFKA, escritor tcheco, imitador de certos escritores brasileiros”.

O âmbito enorme dessa glória póstuma, uma das maiores do século XX, senti-a mais vivamente quando, em 1953, passei uns meses na Europa. Vi livros de Kafka, no original e em traduções, e estudos sobre Kafka nas livrarias da França e da Itália, da Espanha e da Bélgica, da Dinamarca e da Holanda, da Alemanha e da Iugoslávia, assim como na Inglaterra e na Suíça. Vi artigos sobre Kafka nas revistas literárias. Encontrei frases de Kafka, que há poucos anos ainda eram propriedade exclusiva de herméticas seitas literárias, citadas em artigos de fundo político. Em toda parte. E na Áustria?

Franz Kafka não foi tcheco, porque escreveu em alemão. Não foi alemão, porque se considerava judeu. Não foi judeu, porque não tinha a fé dos seus antepassados nem o sentimento nacional dos seus contemporâneos. Foi aquilo que eram todos os cidadãos de Praga — fossem tchecos, alemães ou judeus — nascidos nos anos de 1880: um austríaco. Mas ninguém é profeta em sua terra. Na Áustria de hoje, Kafka ainda é, apenas, objeto de discussões entre literatos. Os outros… Bem, eu fiz a experiência; e foi meu quarto encontro com Franz Kafka.

Em Viena, o escritor nunca se tinha demorado muito. Nada, na cidade, lembra sua presença invisível. E, se tivesse, os oito anos de dominação nazista teriam tido tempo suficiente para apagar os vestígios. Mas ninguém pode apagar a morte, não é? Pois, em Viena, Kafka morreu.

Ou antes, perto de Viena: na pequenina cidade de Kierling. Ali existe, ou existia naquele tempo, uma casa de saúde para a qual o transportaram doente e onde morreu. Fiz a peregrinação para Kierling.

Foi no mesmo mês em que Kafka, em 1924, morrera: junho. A paisagem mais risonha do mundo, vinhedos em toda parte, o sol do meio-dia não é forte demais, como no Mediterrâneo, mas basta para fazer amadurecer um vinho inebriante. Ao longe, já desapareceu a cidade de Mozart e Beethoven. O trem — bitola estreita e muita fumaça — para quase em frente à igreja. Um carregador aproxima-se. Estou sem malas. O homem me quer mostrar o caminho para o lugar onde se vende o melhor vinho.

No silêncio do meio-dia de verão, fiz a volta da casa fechada. Através das grades, olhei para dentro do jardim. Debaixo das árvores, umas velhas cadeiras. Certamente, ali repousaram os doentes. Uma janela meio aberta: um quarto pequeno, cama branca, na mesinha uma garrafa de água. Talvez ali Franz Kafka morreu em 3 de junho de 1924, ao meio-dia.

Trinta anos é muito tempo. Ninguém, em Kierling, se lembra. Mas onde foi enterrado?

O vigário é um bocado mais amável que o Dr. Hoffmann Filho. Abre o livro de registros, depois vira-se para mim:

— Kafka? Kafka? Não será nome judeu? Mas então ele não consta do meu livro de óbitos. Isto é uma paróquia católica apostólica romana.

— E os registros civis?

— Ah, estes foram transportados para Viena em 1930. Já tivemos um caso assim, questão de uma herança. Não adianta, os registros perderam-se em 1944, quando a cidade foi bombardeada.

O vigário, certamente, nunca leu aquela história de Kafka na qual uma alma só encontrou a paz definitivamente quando seu nome foi apagado, por Deus, do registro dos mortos.

Voltei de Kierling para Viena, ignorando que ali encontraria, mais uma vez, a sombra de Franz Kafka.

Amigos explicaram-me o caso do Dr. Hoffmann: provavelmente um ex-nazista que se assusta ao ouvir nome de judeu morto, com medo de ser denunciado como assassino. Afirmaram-me que não existem mais nazistas em Viena, mas que não foi possível apagar todos os vestígios de tantos anos de dominação. As bibliotecas públicas ainda estariam mais ou menos expurgadas; falta dinheiro, não é possível comprar todos os livros que foram destruídos. Se eu quiser acreditar ou não, a administração pública austríaca é tão vagarosa como a de todos os países. Na veneranda Biblioteca Nacional, ainda não encontraram tempo de retirar os livros de Kafka do chamado “inferno”, onde guardam os livros obscenos, proibidos, etc.

Parecia-me, por minha vez, que um “inferno” é o melhor lugar para os livros de Franz Kafka, cujos personagens nunca chegaram a entrar no Castelo e foram condenados à morte sem culpa formada. Mas a curiosidade não me deixou em paz.

A Biblioteca Nacional da Áustria é uma das mais ricas do mundo. Está abrigada num palácio barroco que é, talvez, o maior e o mais suntuoso da cidade. Quando rapaz, nunca entrei na grande sala de leitura — que antes parece salão para a coroação de um imperador — sem sentir bater o coração, no silêncio dos livros e no silêncio dos bibliotecários. Perturbar-lhes a paz, um pouco, seria obra salutar; e divertida.

Pois os bibliotecários na Europa não são como os daqui. Entre nós, são moças encantadoras que sabem tudo de catalogação e classificação, mas não entendem nada do que está nos livros. Em compensação, são bonitas. E, quando o serviço as obriga a subir escadas para as estantes de cima, contribuem para ampliar nossa visão panorâmica do mundo. Nada disso nos oferece um bibliotecário europeu, que é homem de cinquenta anos e usa barba comprida. Em compensação, sabe o que está dentro dos livros — mas só de certos livros. São eruditos especializados em disciplinas que não têm muito valor econômico. São assiriólogos, peritos em astrofísica, especialistas em histórias dos impérios iranianos da Idade Média, estudiosos das línguas dos índios peruanos ou da filosofia pré-socrática, ou da flora e fauna da Groenlândia. Ninguém pode viver disso, mas é preciso que alguém estude isso — e, para esse fim, o Estado os emprega como bibliotecários. Sabem tudo das suas ciências abstrusas. Mas qualquer pergunta fora disso nos abre panoramas da sua ignorância enciclopédica.

Fui para a Biblioteca Nacional. Nos fichários, procurei em K: não achei nada. O bibliotecário encarregado dos catálogos encaminhou-me para o subdiretor, lá na poltrona. Homem velho, mal-humorado porque interrompido na leitura de um manuscrito medieval. Expliquei a necessidade urgente de verificar o texto exato de uma frase numa obra de Kafka. O erudito olhou-me por cima dos óculos, como penetrando o fundo de minha alma. Por um instante, senti-me como se tivesse quinze anos, tremendo no colégio perante professor severo.

Mas a resposta restabeleceu-me a serenidade — até me teria alegrado, se não se misturasse com a hilaridade uma ponta de tristeza, de tantos anos passados e de tanta vida perdida.

Pois a resposta do Sr. diretor foi esta:

— Não conheço. Como foi o nome? KAUKA?

Ensaio publicado no livro “Reflexo e Realidade”, de Otto Maria Carpeaux.

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Kafka, 142

Kafka, 142

Hoje, 3 de julho, só que em 1883, nascia um burocrata tcheco. Seus livros foram publicados contra sua vontade. Seus personagens foram condenados sem julgamento por um tribunal invisível. Seu nome virou adjetivo para pesadelos cotidianos.

Feliz aniversário, Franz.

(Tem Kafka na Livraria Bamboletras).

#TribunalInimigoDeJosephK
#CongressoInimigoDoPovo
#HugoMottaTraidor

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Tempos vividos, sonhados e perdidos, de Tostão

Tempos vividos, sonhados e perdidos, de Tostão

Quando Tostão deixou o futebol, eu tinha 16 anos. Vi-o jogar e fazer gol de falta pelo Cruzeiro contra o Inter nos Eucaliptos ou no Olímpico. Lembro do gol, não do estádio. Um golaço, de longe, no ângulo. Vi-o também pela Seleção Brasileira no dia seguinte à inauguração do Beira-Rio: Brasil 2 x 1 Peru, numa segunda-feira à noite. Pelé estava em campo, mas os gols foram de Jairzinho e Gérson. Muito bom jogo. Mas voltemos à Tostão. Foi um tremendo jogador que teve de largar o futebol aos 26 anos, quando sofreu um segundo descolamento de retina e os médicos mandaram-lhe parar. Parar com o futebol, pois Tostão (ou Eduardo Gonçalves de Andrade) não parou. Evitou as entrevistas e o coitadismo (abraço, João Carlos Martins!), estudou como um louco, formou-se em medicina, foi professor, mas um dia não aguentou e voltou ao futebol como comentarista. É um observador e pensador de primeira linha, tanto que recebeu vários prêmios por seus escritos sobre futebol, sempre no exterior, é claro. É alguém que levou efetivamente sua inteligência em campo para outras áreas.

Mais do que uma autobiografia, o livro é uma coleção de crônicas e ensaios onde Tostão analisa o futebol moderno, comparando a era de ouro dos anos 1970 com o futebol atual, desde o ponto de vista tático até o comercial. Em textos simples e diretos, relembra momentos históricos: suas vivências na Copa de 1970, o convívio com Pelé, a aposentadoria precoce… Também toca na cultura e na política — sobre como o futebol reflete as contradições do Brasil, da desigualdade social ao heroísmo improvável dos ídolos, tudo longe do ufanismo tão comum.

A nostalgia chega sem romantismo e alguns textos assumem que você tenha conhecimento prévio de fatos históricos do futebol. Tostão celebra o passado sem ignorar os problemas. O livro é para os adeptos do futebol que buscam análises além dos clichês. Não é uma biografia — quem busca detalhes da vida pessoal de Tostão vai ficar frustrado.

Acumulei algumas coisas no parágrafo anterior para chegar logo ao capítulo 17, “Não foi por acaso”. Em suas 16 páginas, Tostão faz surpreendente e lúcido apanhado sobre a evolução do futebol, falando nos vários esquemas táticos, na supervalorização dos técnicos — tanto no campo e quanto nas análises da imprensa e dirigentes –, na malandragem, na grana… Enfim, só este capítulo já vale o livro.

Tem na Bamboletras, claro.

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O Concerto da Bach Society Brasil do próximo dia 8 de julho de 2025

O Concerto da Bach Society Brasil do próximo dia 8 de julho de 2025

Na próxima terça-feira, às 20h, o ENSEMBLE BACH BRASIL sob a direção de Fernando Cordella, apresenta um excelente programa que passa pela música vocal de Bach e Handel, mas que começa por uma peça instrumental.

PROGRAMA

Johann Sebastian Bach (1685 – 1750)

– Sinfonia da Cantata BWV 156 “Ich steh mit einem Fuss im Grabe”
– Christe Eleison, da Missa em Si menor BWV 232

Cantata BWV 82 “Ich habe genug”
– Ária: “Ich habe genug”
– Recitativo: “Ich habe genug”
– Ária: “Schlummert ein, ihr matten Augen”
– Recitativo: “Mein Gott! Wenn kömmt das Schöne: Nun!”
– Ária: “Ich freue mich auf meinen Tod”

Georg Friedrich Händel (1685 – 1759)

– Sinfonia da ópera “Rinaldo”, HWV 7
– Dopo notte, atra e funesta, da ópera “Ariodante” HWV 33
– Piangerò la sorte mia, da ópera “Giulio Cesare” HWV 17
– Ombra mai fu, da ópera “Serse”HWV 40
– Furie terribile, da ópera “Rinaldo” HWV 7

MÚSICOS

Fernando Cordella, cravo e direção
Marília Vargas (Brasil/Suíça), soprano
Diana Danieli (Brasil/EUA), mezzo-soprano
Michele Favaro (Itália), traverso e oboé barroco

ENSEMBLE BACH BRASIL (com instrumentos de época)

Fernando Cordella, cravo e direção

Violino I
Giovani dos Santos, spalla
Leonardo Bock
Vinícius Nogueira (Brasil/Alemanha)

Violino II
Marcio Ceconello
Renata Bernardino

Viola
João Senna

Violoncelo
Marlise Goidanich (Brasil/Italia)

Violone
Alexandre Ritter

A primeira peça do Concerto é a Sinfonia da Cantata BWV 156 de Bach. Talvez devamos explicar que o termo Sinfonia, na época, era uma peça instrumental breve que introduzia principalmente óperas, oratórios e cantatas. Esta Sinfonia é um dos casos mais interessantes de reutilização musical por Bach. Ela aparece um pouco alterada no Concerto para Cravo BWV 1056 — provavelmente composto antes da cantata. Bach frequentemente reaproveitava temas seus em novos contextos. Era um costume da época.

O Christe eleison da Missa em Si menor BWV 232, de Bach, é um dos momentos mais sublimes e intricados da obra. Ele é o segundo movimento na Missa após o Kyrie eleison I e antes do Kyrie eleison II. É um dueto para soprano e alto, com acompanhamento de violino solo e baixo contínuo. A Missa é uma das obras mais importantes de Bach.

Podemos dizer que Bach conviveu muito com a morte. Ela foi sua companheira constante. Seus pais faleceram quando ele era menino. Sua primeira esposa morreu jovem. Ele sofreu a morte de seis de seus 20 filhos, incluindo a de um filho de seis meses antes de escrever a Cantata BVW 82.

Ich habe genug, Cantata BWV 82 de Bach, é comumente traduzida como “Estou contente” ou, mais literalmente, como “Já tive o suficiente”. No centro da cantata, há uma canção de ninar de doçura consoladora e benção, cuja melodia é incomparável. Na verdade, a Cantata 82 fornece um “manual” de como morrer tranquilamente, mapeando o caminho para o paraíso.

Em seu brilhante estudo de Bach, Música no Castelo do Céu, John Eliot Gardiner diz que a teologia da época encarava o mundo como “um hospício povoado por almas doentes cujos pecados apodrecem como furúnculos supurantes e excrementos amarelos”. Mas, no BWV 82, Bach radicalmente nos permite aspirar a sermos anjos. A morte não é transformação ou punição, é missão cumprida, é uma boa noite de sono e uma alegre viagem para casa.

O formato da cantata é simples: um cantor — Bach criou versões para soprano, mezzo-soprano e baixo-barítono — e três árias conectadas por dois recitativos curtos. Um pequeno conjunto de cordas o acompanha. Um oboé solo (ou flauta na versão soprano) gira melodias acrobáticas fazendo um sofisticado contraponto à linha vocal. Sobre as cordas suaves, a ária de abertura começa com o oboé ou flauta, introduzindo a frase melódica de cinco notas que carregará as palavras “Ich habe genug”.

E ele, Bach, passa a nos levar pela mão a algum lugar.

A ária de canção de ninar Schlummert ein, ihr matten Augen parece representar a morte como sono. Porém, aqui Bach produz um milagre musical. O sono torna-se não a morte, mas um sonho, uma visão fugaz da morte, da qual acordamos revigorados. É por isso que a ária final curta e alegre pode ser escandalosamente viva, paradoxalmente alegre.

Se as árias de Bach são verdadeiras meditações integradas a uma narrativa litúrgica, as de Handel são teatrais, servindo muito bem aos dramas que representavam. São um mundo à parte na música barroca, combinando belas melodias, expressividade dramática, virtuosismo vocal e profundidade emocional.

Este comentarista tem especial predileção pela ária Ombra mai fu, presente neste recital. É uma belíssima melodia na qual o protagonista canta dirigindo-se a um plátano (sombra amada), num momento de lirismo surreal e quase cômico. A ironia é a de um poderoso rei declarando amor a uma árvore. A música, porém, é tão sublime que transcende o contexto. A melodia parece flutuar, como se Handel tivesse capturado o próprio conceito de paz.

Ombra mai fù
di vegetabile,
cara ed amabile,
soave più.

(“Nunca houve sombra / de árvore, / tão querida e amável, / mais suave.”)

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Em caso de desgraça, de Georges Simenon

Em caso de desgraça, de Georges Simenon

Que livro bom! Mais um Simenon arrasador! Em caso de desgraça (1956) foi publicado no Brasil pela Nova Fronteira em 1984 e parece que nunca houve ume reedição. Coisas de nosso país. Hoje só pode ser encontrado em sebos.

Em uma Paris sombria, André Gobillot, um advogado de meia-idade bem-sucedido e casado, vê sua vida burguesa virar de cabeça para baixo quando Yvette, uma jovem garçonete de origem humilde, aparece em seu escritório. Acusada de assassinar acidentalmente um amante durante um roubo fracassado, Yvette desperta em Gobillot uma obsessão autodestrutiva que mistura desejo, compaixão e culpa. O caso se transforma em um jogo perigoso de poder e submissão, arrastando algumas pessoas junto.

É daquele jeitinho Simenon que a gente adora: prosa econômica e afiadíssima, frases curtas, descrições mínimas e diálogos que revelam mais pelo que escondem do que pelo que dizem. A narrativa e os ambientes são claustrofóbicos, concentrando-se na psicologia dos personagens e na atmosfera opressiva de um mundo onde ninguém é inocente.

A anti-heroína Yvette é não é de modo nenhum uma femme fatale tradicional, é antes vulnerável, infantil e profundamente humana. Ela tem um jovem apaixonado por ela, mas deixa-se envolver por Gobillot. Parece estar como um ioiô entre os dois. Sua fragilidade é uma mistura de desespero, ingenuidade e violência. Enquanto isso, o respeitável Gobillot não é um vilão, mas um homem fraco que todos veem como forte. Afinal é o advogado implacável. Sua obsessão por Yvette é, acima de tudo, uma fuga do vazio de sua vida. Ele defende Yvette — assim como defende muitos criminosos — não por justiça, mas por uma necessidade de sentir-se vitorioso.

Tudo é culpa. Ele, por desejá-la; ela, por existir como uma excrecência social. A Justiça é uma farsa, um palco onde os verdadeiros crimes (a desigualdade, o moralismo) não são julgados. E há a solidão. Yvette está isolada pela pobreza, Gobillot, pelo vazio de sua existência, a mulher de Gobillot busca companhia nas amigas e nos cerimoniais que seu bom casamento lhe proporciona. Não parece estar nem aí com Yvette. Sabe de tudo e suporta.

Yvette “não era bonita, não era inteligente, mas tinha algo que ele não encontrava em nenhum outro lugar: a coragem de ser desgraçada. E isso, Gobillot não perdoa”.

Recomendo. Ideal para fás de Dostoiévski e Camus.

Simenon nos anos 50

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O Infinito em um Junco, de Irene Vallejo

O Infinito em um Junco, de Irene Vallejo

Um excelente livro. Curiosamente, uma amiga comprou-o na Bamboletras e fez questão que eu o lesse. Sei lá como, ela sabia que me fazia falta. Em O Infinito em um Junco, da filósofa, filóloga e escritora espanhola Irene Vallejo, a evolução da sociedade e do livro estão profundamente entrelaçadas, são duas linhas quase paralelas que se juntam, às vezes se afastam, porém sempre se influenciam mutuamente. A obra traça uma história cultural do livro, desde os primórdios da escrita até a invenção da imprensa, mas dando frequentes saltos até a era digital e a fatos de nossa cultura contemporânea para certeiras analogias com as transformações sociais, políticas e tecnológicas. E, é fato, o livro é um objeto revolucionário.

Não costumo fazer resenhas de ensaios, então não me permitirei grandes liberdades. Vou tratar de organizar as ideias de forma cronológica e talvez burra: Vallejo parte da invenção da escrita (na Mesopotâmia e no Egito), de como ela surgiu de necessidades práticas (contabilidade, registros), mas logo se tornou veículo de literatura e poder. Os papiros egípcios e a biblioteca de Alexandria simbolizam o livro como instrumento importante para os poderosos dos impérios, mas também de resistência (como os textos salvos por copistas anônimos). Na época, poucos sabiam ler e a leitura era uma prática em voz alta, para grupos. Pasmem, a prática da leitura íntima é relativamente moderna.

Depois, passamos à Grécia e à primeira revolução. A democratização parcial da escrita na Grécia antiga (com o alfabeto fonético) permitiu que ideias como as de Homero ou Platão circulassem além das elites. Esta parte grega é deliciosa, cheia de fofocas do pessoal do Olimpo. Vallejo descreve como a Grécia migrou da tradição oral (Homero) para a escrita, criando os primeiros “best-sellers” da História (como os rolos de A Ilíada). A biblioteca de Alexandria, no Egito helenístico, tornou-se um santuário do saber grego, com obras copiadas e catalogadas em papiro. (Imaginem o quanto se perdeu dentre obras que não foram copiadas e recopiadas). O alfabeto grego (fonético) era mais acessível que os hieróglifos, permitindo que cidadãos comuns lessem — apesar de os livros ainda serem caros e raros. Vallejo relembra a famosa crítica de Sócrates à escrita: ele a via como uma “memória morta”, incapaz de dialogar e defendia a oratória. Eu estaria ralado, pois escrevo direitinho, converso melhor ainda, mas meus discursos são os de um idiota.

Já Roma era envergonhada de sua incultura e da alta cultura de seus colonizados, os gregos. Eles compravam gregos escravizados para ensinarem seus filhos, numa estranha inversão. O escravo era culto e tinha que ensinar seus filhos para que não crescessem ignorantes como os pais. Os romanos popularizaram o códice (páginas encadernadas, antepassado do livro moderno), mais prático que os rolos. Em Roma, surgiram as primeiras livrarias e editoras (escravos copistas trabalhavam em série). Alguns imperadores como Augusto usaram livros para propaganda, enquanto outros (como Calígula) os queimavam por medo de críticas. Ironia: apesar da repressão, obras com claros propósitos políticos, como Eneida, de Virgílio, sobreviveram como ferramentas de identidade nacional. E foi Roma quem copiou e preservou textos gregos como os de Aristóteles, mas também apagou outros — reciclando papiros para escrever documentos burocráticos.

A queda do Império Romano e a ascensão do cristianismo transformaram o livro em objetos praticamente sagrados, tendo os mosteiros como guardiões de textos clássicos. Enquanto a Europa feudal era fragmentada, os monges copistas mantiveram viva a herança escrita, demonstrando como o livro desafiou o colapso social. O islã teve um importante papel: enquanto o ocidente medieval perdia acesso a textos, bibliotecas como a de Córdoba — a da Espanha, claro — preservaram obras gregas e romanas.

Vallejo descreve como a sociedade pós-feudal — com a burguesia urbana e as universidades, com Gutenberg e a imprensa a partir do século XV — demandava livros acessíveis. A imprensa acelerou a Reforma Protestante, a ciência e as revoluções políticas. A industrialização barateou o papel, e o livro virou símbolo de ascensão social. Lembrem dos romances de Dickens, dos folhetins.

O Infinito em um Junco vai até a era digital. Como em Alexandria e em Borges, há hoje uma biblioteca infinita (Google), mas com riscos de monopolização e desinformação. Ela também enfatiza que, sem a obsessão greco-romana pelo livro, o surgimento da literatura ocidental atrasaria sua chegada. A dualidade entre preservação e destruição, elitismo e popularização, ecoa até hoje em debates sobre acesso ao conhecimento. Obviamente, Vallejo vive cercada por livros e faz a apologia do livro físico como objeto de afeto, resistindo bravamente à lógica do descartável. Ela comprova facilmente que a história do livro é um espelho da humanidade — com ambições, medos e reviravoltas. Cada avanço social — democracia, educação massiva — dependeu do livro e cada crise — autoritarismos, colonialismo — tentou controlá-lo.

Um baita e envolvente livro. Recomendo muitíssimo. Tem na Bamboletras.

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Virei antissemita

Virei antissemita

Um cara muito doido — mas muito doido! –, há alguns dias, me chamou de antissemita.

Vou me vingar da maneira mais cruel que vocês podem imaginar, vou deixar para lá. Em lugar de responder, vou ouvir Mendelssohn, ler Kafka, Bellow e Clarice, abrir meu livro de Chagall, ver filmes de Billy Wilder e Polanski, falar com a Elena.

Na semana que vem, conto tudo pro meu terapeuta freudiano.

P.S. — A frase que inicia o segundo parágrafo é de Steinbeck.

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Citação III (Goran Bregović)

Citação III (Goran Bregović)

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Citação II (James Joyce)

Citação II (James Joyce)

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Citação I (José Paulo Paes)

Citação I (José Paulo Paes)

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Bloomsday: Nem Jesus Cristo tem um dia no calendário. Leopold Bloom tem

Bloomsday: Nem Jesus Cristo tem um dia no calendário. Leopold Bloom tem

Por Marcelo Costa, na Revista Bula

Leopold Bloom acorda todo dia 16 de junho. Não importa o ano. Nem importa o mundo. Pode haver guerra, ruína, Wi-Fi, greve dos transportes, um eclipse total ou um desfile de patos; Bloom acorda. Com fome, quase sempre. Uma fome serena, doméstica, trêmula de humanidade — a mesma que fez Joyce prender aquele homem comum no labirinto de vinte e quatro horas eternas. Sim, o tempo não é de verdade. O tempo é Dublin fingindo que é um dia só. O dia em que tudo acontece, e nada acontece, e o leitor se afoga no tédio vivo de existir. Bloom vai ao banheiro. Pensa em rins. Vai ao mercado. Lembra de Molly. Compra limões. Evita lembranças. Sorri para ninguém.

E na cidade real, do lado de fora do livro, pessoas se fantasiam de passado para perseguir uma ficção que os ultrapassou. Gravatas tortas, suspensórios anacrônicos, vestidos com cheiro de brechó e uma vontade insaciável de pertencimento. Em frente ao Sweny’s Pharmacy, onde não se vendem mais remédios, só relíquias — o sabonete de limão, a sombra de um parágrafo, o pó da linguagem —, um grupo lê em voz alta um trecho que talvez ninguém entenda por completo. Mas não é isso o amor? Repetir aquilo que nos escapa, como quem aprende uma música de ouvido? O Bloomsday é isso: um ritual que nunca cura, mas também nunca adoece de vez.

Ulysses
Ulysses, de James Joyce (Companhia das Letras, 848 páginas, tradução de Caetano W. Galindo)
Um senhor com chapéu-coco declama a lista de compras de Bloom como quem recita um poema sagrado. Ao lado, uma mulher de olhos azuis como uma promessa esquecida segura um exemplar gasto de “Ulysses”, cheio de notas à margem — algumas datadas, outras apagadas. Em Dublin, neste dia, todo mundo fala com livros. O sotaque da língua inglesa parece curvar-se, arrastado, como se cada sílaba carregasse pedras nos bolsos. Um turista francês, perdido e feliz, pergunta onde fica a Martello Tower. Alguém responde com um gesto largo, como se apontasse para um sonho.

E há isso: o Bloomsday não é uma celebração. É uma insistência. Uma recusa em deixar morrer um dia que nunca existiu de verdade. Joyce, esse irlandês que saiu da Irlanda para poder escrever sobre ela, talvez estivesse rindo agora. Ou não. Talvez esteja calado, observando de algum lugar onde a ironia já não importa. Criar um feriado para um personagem que passa o dia vagando pelas ruas, distraído, obsessivo, frágil, é como construir uma catedral para a hesitação. E as pessoas entram, comovidas.

Às vezes, há uma encenação no pub. Um Bloom encenado que coça a barba e observa um mundo que se faz de século 20. Mulheres imitam Molly sem pudor. Ou com todo o pudor possível. Depende do vinho. Depende da memória. Há quem chore. Há quem durma. Joyce escreveu um livro ilegível para que ninguém o lesse sozinho. E ele sabia. Cada frase é um quebra-mapa. Cada cena uma dobra no tempo. Como se a narrativa se recusasse a seguir a lógica dos homens. Dublin torna-se um tabuleiro. Uma cidade que se interpreta a si mesma, em voz alta.

Na esquina da Eccles Street, onde Bloom morava, já não mora ninguém. A casa 7 foi demolida. No lugar, uma parede. Uma plaquinha. Um aviso de que algo já foi ali. E não é isso, também, o que somos todos? Placas em carne viva. Avisos de que algo já esteve aqui. Cada leitor de “Ulysses” é um arqueólogo emocional. Tenta decifrar uma frase, encontra o espelho. Tenta seguir a trama, descobre um atalho. E tropeça. E volta. E não entende. E insiste. Porque o livro não está interessado em ser entendido. Ele quer ser vivido, como uma febre lenta, uma ressaca sem bebida, um sonho que gruda nos dedos.

James Joyce escreveu o dia mais longo da literatura com a crueldade amorosa de quem sabia que ninguém escaparia dele. Nem os personagens. Nem os leitores. Nem a própria cidade. A cidade agora se contorce para caber no molde do livro. Como se a ficção exigisse da realidade um reencontro impossível. Mas é isso que o Bloomsday pede: que o mundo repita o que já não pode ser vivido. Uma coreografia do esquecimento. Um teatro íntimo. Um delírio coletivo que não se pretende lúcido.

Alguém toca flauta. Um grupo improvisa um almoço à moda de 1904. A manteiga derrete como naquele parágrafo em que ela não tem nenhuma importância, e por isso é essencial. A chuva ameaça, como deve. Joyce detestava explicações. Então ninguém explica nada. Apenas fazem. Caminham. Leem. Escrevem à mão. Vestem-se de Bloom. De Stephen Dedalus. De sombras. De futuros passados. Uma mulher com olhos de vidro recita o monólogo de Molly na beira do Liffey. Quase sussurrando. Como se fosse um segredo que se diz por amor ao silêncio.

Em outros cantos do mundo, outras cidades tentam o mesmo. Nova York, Trieste, São Paulo, Melbourne. Réplicas involuntárias. Miniaturas sentimentais. O Bloomsday virou um gesto. Uma dobra do calendário. Um dia sem explicação oficial. Não há presentes. Nem hino. Nem herói. Apenas Bloom — esse homem que pensa demais, que sente demais, que anda demais. Ele que não faz nada de épico, nada de cinematográfico. Mas que carrega consigo o peso exato do dia. Como qualquer um de nós. Só que escrito.

E talvez seja isso que move os leitores de Joyce: a ideia de que há grandeza no banal. De que a literatura pode ser tão árdua quanto respirar. De que entender é uma tarefa menor diante da experiência. Porque Bloom, Molly, Stephen — todos eles são o que resta quando a história desiste de nos salvar. Não há redenção em “Ulysses”. Há apenas o tempo. O corpo. O pensamento. A solidão desfiada em frases longas, sujas, belas, impossíveis.

Dizem que há algo de religioso no Bloomsday. Mas é um culto sem dogmas. Uma fé em ruínas. As pessoas não vêm rezar. Vêm participar do abismo. Um abismo cheio de palavras. E ninguém precisa saltar. Basta ler. Ou fingir que lê. Ou fingir que entende. E continuar andando. Pelas ruas que não mudam. Pelos cafés que já não existem. Pelas livrarias que vendem mais chaveiros do que livros. Não importa. Porque há algo em repetir esse gesto — de acordar com Bloom, de seguir seus passos, de habitar esse dia como se fosse real — que cura sem remédio.

Num banco de praça, um garoto de quinze anos tenta ler a primeira página. Franze a testa. Olha ao redor. Fecha o livro. Depois abre de novo. E ri. Talvez tenha entendido algo que nenhum professor saberia ensinar. Talvez só tenha gostado da palavra “yes”. Porque “Ulysses” termina assim. Com esse sim que é corpo, memória, excesso. Um sim que não explica. Que não justifica. Que apenas diz: estou aqui. Estou vivo. E isso basta.

Hoje é 16 de junho. E, mais uma vez, Bloom está entre nós. Ele respira onde não há fôlego. Ele anda onde não há mapa. Ele pensa como quem não sabe se volta para casa ou se já está em casa. Dublin se dobra em sua homenagem — não como quem reverencia, mas como quem se confunde. Porque Bloom não é personagem. É presença. Uma presença que atravessa o tempo, rindo baixo. Como se soubesse que todos nós, no fundo, só queríamos encontrar um dia que fizesse sentido.

E nunca encontramos. Mas seguimos procurando.

James Joyce e Nora Barnacle, no dia de seu casamento, Londres, 1931

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Chega de elogio!

Eu estava pronto para deixar de seguir a Revista Bula. Os caras só elogiavam e elogiavam livros e filmes. Mas agora apareceram artigos como “7 livros que não valem nem como porta-copo” e “6 livros que você vai ter vontade de devolver ao autor”.

Agora sim!

Uma vez, no Sul Vinte Um, fiz uma lista de “Dez livros para morrer antes de ler”. Adoro!

Falta falar mal dos filmes ruins !!!!

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Ridendo castigat mores

Passei alguns dias procurando sem lembrar uma expressão latina. Ontem, ouvindo o ensaio do Flavio Adonis e da Elena Romanov antes do show aqui na Livraria Bamboletras, a coisa me veio: “Ridendo castigat mores”.

Tudo por causa do “comediante” Léo Lins, assunto quase passado, e a expressão é “Ridendo castigat mores” que pode ser traduzida como “Rindo, corrige-se os costumes”. É uma máxima que sintetiza o poder da sátira e do humor como ferramentas de crítica social e moral, o que Lins está a quilômetros de fazer.

Atribuída ao poeta romano Horácio (século I a.C.), ela defende a ideia de que a comédia e a ironia poderiam ser mais eficazes do que sermões para apontar vícios humanos. Popularizada por Molière, que usava o teatro para ridicularizar hipocrisias da sociedade, tornou-se um lema do gênero cômico-satírico.

A expressão sugere que o riso pode expor absurdos sem ser agressivo, assim como questionar normas de forma indireta (e por isso, menos censurável) — como fazem As Viagens de Gulliver ou Dom Quixote, por exemplo.

Faço uma mandinga ateia para que não venha aqui aquela amiga da direita lacradora, pelamor. Estou farto dela. Detesto dar indiretas, mas certas pessoas…

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Stendhal

Stendhal

Claro, que hoje, Dia dos Namorados, vocês esperavam um texto como este:

Li hoje que Stendhal (1783-1842) disse a sua família que ia para Paris a fim de escrever comédias e ser um Dom Juan. Era uma piada, certamente. Não foi nenhuma das duas coisas. Aliás, detestou os parisienses, viajou a vários países, fixando-se mais na Itália.

Devia ser um sujeito engraçado, como comprova o hilariante capítulo da batalha em A Cartuxa de Parma e várias outras partes do romance. (Nossa, A Cartuxa é uma aula extraordinária de política).

O escritor também devia ter talento para falar, pois ditava seus livros quase sem corrigi-los. Já a parte do Dom Juan só poderia ser outra piada: Stendhal era muito baixinho, gordo e desajeitado. Não havia como.

Stendhal é um dos pseudônimos de Henri Beyle, o baixinho gordo. Ele tinha outros 170 pseudônimos e considerava seu estilo um romantismo sui generis. Ele estava certo. Sua glória foi póstuma. Em vida, foi um escritor de escritores. Balzac, Mérimée e outros sabiam quem era o campeão. Stendhal dizia que só seria grande em 1900. Acertou novamente.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXXII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXXII)

Todas as livrarias devem estar cheias de histórias bonitas. Vejam o que aconteceu hoje pela manhã aqui na Bamboletras. Isto nunca vai acontecer na Amazon.

Veio um rapaz querendo comprar um livro para sua namorada. Pediu uma sugestão dentre os livros da Annie Ernaux. Eu lhe apresentei rapidamente os que tínhamos (quase todos) e ele se interessou claramente por um deles.

E me contou que ontem sua namorada (ou esposa, o que sei eu) narrou-lhe uma história passada na sua pré-adolescência em Santo Ângelo (RS). Ela tinha uma amiguinha que morava numa fazenda. Nos aniversários, muita gente era convidada, mas havia três ou quatro amigas preferidas que ficavam mais uns dois ou três dias para brincar na fazenda. Ela sempre ficava. Mas, um dia, o convite não foi extensivo a ela. Ela contou a história e chorou, voltando àqueles dias.

O livro pelo qual o rapaz se interessou foi “Memória de Menina”.

(Livraria Bamboletras, na Venâncio, 113).

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Thomas Mann e Herbert Caro

Thomas Mann e Herbert Caro

Além da mãe brasileira, Thomas Mann teve a sorte de contar com Herbert Caro traduzindo seus livros no Brasil. Se “A Montanha Mágica” tem o formato de uma composição musical, como disse Adorno e o próprio Mann, seu tradutor no Brasil era um crítico musical de primeira linha. Sorte de Mann ter achado alguém “compreensivo”. (O Dr. Caro usava “compreensivo” no sentido de quem entendia as coisas com clareza).

Nos anos 70-80, conversava bastante com ele e nossas conversas eram sobre música e nosso amado Vermeer. Os encontros eram aos sábados pela manhã numa loja de discos de Porto Alegre. Há coisas que a gente perde por ser jovem, né? Ele foi o lendário tradutor de Mann, Hesse, Canetti e até Steinbeck. Mas pouco falamos sobre suas traduções. A música tomava quase todo espaço.

P.S. — Eu não sabia que hoje é o aniversário de Thomas Mann, 150 anos de nascimento.

Herbert Caro

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXXI)

Hoje teremos música à noite, mas não me sai da cabeça a visita que recebi pela manhã da parte de uma professora aposentada.

Há alguns dias, ela tinha me enviado um Whats pedindo livros infantis que tratassem de abuso sexual na infância. Pesquisamos e encontramos alguns. Ela escolheu dois e hoje veio buscá-los.

Ficamos conversando bastante — ela comprou também um Oblómov — e depois eu perguntei:

— Posso te perguntar porque quiseste estes livros infantis, ou seja, livros sobre este tema?

— É que eu faço um trabalho voluntário na Vila X no contraturno do horário escolar e o tema deste mês é o abuso. Preciso dos livros para me inspirar. No ano passado, já fizemos isso. A coisa teve resultados…

— Resultados?

— Sim, duas denúncias. Uma mãe expulsou o padrasto quando a criança teve coragem de contar pra ela o que acontecia e outra disse dentro da sala de aula que seu avô fazia aquelas coisas feias com ela. O crime é quase sempre cometido por gente de dentro de casa. Como estudei a respeito, posso te dizer que é assim em 68% dos casos. E não tem relação com classe social.

Acho que posso parar neste ponto.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXX)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXX)

Hoje, veio uma turma de uma escola aqui na Bamboletras. Eles tinham 10 e 11 anos e eram de um colégio particular. Vieram de ônibus a fim de aprenderem a andar no transporte público. As crianças estavam acompanhadas de duas professoras bem legais e de uma menina um pouco mais velha que parecia uma monitora. Deu tudo muito certo. Eles se comportaram, fizeram carinho no Max, compraram livros, lancharam no nosso pátio e se despediram.

Lembrei de minhas turmas escolares. Tenho 67, então lembrei de 57 anos atrás. Havia o colega chato, o agitado, o com problemas, o deprimido, o nota-dez, o que não queria nada com nada, etc. Pensando no passado, ouso me atribuir o papel de nota-dez bagunceiro, uma figura não tão comum.

Os papéis estavam claros na turma. O chato queria só livros de adultos — uma das professoras cortou o “Ainda estou aqui” que ele queria — e o deprimido não queria nenhum livro. Foram os que não compraram. Eu não poderia ser professor de alunos dessa idade. Estava louco pra chacoalhar o deprimido. Ele queria um livro de “Mistério”. Trouxe 3 e ele nem olhou, ficou de braços cruzados. O agitado com problemas só queria DVDs — sim, temos alguns de música e ele encasquetou que ia levar os quartetos de Villa-Lobos… A professora interveio. As duas meninas notas dez compraram livros adequados, mas queriam mesmo era saber o preço de “Tudo sobre o amor”, da bell hooks. Para o que não queria saber de nada sugeri um livro curto. Saquei na hora qual era a dele.

Foi muito, muito bom recebê-los. O Max ficou tímido com tanta gente perguntando sobre sua idade, nome e passando-lhe a mão. Acho que ele se sentiu desrespeitado. Vá entender os felinos.

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Daniel Deronda, de George Eliot

Daniel Deronda, de George Eliot

Daniel Deronda (1876) foi publicado no Brasil pela Paz e Terra em 1997. Mesmo sendo um livro de George Eliot (1819-1880) — autora daquele que é, para a maioria, o melhor livro da literatura inglesa, o notável Middlemarch (1871-2) –, não deve ter vendido nada e caiu na Grande Vala Nacional dos Livros Mortos, a qual é lotada de joias. Deronda é o último romance de Eliot, que parou de escrever após a morte de seu marido-amante George Henry Lewes. Aos desavisados, alerto que George Eliot era uma mulher, de nome oficial Mary Ann Evans.

O livro, de 700 páginas na edição brasileira, tem mais de 1000 nas edições com tamanho de letra normal, e é lento, meditativo, com longas passagens repletas de pensamentos e argumentações. É confortável de ler. Não é Tolstói mas traz enormes problemas morais que os personagens se debatem para resolver. Eliot gostava de unir narrativas aparentemente desconexas e repete o feito neste livro: há a tragédia aristocrática de Gwendolen Harleth e a busca identitária de Daniel Deronda, um jovem que foi criado por um “tio” e que desconhece suas origens. Mais do que um ousado romance social, a obra é uma exploração filosófica sobre culpa, redenção e a força do legado cultural.

Então, no primeiro dos eixos está Gwendolen, a bela heroína antiética e egoísta, cujo casamento falido com o sádico Grandcourt leva-a a um desespero moral. Sua vida é descrita com puro realismo psicológico, mostrando o funcionamento da opressão feminina numa sociedade que a ensinou a ser ornamental, mas não humana. Já Daniel Deronda é o protagonista enigmático, criado como um aristocrata inglês, mas atraído pelo misticismo judaico após salvar a judia Mirah Lapidoth. Sua história é uma espécie de alegoria, vinculando a desconhecida identidade a uma intuição de dever coletivo. A assimetria de ambos os personagens é justamente o cerne do livro: Eliot contrasta o vazio da elite britânica com a riqueza da tradição judaica, então marginalizada.

Falar elogiosamente em judaísmo e sionismo em dias de real genocídio palestino é quase proibido, mas neste romance, escrito há 149 anos atrás, uma autora não-judia retratava pela primeira vez na literatura inglesa a cultura judaica com profundidade e respeito. O sionismo de Daniel (antes mesmo do termo existir) e o sofrimento de Mordecai, um intelectual judeu — bem chato, aliás –, refletem o debate sobre a diáspora e a terra prometida. Eliot sugere que o pertencimento, a herança e a escolha poderiam ser antídotos para a superficialidade.

Enquanto Daniel encontra o judaísmo, Gwendolen é a vítima de uma sociedade que a educou para ser frívola. Seu casamento com Grandcourt (um verdadeiro vilão que se comporta com típico hômi machista) é a perfeita representação do preço pago pela dependência feminina. Sua jornada — ou sua tentativa — de ir da arrogância para a humildade é das mais comoventes. “Eu vejo o que sou… Uma mulher que errou em tudo”.

A texto é denso, quase filosófico, mas seus diálogos afiados antecipam claramente o modernismo. Li que, na época da publicação, os judeus agradeceram, os críticos acusaram o livro de didático e o público não gostou. Mas hoje, Daniel Deronda é visto como um precursor do romance multicultural e do feminismo literário. Mesmo com suas imperfeições e com o chatíssimo Mordecai, é efetivamente um romance à frente de seu tempo.

Por que é imperfeito? A trama de Daniel e Mordecai pode parecer forçada, e o final de Gwendolen é abrupto. Mas a ousadia em discutir etnia, gênero e espiritualidade num período de nacionalismos estreitos o torna essencial. Como escreveu o crítico Harold Bloom: “Eliot não quis escrever um grande romance; quis escrever um livro que mudasse consciências”. Daniel Deronda é uma espécie de farol torto escondido no cânone vitoriano.

Sobre os judeus do romance

O amante de Eliot, o jornalista e filósofo George Henry Lewes, previra: “O elemento judaico não vai satisfazer ninguém”. O tema é bastante incomum para a época: a posição dos judeus na sociedade britânica e europeia. Deronda é um jovem aristocrata idealista que resgata uma jovem judia e, em suas tentativas de ajudá-la a encontrar sua família, acaba se envolvendo cada vez mais na comunidade judaica e na efervescência da política sionista inicial.

A aparição deles no livro foi tão indesejada para alguns dos leitores quanto para alguns dos personagens. Enquanto Lady Mallinger lamenta o fato de Daniel “enlouquecer dessa forma pelos judeus”, um amigo de Eliot, John Blackwood, observou: “Os judeus deveriam ser as pessoas mais interessantes do mundo, mas nem mesmo sua caneta mágica consegue torná-los imediatamente um elemento popular em um romance”. Muitos anos depois, um crítico alucinado pediu que as seções judaicas do romance fossem completamente eliminadas, criando um romance chamado Gwendolen Harleth, em homenagem à gentia fatalmente egocêntrica que se apaixona por Deronda.

Falemos sério, um Daniel Deronda sem judeus teria sido impossível – mas parece que as pessoas continuaram tentando. Li que na elogiada adaptação da BBC de 2002 , o foco – além de uma breve cena da judia Mirah às margens do Tâmisa – é o romance entre Daniel e Gwendolen.

Por que Eliot se interessava tanto pela vida judaica? Ela foi criada como anglicana, mas desde cedo interessou-se pela história das religiões e, aos vinte e poucos anos, se integrou a um grupo de livres-pensadores em questões políticas e religiosas. A diversidade e a mistura de raças também era um assunto de seu interesse após a publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin.

Na década de 1860, Eliot conheceu Emanuel Deutsch, um estudioso judeu e um dos primeiros sionistas. O personagem Mordecai — o estudioso e místico judeu — parece ter sido parcialmente baseado nele. Eliot escreveu a Harriet Beecher Stowe após a publicação de Deronda que “para com os hebreus, nós, ocidentais, que fomos criados no cristianismo, temos uma dívida peculiar e, quer reconheçamos ou não, uma especial profundidade de comunhão em sentimentos religiosos e morais”. Ela permaneceu interessada no judaísmo ao longo de sua vida, publicando um ensaio contra o antissemitismo três anos depois.

O que Daniel Deronda nos mostra sobre o lugar dos judeus na Grã-Bretanha no final do século XIX? Primeiro, que eles eram impopulares, sofrendo preconceito mesmo durante o governo do judeu Benjamin Disraeli. Eliot faz questão de nos mostrar o que ela considera a visão típica dos judeus — desde as classes altas (que se referem arrogantemente a Mirah como uma “pequena judia”), às classes médias (a Sra. Meyrick imediatamente presume que Mirah possa ter “pensamentos malignos”), até as classes trabalhadoras (cena do homem no bar).

Mas Eliot não está isenta de preconceitos contra um certo tipo de judeu. Ela presume que o leitor não se identificará com a família Cohen, chefiada por dono de uma loja de penhores, e até se desculpa no último capítulo por permitir que eles comparecessem a um determinado casamento. Enquanto isso, sua representação da inocente Mirah oscila para o outro lado. Ela é tão santa que tem nuances de bom selvagem. É tão infantil que, quando finalmente encontra um romance, este soa estranho. Achei muito esquisito quando ela beijou…

No entanto, Mordecai, o intelectual visionário que encanta Daniel, é um personagem complexo com lados simpáticos e antipáticos, e revela o fascínio da autora pelos detalhes do judaísmo, suas práticas religiosas e cultura. O fato de Daniel se tornar discípulo de Mordecai e concordar em continuar seu trabalho de busca de uma pátria para os judeus após sua morte — uma ideia tão desconcertante para os leitores de Eliot quanto para a maioria dos personagens do livro — também demonstra um real comprometimento da autora com o tema.

Hoje, o sionismo está manchado pelo governo do direitista Benjamin Netanyahu e seu apartheid. Já Mordecai é o judeu errante, eternamente estrangeiro em terra estrangeira, nunca em casa, “um povo que conservou e ampliou seu estoque espiritual justamente na época em que era caçado com um ódio tão feroz quanto os incêndios florestais que afugentam os animais de seus esconderijos”. A visão otimista de Mordecai de um futuro Israel como “uma nova Judeia, situada entre o Oriente e o Ocidente — uma aliança de reconciliação — um ponto de parada para inimizades, um território neutro para o Oriente” não pode deixar de ser lida como sombriamente irônica hoje.

George Eliot

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