Antes de abrir a livraria, respondendo a alguns contatos:
— Olá! Bom dia, tudo bem? 😊 Eu me chamo X., sou escritora/jornalista e estou à frente do projeto Mapa das Livrarias de Rua de Porto Alegre, junto com minha amiga, a artista visual X. Vocês aceitam responder a 2 perguntas para que eu possa incluir no Mapa? Obrigada!
— Boa tarde! Sim, claro!
— Obrigada por toparem:
Perguntas:
1 – Qual o tempo de existência da livraria?
2 – Se a Bambo fosse indicar um livro ao seus leitores, aquele que melhor lhe representa, qual seria?
— Respostas:
1. A livraria tem 30 anos.
2. Bem, os livros que nós mais vendemos nos últimos quatro anos foram “Os Supridores”, “O Infinito em um Junco”, “Manual da Faxineira”, “O Avesso da Pele”, “Pessoas Decentes”, “Mas em que mundo tu vive”, “O Mestre e Margarida” e “A Contagem dos Sonhos”. Talvez o somatório destes livros seja como os leitores nos veem. E somos orgulhosos desta lista.
Alguns de vocês sabem que leio livros em voz alta para a Elena Romanov. Faço-o sempre à noite, desde que não esteja alcoolizado — coisa raríssima atualmente — ou que o Inter não tenha perdido — fato cada vez mais rotineiro.
Mas o que interessa é que ontem terminei de ler o primeiro Machado de Assis da moça. Não li Helena, claro, fui direto a Dom Casmurro. De maneira geral, ela gostou dos capítulos curtos, reclamava quando eu decidia parar e hoje de manhã disse que era tudo muito triste. É mesmo. Pessoalmente, li o livro pela terceira vez e, também pela terceira vez, me surpreendi que uma coisa levada naquele tom de conversa possa esconder tamanha tristeza.
Mas acho que ela não se importou com isso. Afinal, os russos são os mestres da desgraça. Lembro que uma vez ela me mostrou uma camiseta russa onde havia um Dostoiévski ornamentado por uma frese mais ou menos assim: “Se a sua vida está uma m., se você não vê perspectivas, se não há um meio de sair do buraco, abra um romance russo: lá, tudo estará pior.”
Eu estava apenas ouvindo um vídeo no YouTube sobre literatura clássica. O tema era Dom Quixote. Foi quando olhei para a tela e vi que as legendas automáticas estavam não somente ligadas, mas escrevendo que o escudeiro chamava-se San Chupança.
Há poucos nordestinos no RS, o que apenas comprova que eles são espertos. Deve haver menos ainda no PR e em SC, o que garante a total genialidade daquele povo.
Apesar disto, sempre me relacionei muito bem com os nordestinos com que cruzei. Tudo começou com o falecido escritor pernambucano Fernando Monteiro. Não lembro bem dos motivos pelos quais começamos a falar, mas foi antes das redes sociais, por carta mesmo.
Depois vieram outros. Baianos, alagoanos, cearenses, outros pernambucanos. Eles sorriem muito mais que o gaúcho médio e, quando estão próximos, me torno muito mais sorridente por efeito Pavlov. E me sinto bem. O baiano Franciel Cruz diz que eu sou gaúcho mas não pratico. (Gostaria de pensar que ele faz referência ao fato de eu não ser conservador e todo o pacote envolvido, mas ele certamente se refere ao fato de eu não apreciar dar o rabo).
Bem, mas o caso é que não vi ainda “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho. É curioso, ele é um cara com quem eu me daria certamente bem, porém é um tipo diferente de nordestino. Ele sorri muito pouco. É um nordestino seco, assim parece. Mas adoro seus filmes, com destaque para “O som ao redor”. Acho que ninguém faz comentários melhores sobre as relações entre classes no Brasil.
Tenho que ir ver logo o filme. Esta semana, sem falta.
A Elena chama o Max de gato-cachorro. Não sei se foram seus dias de infância na rua — ele foi tirado da rua com um mês de vida, segundo a veterinária –, o fato é que o bicho tem lá suas peculiaridades. Adora ficar de barriga pra cima para receber agrados, é muito sociável — talvez em excesso — e, dentre outras coisas, atende quando eu ou a Elena chamamos. Quando chamado, ou ele vem ou mia a fim de que o localizemos. Ah, mais: quando está em casa, fica sempre perto de mim, é minha sombra. É o gato-cachorro.
No seu dia a dia, ele costuma passar as manhãs e as tardes no pátio. Fica em casa à noite e no horário das refeições. Aliás, quando é hora de comer, ele reclama, evitando qualquer atraso nosso.
Mas, ontem à tarde, tivemos uma baita tempestade em Porto Alegre. Quando começou a ventania, estávamos vendo um filme e ele estava no pátio. Torcendo para que não estivesse escalando uma árvore, desci correndo para tirá-lo do pátio. Gritei por seu nome e vi algo extraordinário.
A velocidade que ele conseguiu imprimir no corredor do pátio a fim de voltar para a casa foi algo tão incrível que, quando entrou em casa, ele não conseguiu completar uma curva e foi com tudo contra a parede. É óbvio que tive um ataque de riso antes que ficássemos sem luz, pra variar.
Ao menos ele tem medo de uma coisa, de tempestades.
O erotismo é a sombra que dança na parede. É o suspense no cinema, não a explosão na tela. É o toque que não se completa, a palavra que fica pairando no ar, o olhar que demora um segundo a mais do que o socialmente permitido. Ele habita o território fértil da imaginação, do quase, onde todos os sentidos são aguçados e a pele se torna um radar à procura de um sinal.
Ele nasce do espaço que vibra entre duas peles, do desejo que ainda não encontrou resposta e por isso cresce, tornando-se linguagem. É o território da imaginação, onde o corpo é menos geografia e mais promessa.
O sexo é a palavra dita em voz alta, é a realização do que o erotismo anuncia. É a poesia em ação, o verbo que se materializa. É quando o pensamento se curva diante da matéria, quando o imaginado se torna palpável e o corpo ganha voz. É o momento em que a dança das sombras se transforma no abraço dos corpos. O sexo, quando tocado pela mão do erotismo, não é mero ato mecânico; é uma conversa profunda sem palavras. É a pele que lê a pele, o ritmo que se encontra, o diálogo de respirações e batidas cardíacas aceleradas. (Acabo de lembrar do que disse Keith Richards sobre os orgasmos de idosos como nós: nunca se sabe, pode ser um infarto)
O erotismo sem corpo é a abstração; o sexo sem imaginação é burocrático. No encontro entre erotismo e sexo, o tempo é esquecido, o mundo se estreita, e duas existências — por um instante — se percebem. E, por isso mesmo, tudo torna-se profundamente humano.
— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio um leitor no final dos anos 70.
O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:
— Foi porque eu morri. Alguns escritores são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma delas me pegou, fazer o quê?
— Uma boa morte, pelo visto.
— Meu filho, não existe morte boa.
Comecemos pelo menos importante. Não sei o que Dyonelio Machado (1895-1985) cometeu contra a Editora Todavia para merecer uma capa tão idiota. Vejam a já velha capa da Planeta (abaixo), muito mais adequada. Mas hoje o que está disponível é a edição da Todavaia, editora que adoro, mas que desata vez merece… Vaias. Publicado em 1935, Os Ratos é uma das obras mais intensas e originais da literatura brasileira. É pra deixar e pânico qualquer pessoa dotada de empatia. Escrito em plena era Vargas, o romance abandona o tom épico e regionalista de boa parte da produção da época para mergulhar no labirinto mental de um homem comum — e endividado. É um romance urbano e, embora o autor não cite a cidade onde Naziazeno transita, sabemos que ele está em Porto Alegre. Aliás, dia desses aconteceu uma curiosa iniciativa. Um guia levou um grupo de pessoas pelos Caminhos de Naziazeno. Não pude ir, infelizmente. É que Dyonelio cita ruas e esquinas a cada momento. Todo o seu trajeto é muito claro para quem conhece o centro de nossa pobre cidade, tão castigada por nosso prefeito bolsonarista.
O protagonista, Naziazeno Barbosa, passa um único dia tentando conseguir dinheiro para pagar o leiteiro. Valor da dívida: 53 mil-réis. Tentei fazer uma conversão para os dias de hoje, 90 anos depois, e deu aproximadamente R$ 300,00. A partir deste ponto, Dyonélio constrói um retrato devastador da miséria e da culpa, conduzido por uma escrita tensa, febril, claustrofóbica. Eu tinha lido o romance ainda aluno do Colégio Estadual Júlio de Castilhos e, naquele tempo, não fiquei muito impressionado com o livro. Hoje, aos 68 anos, sua verossimilhança e a angústia de Naziazeno tomaram tais proporções que o romance foi-me difícil de suportar. E de largar.
O realismo de Dyonelio — influenciado pela psicanálise — faz de Os Ratos um romance de avassalador tumulto interior: pensamentos se embaralham, a razão se desfaz, o desespero toma forma. Uma das cenas mais marcantes nesta leitura é o momento em que o protagonista consegue fazer com que 5 mil-réis se tornem 75. Ele consegue a proeza jogando na roleta — permitida àquela época. Mas está tão mobilizado pelo desespero que nem se dá conta de que já tem os 53 mil-réis devidos ao leiteiro. Ele segue jogando até perder quase tudo. Age como o Alexei Ivanovich de O Jogador de Dostoiévski.
Além de médico psiquiatra, Dyonelio era do Partido Comunista Brasileiro. Foi até deputado constituinte, mas logo o partido foi posto novamente na ilegalidade e Dyonelio foi cassado junto com outros comunistas como Júlio Teixeira e Pinheiro Machado. Citei este fato para sair da área meramente psicológica e dizer que, sob esta, há uma crítica ao capitalismo e às humilhações sociais que ele impõe: em Os Ratos há o homem reduzido à dívida, o tempo medido pelo dinheiro, a dignidade corroída pela espera. O título é uma referência ao pesadelo do protagonista da história que sonha que ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.
Até os anos 60, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados, “passando a régua”. Ou deixava-se a porta aberta para que o leiteiro deixasse o produto na cozinha. O romance inicia com o ultimato do leiteiro. Ele suspenderá o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Ao final do dia, mesmo o descanso de Naziazeno não é verdadeiro. Seu triste papel do protagonista no mundo é contado sem sentimentalismos pelo texto de Dyonelio, altamente coloquial.
Dyonélio Machado escreveu Os Ratos em vinte noites, logo após chegar do trabalho como médico. Dormiu muito pouco naqueles dias e, cedo, deixava o que escrevera à noite para sua mulher fazer a primeira revisão. “Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria do Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Erico Verissimo. Ela datilografava o trabalho. Então, num dia, eu levava algumas folhas manuscritas e pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’ Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu descobri que tinha um romance”.
Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa, um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no caos social em que vive.
Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia, de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoiévski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e foram presos em meados dos anos 30.
Os Ratos é um livro sobre o Brasil — mas também sobre qualquer lugar em que a miséria se disfarce de normalidade. Sua modernidade é tamanha que, quase um século depois, ainda fala de nós.
László Krasznahorkai nasceu em 1954 em Gyula, uma cidade provinciana da Hungria, durante a era soviética. Publicou seu primeiro romance, Satantango, em 1985, seguido por A Melancolia da Resistência (1989), Guerra e Guerra (1999) e O retorno do barão de Wenckheim (2016). Esses romances, com seus gigantescos acréscimos de linguagem, erudição global (ele está tão familiarizado com os clássicos da filosofia budista quanto com a tradição intelectual europeia), personagens obsessivos e paisagens encharcadas pela chuva, podem dar uma impressão de altivez endurecida do modernismo tardio, mas também são pontilhistas, elegantes e delicadamente engraçados. Sua gravidade tem elegância — uma colisão de tons visível em outras obras que ele produziu junto com os romances, que incluem contos como Animalinside (2010) e textos geograficamente mais vastos como Destruction and Sorrow Beneath the Heavens (2004) e Seiobo There Below (2008).
Krasznahorkai em 1990
Embora Krasznahorkai ainda tenha uma casa na Hungria, mora principalmente em Berlim. A primeira vez que tentei chegar a Berlim vindo de Londres para começar esta entrevista, no inverno de 2016, meu voo foi cancelado devido à neblina. Algumas horas depois, com meu novo voo na pista, fomos informados de que problemas técnicos atrasariam ainda mais nossa partida. Tendo finalmente chegado a Berlim e encontrado um táxi — dirigindo em uma velocidade assustadoramente alta porque, como o motorista me disse, precisava desesperadamente encontrar um banheiro —, encontrei Krasznahorkai em frente à entrada do metrô na Hermannplatz, doze horas depois de ter saído de Londres. Eu poderia muito bem tê-lo encontrado em Pequim. Essa farsa de viagem contemporânea prolongada, pensei, parecia incongruentemente cômica. Mas então reconsiderei: a arte de Krasznahorkai sempre foi hospitaleira ao absurdo, às maneiras como o mundo se personifica e se torna um oponente implacável.
Krasznahorkai fala inglês com uma sedutora inflexão da Europa Oriental e um sotaque americano ocasional, resultado de sua estadia no apartamento de Allen Ginsberg em Nova York, nos anos 90. Krasznahorkai é um homem grande e gentil, frequentemente rindo ou sorrindo, e cheio de carinho e cuidado. Ele me emprestou um suéter quando eu parecia estar com frio, me presenteou com a coletânea de poesias Una Storia Vera, de Durs Grünbein , e me recomendou gravações de György Kurtág. Com seus cabelos longos e olhos tristes, ele parece um santo benevolente. Ele também é um homem de absoluta privacidade; portanto, nunca quis nos encontrar em seu apartamento. Em vez disso, conduzimos longas sessões em seus arredores, em vários cafés e restaurantes ao redor de Kreuzberg.
—Adam Thirlwell
ENTREVISTADOR
Vamos falar sobre seu início como escritor.
KRASZNAHORKAI
Eu achava que a vida real, a vida verdadeira, estava em outro lugar. Além de O Castelo, de Franz Kafka, minha bíblia por um tempo foi Sob o Vulcão, de Malcolm Lowry . Isso foi no final dos anos 60, início dos anos 70. Eu não queria aceitar o papel de escritor. Queria escrever apenas um livro — e depois disso, queria fazer coisas diferentes, especialmente com música. Queria viver com as pessoas mais pobres — achava que essa era a vida real. Vivi em vilarejos muito pobres. Sempre tive empregos muito ruins. Mudava de lugar com muita frequência, a cada três ou quatro meses, para escapar do serviço militar obrigatório.
E então, assim que comecei a publicar algumas coisinhas, recebi um convite da polícia. Talvez eu tenha sido um pouco impertinente demais, porque depois de cada pergunta eu dizia: “Por favor, acredite em mim, eu não lido com política.” “Mas sabemos algumas coisas sobre você.” “Não, eu não escrevo sobre política contemporânea.” “Nós não acreditamos em você.” Depois de um tempo, fiquei um pouco irritado e disse: “Você realmente imagina que eu escreveria algo sobre pessoas como você?” E isso os enfureceu, é claro, e um dos policiais, ou alguém da polícia secreta, quis confiscar meu passaporte. No sistema comunista da era soviética, tínhamos dois passaportes diferentes, azul e vermelho, e eu só tinha o vermelho. O vermelho não era tão interessante porque com ele você só podia ir para países socialistas, enquanto o azul significava liberdade. Então eu disse: “Você realmente quer o vermelho?” Mas eles ainda o tiraram, e eu não tive passaporte até 1987.
Essa foi a primeira história da minha carreira de escritor — e poderia facilmente ter sido a última. Recentemente, nos documentos da polícia secreta, encontrei anotações onde eles discutem potenciais informantes e espiões. Eles tiveram alguma chance com meu irmão, escreveram, mas com László Krasznahorkai, seria absolutamente impossível, porque ele era extremamente anticomunista. Isso parece engraçado agora, mas na época não era tão engraçado. Mas eu nunca fiz nenhuma manifestação política. Eu apenas morava em pequenas vilas e cidades e escrevi meu primeiro romance.
ENTREVISTADOR
Como você publicou isso?
KRASZNAHORKAI
Era 1985. Ninguém — inclusive eu — conseguia entender como era possível publicar Satantango, já que se trata de um romance tudo menos inofensivo para o sistema comunista. Naquela época, o diretor de uma das editoras de literatura contemporânea era um ex-chefe da polícia secreta, e talvez quisesse provar que ainda tinha poder — poder suficiente para mostrar que tinha coragem de publicar este romance. Acho que essa foi a única razão pela qual o livro foi publicado.
ENTREVISTADOR
Que tipo de trabalho você estava fazendo?
KRASZNAHORKAI
Fui mineiro por um tempo. Era quase cômico — os verdadeiros mineiros tinham que me substituir. Depois, tornei-me diretor de várias casas de cultura em vilarejos distantes de Budapeste. Cada vilarejo tinha uma casa de cultura onde as pessoas podiam ler os clássicos. Essa biblioteca era tudo o que tinham no dia a dia. E às sextas ou sábados, o diretor da casa de cultura organizava uma festa musical, ou algo parecido, o que era muito bom para os jovens. Eu era diretor de seis vilarejos bem pequenos, o que significava que eu sempre me mudava de um para o outro. Era um ótimo trabalho. Eu adorava porque estava muito longe da minha família burguesa.
O que mais? Eu era vigia noturno de trezentas vacas. Era o meu favorito — um estábulo em terra de ninguém. Não havia vila, cidade ou vilarejo por perto. Fui vigia por alguns meses, talvez. Uma vida pobre com Sob o Vulcão em um bolso e Dostoiévski no outro.
E, claro, nessas Wanderjahre, comecei a beber. Havia uma tradição na literatura húngara de que os verdadeiros gênios eram bêbados completos. E eu também era um bêbado louco. Mas chegou um momento em que eu estava sentado com um grupo de escritores húngaros que concordavam, tristemente, que isso era inevitável, que qualquer gênio húngaro tinha que ser um bêbado louco. Recusei-me a aceitar isso e fiz uma aposta — de doze garrafas de champanhe — que nunca mais beberia.
ENTREVISTADOR
E você não fez isso?
KRASZNAHORKAI
Não. Mas, ainda assim, naquela época, entre os prosadores contemporâneos, havia um escritor e bebedor em particular — Péter Hajnóczy. Ele era uma lenda viva e um alcoólatra completo e profundo, como Malcolm Lowry. Sua morte foi o maior acontecimento da literatura húngara. Ele era muito jovem, talvez quarenta anos. E essa era a vida que eu vivia. Eu não me preocupava com nada — era uma vida muito aventureira, sempre em trânsito entre duas cidades, em estações de trem e bares à noite, observando as pessoas, tendo pequenas conversas com elas. Lentamente, comecei a escrever o livro na minha cabeça.
Era bom trabalhar assim, porque eu tinha uma forte sensação de que a literatura era um campo espiritual — que em outros lugares, na mesma época, Hajnóczy, János Pilinszky, Sándor Weöres e muitos outros poetas maravilhosos viveram e escreveram. A literatura em prosa era menos poderosa. Gostávamos muito mais de poesia porque era mais interessante, mais secreta. A prosa era um pouco próxima demais da realidade. A ideia de um gênio da prosa era alguém que se mantinha muito próximo da vida real. É por isso que, tradicionalmente, os prosadores húngaros, como Zsigmond Móricz, compunham em frases curtas. Mas não Krúdy, meu único escritor querido da história da literatura em prosa húngara. Gyula Krúdy. Um escritor maravilhoso. Certamente intraduzível. Na Hungria, ele era um Don Giovanni — dois metros de altura, um homem enorme, um homem fenomenal. Ele era tão sedutor que ninguém conseguia resistir.
ENTREVISTADOR
E suas frases?
KRASZNAHORKAI
Ele usava frases de forma diferente de qualquer outro prosador. Sempre soou como um homem ligeiramente bêbado, muito melancólico, sem ilusões sobre a vida, muito forte, mas cuja força é totalmente desnecessária. Mas Krúdy não era um ideal literário para mim. Krúdy era uma pessoa para mim, uma lenda que me dava algum poder quando decidi escrever algo. János Pilinszky era minha outra lenda. Em um sentido literário, Pilinszky era muito mais importante para mim por causa de sua linguagem, seu jeito de falar. Tentarei imitá-lo.
Caro Adam, não deveríamos esperar por um apocalipse, estamos vivendo agora em um apocalipse. Meu querido Adam, por favor, não vá a lugar nenhum, a lugar nenhum…
Muito agudo, lento, com todas essas pausas entre as palavras. E as últimas letras de cada palavra eram sempre expressas com muita clareza. Como um padre numa catacumba — sem esperança, mas com uma esperança enorme ao mesmo tempo. Mas ele era diferente de Gyula Krúdy. Pilinszky era como um cordeiro. Não um ser humano — um cordeiro.
ENTREVISTADOR
Havia muita coisa disponível em tradução?
KRASZNAHORKAI
Houve uma época, nos anos 70, em que tínhamos muita literatura ocidental. William Faulkner, Franz Kafka, Rilke, Arthur Miller, Joseph Heller, Marcel Proust, Samuel Beckett — quase toda semana havia uma nova obra-prima. Como não podiam publicar suas próprias obras sob o regime comunista, os maiores escritores e poetas se tornaram tradutores. É por isso que tínhamos traduções maravilhosas de Shakespeare, Dante, Homero e de todos os grandes escritores americanos, de Faulkner em diante. A primeira tradução de O Arco-Íris da Gravidade, de Pynchon, foi realmente maravilhosa.
ENTREVISTADOR
E Dostoiévski?
KRASZNAHORKAI
Sim. Dostoiévski desempenhou um papel muito importante para mim — por causa de seus heróis, não por causa de seu estilo ou de suas histórias. Você se lembra do narrador de “Noites Brancas”? O personagem principal é um pouco como Mishkin em O Idiota , uma figura pré-Mishkin. Eu era um fã fanático desse narrador e, mais tarde, de Mishkin — de sua vulnerabilidade. Uma figura angelical e indefesa. Em todos os romances que escrevi, você pode encontrar uma figura assim — como Estike em Satantango ou Valuska em Melancolia , que são feridos pelo mundo. Eles não merecem essas feridas, e eu os amo porque eles acreditam em um universo onde tudo é maravilhoso, incluindo a existência humana, e eu honro muito o fato de que eles são crentes. Mas sua maneira de pensar sobre o universo, sobre o mundo, essa crença na inocência, não é possível para mim.
Para mim, pertencemos mais ao mundo dos animais. Somos animais, somos apenas os animais que venceram. No entanto, vivemos em um mundo altamente antropomórfico — acreditamos que vivemos em um mundo humano, no qual há um lugar para os animais, para as plantas, para as pedras. Isso não é verdade.
ENTREVISTADOR
Então você quer dizer que sua própria filosofia seria puro materialismo?
KRASZNAHORKAI
Ah, não, Mishkin também é real. Desculpe.
ENTREVISTADOR
Não, conte-me mais.
KRASZNAHORKAI
Franz Kafka é uma pessoa. Ele é Franz Kafka, com sua história de vida, com seus livros. Mas K. está lá, em um espaço celestial no universo, e talvez alguns personagens dos meus romances também vivam lá. Por exemplo, Irimiás e o médico de Satantango, ou o Sr. Eszter e Valuska de Melancolia, ou, do meu novo romance, o Barão. Eles são absolutos — eles vivem. Eles existem no lugar eterno.
Você pode argumentar que Mishkin é apenas ficção? Claro. Mas não é a verdade. Mishkin pode ter entrado na realidade através de outra pessoa, através de Dostoiévski, mas agora, para nós, ele é uma pessoa real. Cada personagem na chamada ficção eterna surgiu através de pessoas comuns. Este é um processo secreto, mas tenho certeza absoluta de que é verdade. Por exemplo, alguns anos depois de ter escrito Satantango, eu estava em um bar e alguém tocou meu ombro. Era Halics de Satantango. Sério! Não estou brincando! É por isso que me tornei mais cuidadoso com o que escrevo. Por exemplo, o texto original de Guerra e Guerra era bem diferente da versão que publiquei. As primeiras cem páginas originalmente tratavam da autodestruição de Korin, mas eu tinha medo de encontrá-lo naquela condição mais tarde e não ser capaz de ajudá-lo. Eu tinha medo da possibilidade de que ele nunca mais deixasse sua pequena cidade. Foi por isso que escolhi tirá-lo de lá — com seu desejo de ir apenas uma vez, no fim da vida, para o centro do mundo. Eu não tinha decidido que seria Nova York, mas foi assim que me libertei da história de que ele viveria para sempre naquele lugar provinciano.
ENTREVISTADOR
Estou pensando no que você disse sobre os humanos viverem em um mundo antropomórfico. Às vezes me ocorre que romances são tão alegremente antropocêntricos. Onde estão os polvos? Onde estão as algas? Uma das coisas que adoro nos seus romances é que eles tentam não ser tão, por assim dizer, provincianos humanos . Mas também parece um paradoxo. O que mais poderiam ser?
KRASZNAHORKAI
Isso é muito importante. A estrutura do romance pode ser antropocêntrica demais. É por isso que o problema do narrador é o primeiro problema, e permanece assim para sempre. Como remover o narrador de um romance? No meu romance mais recente, em cada página há apenas pessoas conversando entre si — e essa é uma maneira de evitar o narrador, mas é apenas uma técnica. Porque concordo com você — a estrutura do romance e do mundo é antropocêntrica. Mas se eu tivesse que escolher entre o universo sem estrutura e a humanidade com estrutura, eu escolheria a humanidade.
Não temos a mínima ideia do que é o universo. Pessoas sábias sempre nos disseram que isso é a prova de que não devemos pensar, porque pensar não leva a lugar nenhum. Você apenas constrói sobre essa enorme construção de mal-entendidos, que é a cultura. A história da cultura é a história dos mal-entendidos de grandes pensadores. Portanto, sempre temos que voltar ao zero e começar de forma diferente. E talvez dessa forma você tenha a chance de não entender, mas pelo menos de não ter mais mal-entendidos. Porque este é o outro lado da questão — sou realmente tão corajoso a ponto de cancelar toda a cultura humana? De parar de admirar a beleza da produção humana? É muito difícil dizer não.
ENTREVISTADOR
Mas você ainda escreve romances.
KRASZNAHORKAI
Sim, mas talvez isso seja um erro. Eu respeito a nossa cultura. Respeito a alta articulação humana em todas as suas formas. Mas a raiz dessa cultura é falsa. E se não fizermos nada, tudo continua do mesmo jeito. E talvez isso seja o mais importante. Tudo deve continuar sem pensar em essências, no que é, e outras questões semelhantes.
ENTREVISTADOR
Como se a escrita, e toda forma de arte, devesse se tornar um ritual sem teologia?
KRASZNAHORKAI
Talvez seja possível pensar na escrita como um ritual a ser realizado — algo repetido, palavra após palavra, frase após frase. Não no sentido da vanguarda clássica do início do século XX, como o Dadá, por exemplo, que não levou grandes artistas a lugar nenhum porque negligenciaram o conteúdo e esse foi, pobres gênios, o erro deles. Mas se você pensar na escrita como um ritual que você realiza, e se você for capaz de se ver ao mesmo tempo, que você está lá na Terra e escreve palavra após palavra após palavra… e então você tem um livro. Você para. Você fecha o livro. E você abre outro, com páginas em branco. E você escreve novamente, escreve novamente, escreve novamente. Palavra após palavra. Frase após frase. Fecha o livro. O próximo… Isso é um ritual. Talvez não seja como você pensa sobre sua escrita, mas talvez seja o que você faz.
Mas este é o ponto em que devemos nos lembrar dos nossos leitores. Porque os leitores precisam, espero, dos nossos escritos. E neste pequeno espaço — onde escrevemos livros, romances, poemas — também há um lugar para os nossos leitores. Essa simpatia, esse sentimento é muito importante — encontrar uma essência comum entre escritores, que criam formas, e leitores, que precisam do que fazemos. Isso também dá algum sentido a este pequeno espaço, que de um nível mais alto vemos como um completo absurdo. Então, talvez o universo esteja cheio de pequenos espaços — cada um com seu próprio tempo, essência, personagens, criação, eventos e assim por diante. Diferentes ideias de tempo para diferentes espaços. Assim como estamos aqui, no universo, dentro do nosso pequeno espaço humano.
ENTREVISTADOR
Como você chegou ao seu estilo — essas frases grandiosas e vastas?
KRASZNAHORKAI
Encontrar um estilo nunca foi difícil para mim, porque eu nunca o procurei. Eu vivia uma vida reclusa. Sempre tive amigos, mas apenas um de cada vez. E com cada amigo, eu tinha um relacionamento em que falávamos um com o outro apenas em monólogos. Um dia, uma noite, eu falava. No dia ou noite seguinte, ele falava. Mas o diálogo era diferente a cada vez, porque queríamos dizer algo muito importante para a outra pessoa, e se você quer dizer algo muito importante, e se você quer convencer seu parceiro de que isso é muito importante, você não precisa de pontos finais ou pontos finais, mas de respirações e ritmo — ritmo, andamento e melodia. Não é uma escolha consciente. Esse tipo de ritmo, melodia e estrutura de frases veio, na verdade, do desejo de convencer outra pessoa.
ENTREVISTADOR
Nunca foi literário? Nunca se relacionou com outros estilos, como o de Proust ou o de Beckett?
KRASZNAHORKAI
Talvez quando eu era adolescente, mas isso era mais uma imitação da vida deles, não da linguagem, não do estilo deles. Tenho uma relação especial com Kafka porque comecei a lê-lo muito cedo, tão cedo que não conseguia entender do que se tratava, digamos, O Castelo. Eu era muito jovem. Eu tinha um irmão mais velho e queria ser como ele, então roubava os livros dele e os lia. É por isso que Kafka foi meu primeiro escritor — um escritor que eu não conseguia entender, mas também um sobre o qual eu me questionava como pessoa. Um dos meus livros favoritos quando eu tinha doze ou treze anos era Conversas com Kafka , de Gustav Janouch. Com este livro, eu tinha um canal especial para Kafka.
E talvez tenha sido por isso que estudei Direito — para ser como Kafka. Meu pai ficou um pouco surpreso. Ele queria que eu fosse para a faculdade de Direito, mas tinha certeza de que eu recusaria, porque eu só me interessava por arte — literatura, música, pintura, filosofia, tudo, exceto Direito. Mas eu aceitei, em parte, acho, porque queria lidar com psicologia criminal. Naquela época, início dos anos 70, era uma ciência proibida na Hungria. Era ocidental e, portanto, suspeita. Mas o principal motivo, eu acho, foi Kafka. É claro que, depois de três semanas, eu não aguentava mais o clima e saí — não apenas da faculdade de Direito, mas da cidade em si.
ENTREVISTADOR
Onde foi isso?
KRASZNAHORKAI
Uma cidade chamada Szeged. Por causa do sistema de serviço militar, não foi fácil sair. Se eu saísse, tinha que voltar para o serviço militar. Normalmente, o serviço militar durava dois anos, mas se você se formasse, só precisava cumprir um ano. No entanto, se você saísse da universidade mais cedo, tinha que voltar para o segundo ano. Então, morei por um tempo em Budapeste, estudando religião e filologia. Continuei meus antigos estudos de grego e latim, mas os exames eram difíceis porque eu não estava na universidade. Então, finalmente, depois de quatro anos, tive filhos. E com filhos, o problema do serviço militar estava resolvido, porque se você tivesse dois filhos, estaria livre dessa terrível obrigação.
O serviço militar, para mim, era quase uma morte. Durante o ano inteiro, nunca obtive permissão para sair do campo. Eu não era um herói nem um pacifista, mas se você estivesse em um posto de observação, tinha que ficar lá com uma arma e não fazer nada. Às vezes, um oficial vinha me observar, e se eu estivesse lendo Kafka, não conseguia parar porque Kafka era mais interessante do que um oficial idiota, então eu sempre recebia punições na prisão do campo. Isso não era tão terrível, mas também significava que eu não conseguia permissão para sair do campo. E isso era terrível — estar lá, o tempo todo.
O início do meu serviço foi o mais difícil. Quando entrei no trem noturno, com outros novos soldados, fiquei completamente destruído. Não conseguia falar com ninguém. Todos queriam fazer piadas, menos eu. Descobri outro rapaz, um rapaz jovem, que estava no mesmo estado, então conversamos um pouco. Conversamos sobre como, se tivéssemos a oportunidade, nos visitaríamos. E depois de cerca de uma semana, quando tive um tempinho livre, fui ao prédio onde ele trabalhava e perguntei: “Onde posso encontrar esse cara?”. E alguém disse: “Terceiro andar”. No terceiro andar, perguntei novamente: “Onde posso encontrar esse cara?”. E alguém disse que ele estava no depósito de munições por causa de uma punição. Ele estava limpando as armas e, quando abri a porta, ele deu um tiro na boca. Exatamente no mesmo momento. Abri a porta e meu amigo deu um tiro na própria boca. Eu era criança. Éramos crianças. Mal tínhamos dezoito anos.
Qual era sua pergunta?
ENTREVISTADOR
Estou apenas tentando fazer uma cronologia aproximada. Você nasceu em Gyula, depois prestou serviço militar, estudou em Szeged, fez Wanderjahre e publicou Satantango. Você chegou a Berlim em 1987 e retornou à Hungria em 1989.
KRASZNAHORKAI
E sempre de volta para a Alemanha.
No início dos anos 90, comecei a escrever Guerra e Guerra. Originalmente, eu queria saber o que a fronteira significava para o Império Romano. Fui, por exemplo, à Dinamarca, à Grã-Bretanha, à França, à Itália, à Espanha, a Creta — tentando encontrar ruínas, vestígios de defesas militares. Eu estava sempre viajando. Foi só em 1996, eu acho, que comecei realmente a escrever Guerra e Guerra , enquanto estava em Nova York, no apartamento de Allen Ginsberg.
ENTREVISTADOR
Como você conheceu Ginsberg?
KRASZNAHORKAI
Tínhamos um amigo em comum. E Allen era um cara muito simpático. No apartamento dele, a porta e a fechadura eram completamente desnecessárias. As pessoas entravam e saíam, entravam e saíam. Era fantástico estar lá, mas também muito perturbador fazer parte do círculo de Ginsberg. Durante o dia, eu podia trabalhar, e à noite, que era quando Allen realmente ganhava vida, eu podia participar das festas, das conversas e da música. Nunca contei a eles que vim de Gyula, mas nunca consegui esquecer, sabe? Que eu era, na verdade, o mesmo garoto provinciano, só que sem cabelo e com alguns dentes faltando, que ficou em choque quando se sentou na cozinha ao lado de Allen e entraram aqueles músicos, poetas, pintores — pessoas imortais.
ENTREVISTADOR
Lembro-me de você uma vez falando sobre a sensação de atemporalidade que você sempre sente e relacionando isso ao fato de ter crescido sob o império soviético, que havia acabado com a história.
KRASZNAHORKAI
Era uma sociedade atemporal porque queriam que você pensasse que as coisas nunca mudariam. Sempre o mesmo céu cinza e árvores sem cor e parques e ruas e prédios e cidades e vilas, e as bebidas terríveis nos bares e a pobreza e as coisas que você era proibido de dizer em voz alta. Você vivia em uma eternidade. Era muito deprimente. Minha geração foi a primeira que não só não acreditava na teoria comunista ou no marxismo, mas achava isso ridículo, constrangedor. Quando vivi o fim deste sistema político, foi uma maravilha. Nunca esquecerei o sabor da liberdade política. É por isso que agora tenho cidadania alemã, porque para mim a União Europeia significa, acima de tudo, liberdade política contra a estupidez agressiva que agora é o deus da Europa Oriental. Eu vim de um mundo burguês, onde a teoria comunista nunca desempenhou qualquer papel. Éramos social-democratas, minha família.
ENTREVISTADOR
E seus pais eram judeus, não é?
KRASZNAHORKAI
Meu pai tinha raízes judaicas. Mas ele só nos contou esse segredo quando eu tinha uns onze anos. Antes disso, eu não fazia ideia. Na era socialista, era proibido mencioná-lo.
ENTREVISTADOR
Como seu pai sobreviveu à guerra?
KRASZNAHORKAI
Nosso nome original era Korin, um nome judeu. Com esse nome, ele jamais teria sobrevivido. Meu avô era muito sábio e mudou nosso nome para Krasznahorkai. Krasznahorkai era um nome irredentista. Após a Primeira Guerra Mundial, a Hungria perdeu dois terços de seu território, e a principal linha política do governo nacionalista conservador após a guerra era restaurar esses territórios perdidos. Havia uma canção muito famosa, uma canção insuportavelmente sentimental, sobre o Castelo de Krasznahorka. Após a guerra, ele se tornou parte da Tchecoslováquia. A essência da canção é que o Castelo de Krasznahorka é muito triste e sombrio, e tudo é sem esperança. Talvez seja por isso que meu avô o escolheu. Eu não sei. Ninguém sabe, porque ele era um homem muito silencioso. Isso foi em 1931, antes das primeiras leis judaicas húngaras.
ENTREVISTADOR
Vamos falar mais sobre sua escrita. Uma coisa que me intriga é que você parece ter deixado bem claro que escreveu apenas quatro romances.
KRASZNAHORKAI
Há Satantango, A melancolia da resistência, Guerra e guerra e O retorno do barão de Wenckheim.
ENTREVISTADOR
Onde você colocaria, digamos, um texto como Animalinside ?
KRASZNAHORKAI
Animalinside é um romance, embora não no sentido estrito. Mas se algo é um romance ou um conto não depende do número de páginas. Escrevi alguns contos no início da minha carreira, em Relações da Graça (1986). Esses contos se desenvolvem em um espaço muito pequeno, em um período de tempo muito confinado, no meio do qual há um único personagem. Um romance contém uma construção enorme, como uma ponte, um arco, do início ao fim. No caso de um conto, não há necessidade de um arco. Em vez disso, um conto é uma caixa-preta, na qual ninguém sabe o que aconteceu.
ENTREVISTADOR
E então, sobre o que é o novo romance, O retorno do barão de Wenckheim? É uma espécie de odisseia?
KRASZNAHORKAI
Sim. Para o personagem principal, este é um retorno ao lar no final da vida. Ele é um homem muito idoso que mora em Buenos Aires. É um homem muito sensível e muito alto, como Gyula Krúdy. Mas muito azarado — ele sempre comete erros.
ENTREVISTADOR
Então ele é seu Mishkin, seu personagem indefeso?
KRASZNAHORKAI
Sim, como Estike. Porque este romance é o meu resumo, na verdade, de todos os meus romances — você pode encontrar muitos paralelos com outros personagens, outras histórias. Faço piadas sobre a palavra “satantango” e assim por diante. Este é o meu melhor romance, eu acho.
ENTREVISTADOR
O seu melhor?
KRASZNAHORKAI
O mais engraçado. O livro mais engraçado. Não está cheio de mensagens apocalípticas. Em vez disso, este é o apocalipse. Ele já chegou.
ENTREVISTADOR
Mas então, sinto, em todos os seus livros, que o apocalipse já chegou, secretamente. Eu me pergunto se existem dois tipos de romancistas. Aqueles que veem cada romance como um objeto separado, e aqueles que pensam que escreveram um romance, que todos os seus romances se encaixam.
KRASZNAHORKAI
Já disse mil vezes que sempre quis escrever apenas um livro. Não fiquei satisfeito com o primeiro, e por isso escrevi o segundo. Não fiquei satisfeito com o segundo, então escrevi o terceiro, e assim por diante. Agora, com Barão, posso encerrar esta história. Com este romance, posso provar que realmente escrevi apenas um livro na minha vida. Este é o livro — Satantango, Melancolia, Guerra e Guerra e Barão . Este é o meu único livro.
ENTREVISTADOR
Você já desejou escrever algo completamente fora dos termos dessas ficções?
KRASZNAHORKAI
Não. Não me incomoda que Johann Sebastian Bach permaneça o mesmo a vida toda.
ENTREVISTADOR
Você frequentemente retorna a Bach — e a outros compositores barrocos, como Rameau. Qual a importância do Barroco para você?
KRASZNAHORKAI
A música de Bach é estruturalmente complicada por causa da harmonia, e é por isso que não suporto música romântica. Depois do Barroco tardio, a música tornou-se cada vez mais vulgar, e o auge dessa vulgaridade ocorreu na época dos românticos. Existem alguns compositores excepcionais, como Stravinsky, Shostakovich, Bartók ou Kurtág, que eu admiro muito, mas sempre os considero exceções. Para mim, a história da música é uma descida. E depois de dois mil anos, isso também está acontecendo na literatura. Mas é muito difícil analisar esse processo de vulgarização. A terrível revolução que sempre aconteceria nas sociedades modernas, de fato, aconteceu. Não que a cultura de massa tenha vencido, mas o dinheiro. Ocasionalmente, uma obra literária de altíssimo nível acaba dizendo algo no nível médio e alcançando mais leitores — e talvez esse seja o destino de muitos escritores contemporâneos.
ENTREVISTADOR
E seus romances?
KRASZNAHORKAI
Não, meus romances não funcionam de jeito nenhum no nível intermediário, porque eu nunca faço concessões. Escrever, para mim, é um ato totalmente privado. Tenho vergonha de falar sobre minha literatura — é o mesmo que se você me perguntasse sobre meus segredos mais íntimos. Nunca fiz parte da vida literária porque não conseguia aceitar ser escritor no sentido social. Ninguém pode falar sobre literatura comigo — exceto você e algumas outras pessoas. Não fico feliz se tiver que falar sobre literatura, especialmente sobre a minha literatura. Literatura é algo muito privado.
Quando escrevo um livro, o livro já está pronto na minha cabeça. Desde pequeno, eu trabalhava assim. Na minha infância, minha memória era bastante anormal. Eu tinha memória fotográfica. Então, eu encontrava a forma exata, uma frase, algumas frases, na minha cabeça, e quando estava pronto, eu escrevia.
ENTREVISTADOR
Você não revisa?
KRASZNAHORKAI
Trabalho quase o tempo todo, como um moinho que não para de girar. Se estou doente, não consigo. E se estou bêbado, não consigo. Mas, com essas exceções, trabalho e trabalho, porque uma frase começa e, ao lado dela, cem mil outras frases, como fios finíssimos de uma aranha. E uma delas será, de alguma forma, um pouquinho mais importante do que todas as outras, e eu a extraio, o suficiente para poder trabalhar com a frase, corrigi-la. E é por isso que, embora existam traduções maravilhosas dos meus livros, gostaria que vocês pudessem lê-las no original, porque quando estou trabalhando, a primeira coisa que faço com uma frase na cabeça é aperfeiçoar o elemento rítmico. Quando trabalho, uso o mesmo mecanismo comum à composição musical e à composição literária. Música, literatura e artes visuais têm uma raiz comum — estruturas de ritmo e andamento — e eu trabalho a partir dessa raiz. O conteúdo é absolutamente diferente no caso da música e no caso dos romances. Mas a essência, para mim, é realmente semelhante.
ENTREVISTADOR
Você era uma espécie de prodígio do jazz, não? E tocava em bandas de jazz quando era jovem?
KRASZNAHORKAI
Fui músico profissional dos quatorze aos dezoito anos.
ENTREVISTADOR
E Thelonious Monk foi o seu grande herói como pianista. Por que Monk?
KRASZNAHORKAI
Muitas vezes me faço a mesma pergunta. Olhando para trás, é difícil explicar por que nosso gosto musical sob o regime soviético era tão perfeito. Estou tentando não parecer vaidoso. Eu tocava não apenas em uma banda de jazz, mas também em uma banda de rock, regularmente. Nossos shows eram festas para pessoas da classe trabalhadora. Recentemente, encontrei um pedaço de papel com os títulos das músicas que tocávamos, e tínhamos, sem dúvida, o melhor gosto. Não o meu gosto, mas o gosto da nossa geração. Naquela época, as fontes de jazz ou rock eram muito pequenas. Havia duas estações de rádio — a Rádio Free Europe, de Munique, e a Rádio Luxemburgo. Nossas gravações eram de péssima qualidade, já que gravávamos diretamente do rádio — em segredo, é claro, porque era proibido. Eu tinha um conhecido, um médico em um hospital em Gyula, que tinha uma enorme coleção de LPs, e ele me permitiu fazer gravações da coleção dele. Mas como escolhi as melhores músicas, eu não sei. Tocávamos Cream, Them, Blind Faith, Jimi Hendrix, Aretha Franklin, Dusty Springfield. O grupo mais convencional era o Kinks. O que mais? Troggs, Animals, Eric Burdon. Rolling Stones, claro. Nada de Beatles. Não sei por quê, mas nada de Beatles. E muito blues.
No trio de jazz, eu tocava com um baterista de cinquenta anos e um baixista que também tinha uns cinquenta. Eu tinha quatorze. Tocávamos com todo mundo, de Erroll Garner a Thelonious Monk. E não tenho explicação para o porquê de Monk ser o meu favorito. Porque agora sou um velho e ainda diria a mesma coisa.
ENTREVISTADOR
E você cantou também?
KRASZNAHORKAI
No grupo de rock, sim. Eu tinha uma voz muito aguda, como um contratenor. Então, eu só cantava músicas de mulheres — Dusty Springfield e Aretha Franklin.
ENTREVISTADOR
E quanto à cena artística? Você estava ouvindo Bowie, Velvet Underground?
KRASZNAHORKAI
Entrei para o fã-clube de Bowie tarde, depois que me tornei amigo de Béla Tarr. Béla morava em um apartamento pequeno e maravilhoso no centro de Budapeste. Ele andava pelo mesmo cômodo o dia todo, sempre ouvindo música. David Bowie, Lou Reed, Nico…
ENTREVISTADOR
Você começou a trabalhar com Tarr no filme Damnation logo após a publicação de Satantango , em 1985 — certo? E então fez duas adaptações dos seus romances, Satantango, em 1994, e Harmonias de Werckmeister , uma versão de A Melancolia da Resistência , em 2000.
KRASZNAHORKAI
No começo, fizemos Damnation porque, sob os comunistas, fomos proibidos de fazer Satantango . Toda essa história começou em 1985, depois que o romance foi publicado. Béla, sua esposa, Ágnes, e eu queríamos fazer um filme de Satantango , mas Béla era um homem odiado no mundo do cinema húngaro. Ele foi para uma empresa cinematográfica e outra. Finalmente, alguém nos disse que era proibido fazer Satantango . E eu disse a Béla: Ok, você vai para casa, eu vou para casa, acabou. Talvez duas semanas depois, Ágnes veio até mim e me implorou para escrever um novo roteiro, porque senão Béla cometeria suicídio . Eu o conheço, ela disse. Ele vai cometer suicídio se não puder fazer um filme com você. Claro, isso era uma armadilha, uma história para me fazer trabalhar com ele.
ENTREVISTADOR
Tarr é o único diretor com quem você trabalhou?
KRASZNAHORKAI
Eu só trabalhei com Béla. Com ele, foi mais do que uma colaboração. Eu dei tudo a ele, e ele levou tudo. Sempre trabalhamos juntos depois que eu escrevi os roteiros, mas eram filmes dele. O cinema é uma arte sem justiça. Se você é um escritor e um diretor de cinema quer adaptar sua obra, você deve aceitar que ele é o diretor. Este filme será dele. Caso contrário, você está cometendo um erro.
Meus roteiros sempre foram obras literárias. Eu usava a forma, usava diálogos, mas quando escrevia sobre um personagem principal, “Ele pensa em um mundo sem Deus”, Béla dizia: “Isso não é um roteiro. Como posso mostrar isso?”. É por isso que eu tinha um pouco de medo durante esses projetos. Por exemplo, quando Estike sobe para o céu. Béla perguntava: “Como posso fazer uma tomada disso?”. No final, a única possibilidade era colocar a câmera talvez oitenta centímetros na frente do rosto de Irimiás. E se, no filme, pudéssemos ver em seu rosto o que aconteceu com Estike, então tudo bem, ganhamos. Se não, é um fracasso. Enquanto isso, eu posso escrever em um livro e é interessante e tem um fundo filosófico. O que é a realidade? O fantasma de Estike é real? Para a câmera, não.
ENTREVISTADOR
Mas para a linguagem, sim.
KRASZNAHORKAI
Exatamente. E isso significa que, se você tiver uma dúvida sobre o universo, sempre terá algumas possibilidades — em particular por meio da linguagem. O poder da palavra é, para mim, a única maneira de me aproximar dessa realidade oculta. Todo mundo é uma pessoa fictícia e, ao mesmo tempo, uma pessoa real. Eu pertenço ao mundo fictício e ao mundo real — estou presente em ambos os impérios. Você também. E todos neste restaurante. E também este objeto e tudo o que podemos perceber e também coisas que não podemos perceber, porque sabemos que, com nossos cinco sentidos, alguma parte da realidade é imperceptível. Não estou sendo esotérico. A realidade é tão importante para mim que sempre quero estar ciente de todas as possibilidades.
ENTREVISTADOR
Eu me pergunto se é por isso que a tradução parece tão estranha. Como pode a realidade inventada pela versão húngara de Satantango ou Barão Wenckheim ser a mesma que a realidade inventada pelas palavras em inglês ou francês? Não há problema equivalente para outras formas de arte. Bach faz uma cantata e é uma tentativa, para ele, de expressar algum tipo de ideal transcendente…
KRASZNAHORKAI
Não, não. Bach é apenas um músico. Quando começou sua carreira e começou a compor suas próprias cantatas, ele lidava apenas com questões musicais — estrutura, a forma da fuga, o prelúdio, o falsobordone . Ouvimos sua música e temos uma imagem de Bach como um homem santo, sempre olhando para o céu. Mas, na verdade, todos os gênios se interessam apenas pelo físico, pela técnica. Se você olhar para a Turíngia, de onde Bach veio, a Turíngia estava cheia de Bachs — músicos, geração após geração. Bach era realmente sinônimo de um bom músico.
Quando estive no Japão, fui a uma oficina onde esculturas de Buda estavam sendo restauradas por especialistas. Eram trabalhadores incríveis, gênios, verdadeiros artistas, mas estavam totalmente absortos na questão técnica: como posso consertar esta escultura quebrada? Então, quando o Buda restaurado foi devolvido ao seu lugar, ele agora era sagrado e alguém podia orar a ele. Você pode dizer que isso é uma contradição, mas não havia contradição para eles. O escultor e o restaurador são a mesma coisa. E quando alguém é um verdadeiro poeta, significa que sabe que a palavra tem poder e que sabe usar palavras. Se você tem essa habilidade, só precisa lidar com questões técnicas.
ENTREVISTADOR
Então você quer dizer que as únicas verdadeiras questões artísticas são questões de técnica?
KRASZNAHORKAI
Um artista tem apenas uma tarefa: dar continuidade a um ritual. E ritual é uma técnica pura.
ENTREVISTADOR
Acredito que deveríamos destacar uma obra específica para uma análise mais técnica…
KRASZNAHORKAI
Acho que isso se relaciona com outra questão. Se falamos de Homero, Shakespeare, Dostoiévski, Stendhal ou Kafka, todos eles estão neste império celestial. E uma vez que alguém cruza essa fronteira, é proibido dizer: O Idiota é maravilhoso, mas ‘Noites Brancas não é tão bom”. Ou Thelonious Monk — não nos é permitido dizer que sua interpretação não é tão boa em um lugar, ou em outro é muito dissonante. Essas são pessoas sagradas! Não devemos falar de detalhes, mas da totalidade da obra ou da pessoa. Se você criou uma vez, apenas uma vez, uma obra que é de gênio, depois disso, aos meus olhos, você é livre. Você pode fazer merda. Você continuará sendo absolutamente a mesma pessoa sagrada, e essa merda é uma merda sagrada, porque, tendo cruzado essa fronteira, essa pessoa é invulnerável.
Estou convencido de que Franz Kafka é um fato em um império que eu, à distância, só posso admirar. Sinto alegria por esse império existir e por figuras como Dante, Goethe, Beckett e Homero terem existido, e ainda existirem, para nós. Tenho certeza de que todos os pensamentos sobre essas figuras, essas figuras sagradas, têm algo em comum. Minha imagem de Kafka não será tão diferente da sua imagem de Kafka.
Isso responde à sua pergunta?
ENTREVISTADOR
Bem, só que é uma recusa em responder à minha pergunta! Posso colocar de outra forma? O que você está dizendo sobre Bach parece relacionado à sua ideia de que qualquer significado que uma obra possua será alcançado através da pura concentração na técnica. Você escreveu certa vez: “O mundo, se existir, tem que estar nos detalhes”. E talvez a obra, se existir, tenha que estar nos detalhes também — como se fossem aspectos diferentes da mesma coisa?
KRASZNAHORKAI
Para mim, os detalhes são os mais importantes, sim. Os menores detalhes são uma questão de vida ou morte. Um erro numa frase me mata. É por isso que não suporto ler meus livros, porque é quase impossível escrever um livro, em trezentas páginas, sem um único erro de ritmo. E talvez não seja uma questão de perfeição, mas sim um desejo de me importar com os menores detalhes, porque não há diferença de importância entre os menores detalhes e o todo. Qual é a diferença entre uma gota do oceano e o oceano como um todo? Nada. Nada.
ENTREVISTADOR
Isso também está relacionado ao que você disse antes — que você tem quase o livro inteiro na cabeça antes mesmo de começar o processo real de escrita?
KRASZNAHORKAI
Sim, mas há algo mais. Quem escreve os livros? Se você tem a sensação de que pode decidir algo no meio da obra, então você não está na obra — você está fora dela. Se você tem a sensação de que está escrevendo o livro, você está fora da obra em si.
ENTREVISTADOR
Há implicações para a interpretação da obra, para a crítica literária? Se eu perguntasse sobre o significado de A Melancolia da Resistência , seria uma pergunta estúpida?
KRASZNAHORKAI
Estúpida? Não. Depende de quem pergunta. Falar com você é um tipo diferente de conversa. Eu honro o que você faz. Não é por acaso que estamos aqui, porque normalmente não me sento duas ou três vezes, durante dois ou três dias, com alguém. E, claro, presumo que você também tenha seu próprio interesse na resposta à sua pergunta — essa questão sobre significado. Ela sempre retorna ao problema do todo e dos detalhes, de como os detalhes se tornam um todo.
ENTREVISTADOR
Você está dizendo que as duas coisas — os detalhes e o todo — são tão interdependentes que não se pode pensar em uma sem pensar na outra? De modo que, de certa forma, uma obra é uma terceira coisa, nem os detalhes nem o todo?
KRASZNAHORKAI
Buda nunca permitiu que alguém falasse sobre totalidade porque era uma abstração — porque totalidade carece de realidade. Temos que ter muito cuidado ao usar a palavra totalidade . Por exemplo, acreditamos que o mundo, o universo, é infinito. Isso é um fiasco, porque se o mundo fosse realmente infinito, então este objeto [ apontando para um copo de chá ] não poderia existir.
ENTREVISTADOR
Por que não?
KRASZNAHORKAI
Porque tudo o que você pode experimentar na existência é finito. Neste copo, há pequenas partes finitas, elementos subatômicos e assim por diante. Intangíveis para nós, mas não infinitos.
ENTREVISTADOR
Há um momento no final de Satantango em que percebemos que o romance está em um loop — que os últimos versos são também os primeiros versos do romance, como escritos por um de seus personagens. Acho que é o único momento metaficcional em seus romances, a única regressão absoluta. Era óbvio para você desde o início que o livro teria essa estrutura circular?
KRASZNAHORKAI
De jeito nenhum. Quando trabalho, começo do começo e nunca sei mais do que meus personagens. No início de Satantango, eu não tinha ideia de que, no final, toda essa construção, como uma forma musical, voltaria e começaria novamente do começo — mas em outro nível, porque quando você relê este livro, você o lê com a consciência de que foi escrito por alguém que é um personagem do livro. Não, eu nunca trabalhei com essa concepção.
ENTREVISTADOR
Porque torna o romance infinito.
KRASZNAHORKAI
Ah, não. Não, acho que não. Só o incontável finito pode existir.
ENTREVISTADOR
O que quero dizer é que, teoricamente, ele é capaz de ser lido infinitamente, ou infinitamente, em uma espécie de círculo.
KRASZNAHORKAI
Você se lembra do que Buda nos disse sobre o círculo?
ENTREVISTADOR
Não.
KRASZNAHORKAI
Se você seguir um círculo, depois de um tempo entenderá que um círculo não existe. É simplesmente um ponto que não existe. Há uma grande diferença entre o infinito e o finito incontável. Afinal, o que você acha que acontece quando o dançarino sufi se dissolve no nada?
ENTREVISTADOR
Mas, para finalizar a questão dos finais, você disse que Barão Wenckheim seria seu último romance. Mas eu sei que você ainda está escrevendo. Isso significa que o que você está escrevendo agora não é um romance?
KRASZNAHORKAI
Pequenas coisas, não uma grande construção. Já escrevi três pequenos livros desde o último romance. O primeiro, Projeto Manhattan (2017), é um prólogo para a segunda obra, meu livro sobre Nova York. Um título provisório poderia ser algo como “Trabalho de campo para um palácio”. E também terminei um livro que queria escrever desde o início, porque adoro Homero desde a minha juventude. Fiz uma viagem no outono passado à Dalmácia, na costa do Adriático. Essa jornada me levou a uma ilha no Adriático, e um mito da Odisseia subitamente retornou, e escrevi um livro sobre ele. Um pequeno livro, como uma novela.
ENTREVISTADOR
Você realmente não acha que escreverá outro romance depois do O retorno do barão de Wenckheim?
KRASZNAHORKAI
Romance? Não. Quando você ler, vai entender. O retorno do barão de Wenckheim, deve ser o último.
Quando se fala em tráfico de drogas, o imaginário popular corre para o morro. Mas a real estrutura do crime está bem longe dali, em fazendas, clínicas de estética, postos de gasolina, funerárias, bingos, casas de câmbio, lojas de empréstimo rápido, lojas de venda de veículos seminovos, imobiliárias, empresas de transporte, de CACs, de segurança privada, náutica, restaurantes, igrejas evangélicas e até lojas de roupas. Fazendeiros, empresários, agentes públicos da Receita Federal, das Forças Armadas e da PF.
A multinacional do crime organizado no Rio de Janeiro e no país não opera nas comunidades nem nas periferias. Ela lava dinheiro nos lugares mais insuspeitos, instala laboratórios e depósitos para armazenagem de drogas em áreas rurais, mantém rotas de escoamento de drogas e armas em pistas de pouso clandestinas e estradas de grandes fazendas, pagam grileiros e milícias locais pra manter controle territorial e, por último, distribuem o carregamento para as favelas, que funcionam como varejo da droga, ou seja, é o último lugar a ter importância nessa cadeia produtiva. A favela é o subsolo da pirâmide no tráfico de drogas, e sua escolha como ponto de venda não se deu por uma casualidade histórica.
A favela surge historicamente por uma geografia de abandono, onde o centro “civilizado” abrigou a elite e, a periferia “desorganizada”, foi o resto onde o povo preto e pobre foi despejado para “higienizar” as áreas centrais da cidade. Esses territórios periféricos foram criminalizados bem antes da chegada do crime organizado, e são estigmatizados, desde o final do século XIX, como o lugar a ser evitado, de pessoas selvagens e perigosas.
Quando o tráfico de drogas se expande de forma organizada nas cidades, a partir do final dos anos 1970, acompanhando a crise econômica e o aumento do desemprego, foi necessário definir o papel dos territórios. O varejo da droga – que exige mão de obra barata e jovem – ficou a cargo das favelas, enquanto o atacado e a logística se estabeleceram nas mãos de redes empresariais com forte lobby nos poderes legislativo e judiciário municipais e com o Poder Legislativo nacional.
A favela virou o rosto do crime por já ser um território historicamente estigmatizado pela sociedade e pelo Estado. Da capoeira no início do século XX ao funk do século XXI: qualquer atividade cultural vinda das favelas sempre foi duramente reprimida. Nesse sentido, por trás do discurso de combate ao tráfico de drogas está o combate a territórios e corpos. Corpos pretos, claro. O jargão da “guerra às drogas” esconde o controle social dessas populações, neutralizadas nos lugares já invisibilizados pelos Estado.
Só que não faz sentido atacar o varejo e fazer vista grossa para o atacado que o alimenta. As operações policiais são concentradas nas favelas por uma lógica eleitoral. O ódio à favela une pessoas, especialmente pessoas que moram próximo a comunidades. O discurso da violência, o fetiche ao policial como Rambo fardado que caça o corpo preto, a produção de conteúdo de esquartejamento para compartilhamento no WhatsApp, programas pinga-sangue na TV, expressões fascistas de efeito como “soma ou suma”, são expedientes que alimentam o imaginário de uma população que, de fato, já está arruinada com a violência urbana, com assaltos e latrocínios, mas que é cooptada eleitoralmente com discursos passionais para votar nos mesmos representantes que alimentam esse sistema há décadas.
E, na hora do desespero, qualquer caminho serve. A percepção da violência no Rio, do Túnel Rebouças pra lá, é a pior possível em relação à percepção da violência nos bairros bolhas da zona sul.
Por outro lado, a percepção generalista de que a polícia é o braço armado do Estado burguês, ignora que, por trás da figura do policial, tido como herói no senso comum, existe um profissional subvalorizado, sem apoio psicológico, atuando sob jornadas exaustivas, sem direitos trabalhistas e que, tanto quanto o morador inocente da comunidade, é colocado na linha de frente dentro da favela, preparado para matar e morrer, como um produto descartável.
Por isso, o discurso pejorativo sobre a instituição Polícia Militar, apesar de parcialmente legítimo, não comunica. Muito pelo contrário: abre uma oportunidade para que entidades religiosas – como a Igreja Universal, por exemplo – se aproveitem dessa lacuna de apoio social para cooptar esses policiais com intenções duvidosas, movidas por projetos ideológicos particulares, ferindo premissas básicas de um Estado laico ao unir, de forma perigosa, religião com política e militarismo. O abandono simbólico do policial – assim como o vácuo de poder do Estado nas favelas, periferias e presídios – é capturado pelo discurso teocrático.
Culpar o usuário pela existência do tráfico também é moralismo barato. Em toda história da humanidade, o uso de psicoativos e vícios sempre existiu. O proibicionismo é eleitoreiro, joga com o senso comum e atrai conservadores e, principalmente, religiosos. A diferença é que o álcool, o tabaco e o açúcar estão sob controle do Estado. A maconha, a cocaína e outras drogas funcionam sob a lógica do livre mercado. Quando o Estado proíbe o uso e terceiriza o lucro, o crime vira negócio e, o Leviatã, passa a ser o mercado. Nesse caso, o mercado clandestino.
A questão é que, Cláudio Castro, que é herança do governo Witzel, se prepara para a candidatura ao Congresso ano que vem. Isso, inclusive, o blindará de ser o próximo governador do Rio preso. Sua turma de delegados blogueiros, bastante atuante em redes sociais e com discursos acentuadamente populistas, provavelmente estará também na disputa do Legislativo em 26 – e com grandes chances de vitória, pois comunicam diretamente para o imaginário policialesco do cidadão médio.
Por trás de toda chacina existe antes um ato político e, depois, um aproveitamento eleitoral. No caixão dos quatro policiais mortos que o governo do Rio diz se compadecer, há um palanque eleitoral de setores conservadores, que já se apressaram para criar o “Consórcio da Paz”. Uma paz que deixa famílias órfãs como herança e mergulha o Estado em uma incerteza profunda. Um cálculo do horror, em que morro e asfalto dividem o sofrimento por conta de uma violência generalizada entre Estado e varejistas do crime, que há mais de 40 anos nunca resolveu nada.
O Rio não é para amadores e a favela, definitivamente, não abriga os profissionais do tráfico de drogas e do crime organizado. A maior facção criminosa do país não é o Comando Vermelho, o Terceiro Comando ou o PCC. É o próprio Estado brasileiro.
Eu procurei ler a irlandesa Sally Rooney (1991) logo após saber de suas lógicas e firmes posições políticas, assim como de seu receio de ser presa ao entrar na Inglaterra, onde evitou ir até para receber premiações (vá se informar, prezado leitor!). Quando soube dela, logo pensei: aí está uma pessoa interessante. Tinha lido recentemente o extraordinário Pequenas coisas como estas, da também irlandesa Claire Keegan e achei que devia encarar a segunda irlandesa do ano. Valeu a pena.
Em Pessoas Normais (Normal People, 2018), Rooney constrói um romance de aparente simplicidade, mas que se revela uma análise bastante fina sobre o amor e, por assim dizer, a desigualdade emocional. A história é contada em ordem cronológica dando saltos temporais, o que pode parecer cinematográfico, mas que funciona no livro. A história acompanha Marianne e Connell, dois adolescentes irlandeses que vivem uma relação secreta. Explica-se: ele era popular, pobre e inseguro; ela, solitária, rica, confiante, mas emocionalmente ferida. Pode parecer uma fórmula já lida e vista, mas o tratamento de Rooney é muito inteligente e criativo. Com o tempo, já na universidade e depois, os dois se separam e se reencontram, a atração física permanece, mas o resto é tenso, ambíguo, inexplicável.
O mérito de Rooney é o de transformar matéria íntima em matéria filosófica e política. Não há gestos heroicos nem paixões arrebatadas, mas uma sucessão de pequenos mal-entendidos, mensagens não compreendidas, hesitações. O que ela narra, talvez, seja a dificuldade de ser fraco. Marianne e Connell se amam, mas não conseguem existir satisfatoriamente um diante do outro.
O estilo de Rooney é econômico. Sua prosa não tem floreios. Ela escreve como quem observa, e não como quem explica. Tal contenção esconde um pouco do subtexto emocional que pulsa em cada gesto. Nota-se que o que se diz, o que se cala e o que se escreve — a linguagem, principalmente a errada — é o campo de batalha das relações.
Sou obrigado a ir adiante. Pessoas Normais é também um romance sobre o cuidado — sobre como o amor é o único espaço onde se pode ensaiar a cura. Rooney escreve com empatia sobre a dor, mas sem ceder à tentação do consolo. Sua compaixão é lúcida, jamais sentimental.
O livro também é uma reflexão sobre classe social, um tema que a autora — formada em sociologia — trata com naturalidade e rigor. A diferença econômica entre Marianne e Connell não é mero pano de fundo: é a estrutura invisível que determina o modo como cada um se percebe e é percebido. Nesse sentido, Pessoas Normais é um romance político, ainda que sem slogans.
No final, o leitor entende que o “normal” do título é apenas uma ironia: de perto ninguém é normal, já dizia Caetano, e nada é normal quando se ama. O amor, em Sally Rooney, é a melhor forma de estar perdido — e quando não estamos?
Gosto muito de Muriel Spark (1918-2006). Seus pequenos romances são inteligentes, bem-humorados e sinceros. Não é muito difícil se identificar com um outro personagem, mesmo que haja um crime ou um fato muito lúgubre. Um eco muito distante (A Far Cry from Kensington, 1988) é um dos romances mais refinados e enigmáticos de Muriel Spark, um livro que combina a leveza irônica de seu texto com uma reflexão profunda sobre ética, memória e poder — tanto o poder da linguagem quanto o das pequenas tiranias cotidianas.
A narradora, Mrs. Hawkins, é tranquila e sensata. É uma jovem viúva de guerra que trabalha numa editora londrina do pós-guerra. O cenário é de reconstrução: Londres ainda está em ruínas e as pessoas tentam retomar a vida entre empregos precários, além de morarem em pensões modestas e manterem aquele típico cinismo inglês. Mas Spark não chega a se interessar pelo pano de fundo social: o que a fascina é o comportamento humano sob pressão moral.
Mrs. Hawkins é tipicamente “sparkiana”: ao mesmo tempo serena e implacável. Passa por um período de sobrepeso e decide comer a metade do que comia de uma forma muito particular. Serve-se e deixa a metade. Emagrece, claro. Mas isto é apenas curiosidade. Quando, num impulso de franqueza, ela chama um escritor pretensioso de “pisseur de copie” — algo como “mijador de texto” ou, em português, um sujeito que escreve sob diarreia mental, um merda da palavra como tantos –, essa ofensa aparentemente trivial deflagra uma série de desdobramentos que alteram sua vida e a de todos ao redor. O livro se transforma, então, não apenas num retrato ferino da vaidade literária e da mediocridade editorial, mas também num estudo sobre como uma única expressão pode conter um juízo moral devastador.
Spark articula tudo isso com seu estilo inconfundível: economia de meios, ritmo preciso e ironia compassiva. Sua prosa é sempre enxuta — não há frase sem função, um detalhe que não revele nada. E, como em boa parte de sua obra, o humor é o bisturi com que disseca a hipocrisia.
Mas, pensando melhor, creio que o romance seja ainda mais uma meditação sobre integridade: a necessidade de manter-se fiel à verdade, mesmo quando isso nos custa conforto, emprego, ou relações. (Aliás, parece que tenho doutorado nisso e em me lascar por isso). Um eco muito distante é, nesse sentido, um livro sobre o preço da lucidez — e sobre o prazer, certamente secreto e nada adequado do ponto de vista econômico, de permanecer de pé num mundo que se curva.
Se A Primavera da Srta. Jean Brodie é o livro de Spark sobre a sedução da autoridade, Um eco muito distante é o livro sobre a responsabilidade do julgamento. No fim, o eco (ou o grito) do título é o da própria consciência — a distância entre quem fomos e quem nos tornamos quando, em nome da verdade, ousamos dizer o que pensamos.
O Primeiro e o Segundo Homem é um livrinho que efetivamente merece o tom de reverência que lhe é habitualmente reservado. Publicado em 1988, esta coleção de contos ocupa um lugar distinto, mais ou menos o mesmo que Guimarães Rosa ou Simões Lopes Neto ocupam — sem comparações. É aquele lugar entre o mito e a memória, o sagrado e o cotidiano, ou do cotidiano tornado sagrado. O gaúcho rural de Luiz Sérgio Metz (1952-1996) é o missioneiro e é bem diferente dos arquétipos literários comuns ao gauchesco. O protagonismo de índios guaranis em vários dos contos é uma das bem-vindas anormalidades que mudam o imaginário do leitor. Metz — seus amigos o conheciam mais pelo apelido de Jacaré — constrói narrativas de uma alta densidade poética que parece brotar ou da terra ou do sonho. Seus personagens habitam um mundo arcaico, quase bíblico, violento e nostálgico, todos falando gauchês, porém carregando ecos profundos da experiência contemporânea: a pobreza, a solidão, a culpa, a perda do sentido, o trabalho que ofende. Metz escreve com uma intensidade que me fez lembrar do lirismo seco de João Cabral — Não sei porque estou me esforçando para encontrar paralelos para um livro tão diferente, denso e musical.
Os contos de O Primeiro e o Segundo Homem estão na contramão de qualquer facilidade. Sua literatura é profundamente gaúcha, de resistência e de pureza, mas não da resistência falsa da Semana Farroupilha e sim da pureza de quem lembra a infância pobre e nada heroica passada no interior jogando bolita ou catando lixo. (O conto da bolita é meu preferido, como eu era ruim jogando aquilo!).
O Primeiro e o Segundo Homem é um livro severo, belo e perturbador. Recomendado fortemente para aqueles que buscam uma literatura brasileira contemporânea que ousa ser profunda, que não tem medo do silêncio e da escuridão interior, e que herda o legado de autores como Guimarães Rosa e Autran Dourado.
Bruckner é o novo Mahler. Têm saído ciclos e mais ciclos de suas sinfonias, o que é merecido. É um enorme compositor.
Contudo, a audição da 5ª Sinfonia ficou para sempre meio estranha para todos os que têm a música erudita em comum com o futebol. Acontece que os roqueiros do White Stripes roubaram um riff de Bruckner e o colocaram na canção Seven Nation Army — que parece ser a principal canção da dupla. Roubar temas parece ser da natureza do rock, só que aquele riff bem simples para os padrões brucknerianos tornou-se muito popular, onipresente nos estádios de futebol europeus, incluindo a Copa do Mundo da Rússia em 2018.
Acabo de ouvir a Quinta Sinfonia e é impossível não sorrir naquele trecho do primeiro movimento pensando na Champions.
Sempre gostei de mulheres e não falo apenas do óbvio. Quando se formam Clubes do Bolinha em festas, costumo ir para o outro grupo. Acho mais divertido. Quando entro numa roda apenas masculina costumo pensar ou dizer, dependendo da intimidade: “Mas que cheiro de saco!”.
Porém, o que me faz escrever isso é que a invasão das mulheres não ocorre apenas nas universidades, cursos e orquestras (a Filarmônica de Nova Iorque informou que, pela primeira vez em sua história, tem mais mulheres musicistas do que homens). A invasão agora está…
Bem, fui fazer minhas 12 voltas (4800m) ali no parque da Redenção e vi que agora há uma indiscutível maioria de mulheres correndo. E quase todas correndo mais rápido do que eu. OK, tenho 68 anos, mas até poucos anos corria mais rápido do que 90% delas.
Gostei da história do padre de Nova Maringá que estava com a noiva de um fiel em seu quarto e que foi descoberto pela família dele. “Ela só veio trocar de roupa”, disse o padre com a maior cara de pau. O noivo arrombou a porta e encontrou a moça tentando se esconder debaixo da pia.
Se o cara não fosse padre, seria uma história perfeitamente rotineira e normal, dessas que devem ocorrer a toda hora.
Convenhamos, celibato não é algo natural. Somos animais feito os gatos. Quando a gente quer um gato celibatário, sabemos o que fazer. A igreja não sabe o que fazer com seus padres, então deixa a natureza agir, né? Os Incel também poderiam conjeturar a respeito.
Veio pouca gente assistir, mas quem veio ficou boquiaberto com o filme “Vá e Veja”, que apresentamos ontem, às 19h30, na Livraria Bamboletras. Ao término da sessão, ninguém se deu conta de que se tinham passado 2h26. Após o filme, conversamos bastante sobre o comportamento alucinado do exército alemão, completamente drogado com metanfetamina.
Sim, essa é uma afirmação histórica documentada. O exército alemão, durante a Segunda Guerra Mundial, fez uso sistemático e em larga escala de metanfetamina, principalmente sob a forma de um estimulante conhecido como Pervitin. Só para a frente russa, foram mandados 250 milhões de comprimidos.
Ele era usado para combater a fome e a fadiga — permitia que os soldados permanecessem alertas e combatessem por dias com pouco ou nenhum sono e sem comer — e também para aumentar a confiança e a coragem.
O Pervitin é frequentemente chamado de “a droga da Blitzkrieg”. O sucesso das campanhas rápidas e avassaladoras na Polônia (1939) e, especialmente, na França (1940) é atribuído em parte à capacidade das tropas Panzer e da infantaria de avançarem sem parar por dias, sustentadas pela droga.
O próprio Hitler usava a metanfetamina e, ao final da vida, já tinha um dos “efeitos colaterais” da droga: o Mal de Parkinson.
Enfim, aquele comportamento descontrolado dos alemães era, em parte, devido ao simples fato de eles estarem drogados.
Segundo uma reportagem recente de O Globo, a metantetamina (apelidada de Cristal) é a droga dos ricos no Brasil. Hoje é caríssima. Segundo a reportagem, 1 g custa R$ 550.
P.S. — Lembro que, quando era pequeno, ouvia as pessoas nos estádios dizerem que era pra dar Pervitin a alguns “cavalos cansados” do futebol da época. E, dizia-se naqueles tempos sem antidoping, que a coisa rolava.
Gente, este filme é IM-PER-DÍ-VEL !!! Vá e Veja (1985) é, provavelmente, o melhor filme de guerra já produzido. É uma experiência inesquecível e profundamente humana. Através dos olhos de um menino bielorrusso, acompanhamos a adolescência ser esmagada pela brutalidade, num percurso que transforma a juventude em silêncio e assombro. Não há heroísmo, apenas o absurdo e a crueldade da violência. A fotografia e o som criam uma experiência surpreendente. Não é uma história de guerra, é um testemunho daquilo que a humanidade pode fazer contra si mesma. De certa forma, assistir a Vá e Veja é atravessar o inferno e voltar transformado.
1. O Título é uma Profecia Bíblica Apocalíptica
O título “Vá e Veja” é uma citação direta do Livro do Apocalipse (6:1-8). Na passagem, o Cordeiro de Deus quebra os sete selos do pergaminho divino. Ao quebrar os primeiros quatro selos, quatro cavaleiros são convocados, trazendo Conquista, Guerra, Fome e Morte. A frase “Vá e Veja” é o comando dado a esses cavaleiros. O título do filme, portanto, não é um convite, mas uma profecia de que o que o espectador testemunhará será o próprio apocalipse na Terra, representado pelos horrores da ocupação nazista na Bielorrússia.
2. O Protagonista Envelhece Diante das Câmeras (Literalmente)
Elem Klímov e o diretor de fotografia Alexei Rodionov queriam que o rosto do protagonista, Florya (interpretado por Aleksei Kravchenko), mostrasse fisicamente os horrores que ele testemunhava. Para isso, eles filmaram as cenas fora de ordem cronológica. Eles começaram pelas cenas finais, onde Florya já está psicologicamente destruído e com o rosto envelhecido. Aos poucos, foram filmando as cenas anteriores, exigindo que Kravchenko “rejuvenescesse”. O efeito final é aterrador: vemos um menino cheio de vida se transformar, em poucos dias, em um homem velho, com o rosto marcado pelo trauma.
3. Balas de Verdade Foram Usadas Para Intensificar o Medo
Para extrair reações genuínas de terror do elenco, Klímov adotou métodos radicais. Em uma cena particularmente intensa, onde os personagens fogem por um campo sob fogo nazista, o diretor disparou balas de verdade com uma metralhadora sobre as cabeças dos atores. O som dos tiros, o zumbido das balas passando perigosamente perto e o medo real nos rostos deles são completamente autênticos. Essa prática, hoje considerada impensável por questões de segurança, contribuiu para a sensação documental e insuportável de perigo iminente.
4. O Roteiro é Baseado em Testemunhos Oculares e uma História Real
O filme é baseado no livro “Eu Estou da Vila em Chamas”, do escritor bielorrusso Ales Adamovich, que ele próprio lutou como partisans na Segunda Guerra Mundial quando era adolescente. O livro é uma compilação de depoimentos de sobreviventes da ocupação nazista na Bielorrússia, onde 628 aldeias foram queimadas junto com seus habitantes, em massacres semelhantes ao retratado no filme. A cena do massacre na igreja, por exemplo, é uma fusão de vários eventos reais documentados, tornando o filme não apenas uma obra de ficção, mas um documento histórico de profunda ressonância emocional.
5. O Som Foi Manipulado para Causar Trauma Psicológico no Público
A trilha sonora de “Vá e Veja” é uma ferramenta de tortura psicológica. Após a experiência traumática com bomba, a percepção sonora de Florya se altera. O som do mundo exterior some e é substituído por um zumbido agudo e opressivo, enquanto ele só consegue ouvir sua própria respiração ofegante e os batimentos de seu coração. Klímov e o compositor Oleg Yanchenko criaram esse efeito para fisicamente incomodar e imergir o espectador no estado de choque pós-traumático do personagem. É uma técnica que não serve para entreter, mas para simular o colapso mental e fazer o público “sentir” o trauma, mesmo que por apenas alguns instantes.
Eu acho que o mais burro dos Bolsonaros é o 04. A disputa é duríssima, mas o cérebro daquele rapaz parece o câmbio do Fiat 147 (a álcool) que eu tinha em 1980. O carro quase parava quando eu tinha que trocar de marcha. 04 também tranca e em seu rosto aparece… Nada. Ele fica paralisado e não se nota nenhuma luz, nenhum possibilidade naquela cara de tanso.
Estávamos no carro indo a algum lugar, a Bárbara na cadeirinha e o Bernardo já no banco, como se fosse crescido. Passávamos à beira do Guaíba. Paramos. Eu olho para trás a fim de ver como estavam eles. A Bárbara estende o pescoço para ver melhor a paisagem. Sem tirar os olhos da janela, ela faz uma cara de profunda admiração e diz:
— Que piscina gandi!
Eu lavava a louça e o Bernardo estava brincando no chão da cozinha com um caminhão de madeira que eu tinha dado pra ele — eu sempre tinha sonhado em ter um quando criança e nunca tive, confesso que tinha até ciúmes da coisa. O Bernardo pegava um limão, fechava ele dentro do caminhão e anunciava “Entlô!”. Pegava uma laranja e anunciava “Entlô”. Pegava uma maçã e dizia “Entlô”. Pegou um mamão e disse “Não entlô!”. Então eu ouvi algo como RAAAASCH e ele disse: