Bloomsday: Nem Jesus Cristo tem um dia no calendário. Leopold Bloom tem

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Por Marcelo Costa, na Revista Bula

Leopold Bloom acorda todo dia 16 de junho. Não importa o ano. Nem importa o mundo. Pode haver guerra, ruína, Wi-Fi, greve dos transportes, um eclipse total ou um desfile de patos; Bloom acorda. Com fome, quase sempre. Uma fome serena, doméstica, trêmula de humanidade — a mesma que fez Joyce prender aquele homem comum no labirinto de vinte e quatro horas eternas. Sim, o tempo não é de verdade. O tempo é Dublin fingindo que é um dia só. O dia em que tudo acontece, e nada acontece, e o leitor se afoga no tédio vivo de existir. Bloom vai ao banheiro. Pensa em rins. Vai ao mercado. Lembra de Molly. Compra limões. Evita lembranças. Sorri para ninguém.

E na cidade real, do lado de fora do livro, pessoas se fantasiam de passado para perseguir uma ficção que os ultrapassou. Gravatas tortas, suspensórios anacrônicos, vestidos com cheiro de brechó e uma vontade insaciável de pertencimento. Em frente ao Sweny’s Pharmacy, onde não se vendem mais remédios, só relíquias — o sabonete de limão, a sombra de um parágrafo, o pó da linguagem —, um grupo lê em voz alta um trecho que talvez ninguém entenda por completo. Mas não é isso o amor? Repetir aquilo que nos escapa, como quem aprende uma música de ouvido? O Bloomsday é isso: um ritual que nunca cura, mas também nunca adoece de vez.

Ulysses
Ulysses, de James Joyce (Companhia das Letras, 848 páginas, tradução de Caetano W. Galindo)
Um senhor com chapéu-coco declama a lista de compras de Bloom como quem recita um poema sagrado. Ao lado, uma mulher de olhos azuis como uma promessa esquecida segura um exemplar gasto de “Ulysses”, cheio de notas à margem — algumas datadas, outras apagadas. Em Dublin, neste dia, todo mundo fala com livros. O sotaque da língua inglesa parece curvar-se, arrastado, como se cada sílaba carregasse pedras nos bolsos. Um turista francês, perdido e feliz, pergunta onde fica a Martello Tower. Alguém responde com um gesto largo, como se apontasse para um sonho.

E há isso: o Bloomsday não é uma celebração. É uma insistência. Uma recusa em deixar morrer um dia que nunca existiu de verdade. Joyce, esse irlandês que saiu da Irlanda para poder escrever sobre ela, talvez estivesse rindo agora. Ou não. Talvez esteja calado, observando de algum lugar onde a ironia já não importa. Criar um feriado para um personagem que passa o dia vagando pelas ruas, distraído, obsessivo, frágil, é como construir uma catedral para a hesitação. E as pessoas entram, comovidas.

Às vezes, há uma encenação no pub. Um Bloom encenado que coça a barba e observa um mundo que se faz de século 20. Mulheres imitam Molly sem pudor. Ou com todo o pudor possível. Depende do vinho. Depende da memória. Há quem chore. Há quem durma. Joyce escreveu um livro ilegível para que ninguém o lesse sozinho. E ele sabia. Cada frase é um quebra-mapa. Cada cena uma dobra no tempo. Como se a narrativa se recusasse a seguir a lógica dos homens. Dublin torna-se um tabuleiro. Uma cidade que se interpreta a si mesma, em voz alta.

Na esquina da Eccles Street, onde Bloom morava, já não mora ninguém. A casa 7 foi demolida. No lugar, uma parede. Uma plaquinha. Um aviso de que algo já foi ali. E não é isso, também, o que somos todos? Placas em carne viva. Avisos de que algo já esteve aqui. Cada leitor de “Ulysses” é um arqueólogo emocional. Tenta decifrar uma frase, encontra o espelho. Tenta seguir a trama, descobre um atalho. E tropeça. E volta. E não entende. E insiste. Porque o livro não está interessado em ser entendido. Ele quer ser vivido, como uma febre lenta, uma ressaca sem bebida, um sonho que gruda nos dedos.

James Joyce escreveu o dia mais longo da literatura com a crueldade amorosa de quem sabia que ninguém escaparia dele. Nem os personagens. Nem os leitores. Nem a própria cidade. A cidade agora se contorce para caber no molde do livro. Como se a ficção exigisse da realidade um reencontro impossível. Mas é isso que o Bloomsday pede: que o mundo repita o que já não pode ser vivido. Uma coreografia do esquecimento. Um teatro íntimo. Um delírio coletivo que não se pretende lúcido.

Alguém toca flauta. Um grupo improvisa um almoço à moda de 1904. A manteiga derrete como naquele parágrafo em que ela não tem nenhuma importância, e por isso é essencial. A chuva ameaça, como deve. Joyce detestava explicações. Então ninguém explica nada. Apenas fazem. Caminham. Leem. Escrevem à mão. Vestem-se de Bloom. De Stephen Dedalus. De sombras. De futuros passados. Uma mulher com olhos de vidro recita o monólogo de Molly na beira do Liffey. Quase sussurrando. Como se fosse um segredo que se diz por amor ao silêncio.

Em outros cantos do mundo, outras cidades tentam o mesmo. Nova York, Trieste, São Paulo, Melbourne. Réplicas involuntárias. Miniaturas sentimentais. O Bloomsday virou um gesto. Uma dobra do calendário. Um dia sem explicação oficial. Não há presentes. Nem hino. Nem herói. Apenas Bloom — esse homem que pensa demais, que sente demais, que anda demais. Ele que não faz nada de épico, nada de cinematográfico. Mas que carrega consigo o peso exato do dia. Como qualquer um de nós. Só que escrito.

E talvez seja isso que move os leitores de Joyce: a ideia de que há grandeza no banal. De que a literatura pode ser tão árdua quanto respirar. De que entender é uma tarefa menor diante da experiência. Porque Bloom, Molly, Stephen — todos eles são o que resta quando a história desiste de nos salvar. Não há redenção em “Ulysses”. Há apenas o tempo. O corpo. O pensamento. A solidão desfiada em frases longas, sujas, belas, impossíveis.

Dizem que há algo de religioso no Bloomsday. Mas é um culto sem dogmas. Uma fé em ruínas. As pessoas não vêm rezar. Vêm participar do abismo. Um abismo cheio de palavras. E ninguém precisa saltar. Basta ler. Ou fingir que lê. Ou fingir que entende. E continuar andando. Pelas ruas que não mudam. Pelos cafés que já não existem. Pelas livrarias que vendem mais chaveiros do que livros. Não importa. Porque há algo em repetir esse gesto — de acordar com Bloom, de seguir seus passos, de habitar esse dia como se fosse real — que cura sem remédio.

Num banco de praça, um garoto de quinze anos tenta ler a primeira página. Franze a testa. Olha ao redor. Fecha o livro. Depois abre de novo. E ri. Talvez tenha entendido algo que nenhum professor saberia ensinar. Talvez só tenha gostado da palavra “yes”. Porque “Ulysses” termina assim. Com esse sim que é corpo, memória, excesso. Um sim que não explica. Que não justifica. Que apenas diz: estou aqui. Estou vivo. E isso basta.

Hoje é 16 de junho. E, mais uma vez, Bloom está entre nós. Ele respira onde não há fôlego. Ele anda onde não há mapa. Ele pensa como quem não sabe se volta para casa ou se já está em casa. Dublin se dobra em sua homenagem — não como quem reverencia, mas como quem se confunde. Porque Bloom não é personagem. É presença. Uma presença que atravessa o tempo, rindo baixo. Como se soubesse que todos nós, no fundo, só queríamos encontrar um dia que fizesse sentido.

E nunca encontramos. Mas seguimos procurando.

James Joyce e Nora Barnacle, no dia de seu casamento, Londres, 1931

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