A Paixão Segundo João, de Johann Sebastian Bach — 300 anos

Hoje é o dia em que a Paixão Segundo João, de Johann Sebastian Bach, completa 300 anos. Digo Paixão Segundo João traduzindo à perfeição o título da obra. A outra grande Paixão de Bach também chama-se Paixão Segundo Mateus e não “Segundo São Mateus”.

A obra é uma representação dramática do texto contido no Evangelho de João, interpretada por coro, solistas e orquestra dentro de árias, corais e recitativos. O dia de sua primeira apresentação, em 7 de abril de 1724, foi a sexta-feira da Semana Santa daquele ano.

Ambas, Mateus e João, são obras belíssimas, perfeitas e insuperáveis em seu gênero. Porém, se eu tivesse que escolher uma delas para levar para a ilha deserta, levaria a aniversariante de hoje, que é menos monumental e mais moderna.

Bach sempre teve notáveis intérpretes e, dentre os vivos, ninguém supera a gravação abaixo, que será postada hoje no PQP Bach.

Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Assinado sob o pseudônimo de Paula Ledesma, Nossa Parte de Noite juntou-se a mais de 650 outros originais apresentados à seleção de 2019 do Prêmio Herralde de Romance — uma das mais importantes premiações da literatura de língua espanhola. A história acompanha pai e filho cruzando a Argentina de carro sob os olhos de soldados armados, no ambiente da ditadura militar, despertando interesse e aflição. Há ocultismo, ocorrem coisas inexplicáveis e é impossível parar de lê-lo. O livro tem, ao mesmo tempo, várias narrativas e impressiona pelo domínio com que Mariana Enriquez constrói o enredo em várias direções e contextos. Ela ganhou o prêmio, claro, foi a primeira mulher a fazê-lo.

Bem, a maior parte do romance trata de temas que não são de minha preferência, porém, já disse, não parei de ler, não poderia largar.

Gaspar é o filho de Juan Peterson. O pai, em solitária cruzada, trata de proteger seu filho do destino que lhe foi designado. A mãe do menino já morreu em circunstâncias obscuras. Gaspar, como seu pai fora, recebeu um chamado para ser médium de uma sociedade secreta, a Ordem, que se relaciona com a Escuridão em busca de vida eterna em rituais brutais. Para tais rituais, é imprescidível a presença de um médium, mas o destino desses detentores de poderes especiais é cruel, já que o desgaste físico e mental é muito severo. As origens da Ordem, comandada pela família da mãe de Gaspar, remontam a séculos, quando o conhecimento da Escuridão foi trazido da África para a Inglaterra e dali à Argentina.

O terror sobrenatural se mistura com outros, reais. Ao lado de casas cujos interiores se transformam, de passagens perigosas, de sacrifícios em rituais de êxtase e dor, de andanças pela maravilhosa Londres dos anos 60, do fetiche por pálpebras humanas, das liturgias sexuais, há a repressão da ditatura militar, os desaparecimentos e, mais tarde, a chegada incerta da democracia e dos primeiros casos de Aids.

Nossa Parte de Noite é um livro perturbador e deslumbrante. A prosa de Mariana Enríquez é muito rica e bem trabalhada, obrigando-nos continuar e continuar mergulhado na história. A inclusão de diferentes vozes narrativas e de vários personagens muito bem definidos conferem ao tema variações e reviravoltas imprevisíveis, às vezes sufocantes… E, portanto, muitas vezes o assunto é o que menos importa. Era meu caso, eu parti de uma posição claramente cética, mas fui absorvendo uma história muito complexa e verdadeiramente estranha.

Há capítulos sobre a vida dilacerada do personagem principal, Juan Peterson, o pai de Gaspar, que vive sempre em tensão, entre doenças, operações cardíacas versus as exigências da Ordem. Sua esposa, a mãe de Gaspar, foi morta em circunstâncias nada claras. Ele tem a necessidade urgente de separar seu filho das influências da família e do tema da Escuridão, pois sabe que se não separar isso continuará com ele depois de sua morte. Quanto ao título, a noite é fundamental, há no livro uma alusão direta, num diálogo entre Juan e seu filho Gaspar, na noite em que vão deitar as cinzas da mãe em um rio. Juan, acariciando o filho, diz mais ou menos assim: “Deixei para você algo meu, espero que não seja amaldiçoado, não sei se posso deixar para você algo que não seja sujo, que não seja escuro, nossa parte de noite.”

Algo curioso aconteceu comigo durante a leitura deste livro, pois entrei e saí da atmosfera do romance sem parar, mas em todos os momentos estive atento e predisposto a acreditar em tudo, absolutamente em tudo. Há momentos de total serenidade, mas o leitor sabe que está numa montanha-russa, num sobe e desce.

Um aspecto que também é de grande interesse são as alusões ao golpe militar na Argentina, às greves, aos desaparecimentos, a um momento histórico muito conflituoso. Nossa Parte de Noite envolve muitos aspectos que não são fáceis de encadear, de unir e de dar continuidade, que ainda assim estão lá perfeitamente lançados. Uma resenhista espanhola identificada apenas como Ros, realizou o exercício de separar os vários temas extras tocados no romance. Vejamos:

— Este é um romance sobre paternidade e amor, Juan é o grande protagonista do romance, ele tem muito para nos dar. É um personagem sombrio mas também é o grande protetor do filho que ama. E, claro, seu filho Gaspar, eles são o centro das atenções em torno do qual gira o romance, embora ao seu redor haja mais pais, mães e filhos e filhas que responderão às inúmeras tramas que se desenvolverão.

— É também um romance sobre o poder, um poder necessário para exercer os ritos a que serão obrigados os personagens. Todos aqueles que fervilham em torno da poderosa família ou que atuam como anfitriões da sociedade secreta, onde tudo é possível. Eles têm poder e o exercem sem limites. Mesmo. Como ditadores.

— Mas também se desenvolve um tema muito mais gentil, que é o tema da amizade. Ela é belamente descrita e totalmente sentida por Gaspar e seus amigos que, estando juntos, viverão uma grande experiência que ficará com eles para sempre, com suas visões e seus medos.

— Também podemos falar da brutalidade, da violência, um tema que surge a cada momento. Mesmo quando parece haver paz e tranquilidade, ela volta, aparecendo sem que percebamos e é uma violência que sempre deixa vítimas. É terrível. Todos e cada um dos personagens do romance, os mais novos e os mais velhos, sofrem com isso. Corpos aparecem mutilados, torturados, desaparecidos, estuprados…

— É um romance sobre a crueldade e a vontade incontrolável de exercê-la, mas, acima de tudo, haverá a luta, o conflito interno contínuo e diário, para que ela não aconteça. Isso se desenvolve em Juan e, claro, em seu filho Gaspar, porque é a herança familiar que ele lhe deixou.

— E acima de tudo há também a Argentina, as ditaduras e as grandes famílias que mexem os pauzinhos, que matam e nada acontece. Para isso há o mais importante, o que não devemos perder, a existência e a exigência da memória. O paralelo é evidente entre os rituais da Ordem e o que acontecia na Argentina.

Mas ainda há muito mais, tudo perfeitamente regido por Mariana Enriquez, juntando-se e encaixando-se à perfeição.

No final… Bem, não vou contar. O final é sensacional.

Mariana diz que uma de suas inspirações foi Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato. Realmente, sua atenção aos fatos da história argentina mostra que “a vida é um conto de terror”, como no livro de Sábato… Admiradora de Lovecraft, Stephen King e Cormac McCarthy e dizendo ser uma pessoa normal, que tem medo do desconhecido, da morte e da violência, ela nos mostra que o medo que está na página seguinte é o mesmo que podemos encontrar ao dobrar a esquina, só que este será sem arte.

Obs.: Mariana também disse que teve de fazer uma séria curadoria em suas obsessões para escrever o romance. Teve que dosar poesia, música, ocultismo, homens bonitos, doenças, cultos pagãos, sexualidade não normativa… Tudo para que as coisas não saíssem fora de controle. Não saíram.

Mariana Enriquez (1973)

Eu e Herbert Caro

Eu e Herbert Caro

Conheci o Dr. Herbert Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já tinha mais de 70 anos. Lembro que tinha 51 a mais do que eu. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a amizade e o carinho. Era um alemão que dava de presente um disco e dizia com meio sorriso: “Para aplacarr tua ignorrância”. E se alguém faltasse àqueles encontros, ele reclamava.

Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável mesmo!) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro). Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: de estão-brrincando-com-algo-que-é-sagrrado-parra-mim. Depois ria conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.

Inesquecível foi o sábado quando chegaram os 3 LPs com últimas Sonatas de Beethoven tocadas por Maurizio Pollini, pianista falecido há 4 dias. Ele brandia os discos e dizia que aquele monumento não serria esquecido tão cedo. Tinha razão.

Creio que todas as vezes que vi o Doktor Carro foi na loja de discos, a exceção das palestras que ele deu no Goethe sobre a pintura dos mestres holandeses. Ele sabia tudo e ficava irritado quando sua esposa projetava uma página ou um detalhe errado. Não a ofendia, mas ficava visivelmente contrariado.

Outra característica dele era o fato de odiar o calor de Porto Alegre. “A canícula” como ele dizia. Em todos os anos de sua velhice, viajava dia 1° de dezembro e retornava ao final de março quando nossa cidade voltava a ficar suportável. (Eu adoraria poder fazer isso…)

É óbvio que me sinto nostálgico e gratíssimo a ele pelas lições. Sei que muitas opiniões que solto no blog PQP Bach e no Notas de Concerto da Ospa são do Doktor Carro e não minhas.

Maurício Pollini | 5.1.1942-23.3.2024

“Não dê ouvidos à sua mãe”, meu pai sussurrava para mim quando ela criticava Pollini pelo que ela descreveu como excessivo perfeccionismo. Para o pai, arquiteto e compositor, a abordagem estrutural de Pollini revelou novas verdades até mesmo sobre os cavalos de guerra mais familiares, tornando qualquer peça musical uma parte essencial do nosso tempo.

Com Pollini as coisas nunca foram simples – Chopin tornou-se o arquiteto musical, Stockhausen o poeta, Beethoven o filósofo. Muitos de nós nos tornamos melhores ouvintes e intérpretes. Que ele descanse em paz.

Vikingur Ólafsson

E o Inter novamente não fará a final do Gaúcho

E o Inter novamente não fará a final do Gaúcho

Este Inter do início do ano tinha um grande problema. O esquema preferido de Coudet é o 4-1-3-2. Ele não se move disso. É um belo esquema, mas há aquele “1”. O Inter quase cometeu suicídio financeiro por causa daquele “1”. Gastou 4 milhões de euros (R$ 21,6 milhões) por 50% dos direitos de Thiago Maia — realmente um excelente jogador. Mais: trouxe Fernando por um salário que não deve ser baixo e ainda roubou Bruno Gomes quando este estava indo para o Fortaleza. Era uma justificada loucura por volantes, pois Aránguiz apenas quebra o galho como “1”. Acho que atua melhor jogando mais à frente. O “1” precisa iniciar as jogadas, dar proteção à zaga e cobrir os laterais. É muito para Aránguiz, mesmo que ele não permaneça em campo até o final. É um baita jogador que rende melhor mais solto.

Ontem, por exemplo, faltou cobertura para Bustos. O atacante pela esquerda do Ju nos deu um baile. Coudet poderia ter posto o Mallo por ali para acabar com a festa. Não botou. Também poderia usar Bruno Gomes e Rômulo para dar melhor cobertura e também reforçar o meio no lugar de Bruno Henrique e Aránguiz, ambos em noite muito infeliz. Aquele negócio de perder quase sempre a segunda bola nos matou. Gosto muito do esquema do Coudet, mas para funcionar tem que ter um meio muito mordedor desde lá na frente. Isto não ocorreu. Outra coisa foi a ingenuidade do Maurício e a infantilidade do R. Renan. Mas claro, agora é fácil falar. Não vou seguir, mas o fato é que, além desses, muito mais gente assinou essa eliminação.

E temos que enaltecer o Roger Machado, que fez o Juventude jogar mais do que nós. Mereceram ir para a final.

Coudet durante Inter x Juventude | Foto: Fabiano do Amaral / Correio do Povo

Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen

Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen

Este romance dinamarquês de 1880 já foi imensamente influente: ele e seu autor foram citados e elogiados por Hermann Hesse, Thomas Mann, James Joyce e Rainer Maria Rilke. E isso é motivo suficiente para lê-lo, claro. Trata-se de um excelente retrato psicológico de um artista fracassado, escrito num estilo marcado por imagens muito surpreendentes e uma análise emocional miraculosamente precisa e realista.

Li este livro justamente em razão dos elogios e referências de Hesse, Thomas Mann e Joyce e, quando o li pela primeira vez, já com mais de 40 anos, ele me emocionou de uma forma inesperada. Conto para vocês os motivos. Quando criança, minha mãe me levava à Igreja Metodista. Eu participava da Escola Dominical. Aquilo de tal modo me impressionou em sua mentira, que me tornei não apenas ateu para a vida inteira, mas me transformei numa criança e pré-adolescente tímido e um pouco raivoso com a estupidez de pessoas que pareciam acreditar — de verdade! — naquelas bobagens de vida eterna, a qual jamais poderia ser eterna por diversas e óbvias razões e que, se fosse, talvez nomeasse representantes de maior envergadura ética e intelectual. O sorriso dos religiosos me era extremamente desagradável. Só que aquilo parecia ser algo apenas meu e tratei de me recolher nos livros e no futebol, já que tinha certeza que quase todo mundo era imbecil. Sim, este foi um grave problema para mim entre meus 5 e 12, 13 anos. Tive uma infância em que procurava observar onde estavam as fissuras nas pessoas.

Bem, acabo de reler o livro em voz alta para minha mulher e ele se manteve em alta estima, apesar de seus claros defeitos. Vamos lá.

Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen (1847-1885) assemelha-se ao realismo desiludido de escritores de meados do século XIX, como Flaubert, Tchékhov e Ibsen. Sua ênfase em nossa fragilidade e nos processos biológicos que conduzem à morte, juntamente com sua retórica ateísta, o assemelha ao naturalismo de Hardy ou Zola. Seu pouco enredo parece Joyce. A descrição de estados psicológicos muitas vezes mórbidos e seu foco no artista como mártir de uma sociedade incompreensível é um mérito que o aproxima também de Dostoiévski, Machado ou Hesse.

O romance de Jacobsen reflete e acelera o fim de muitas posições antigas. O autor, que traduziu Darwin para o dinamarquês e que morreu jovem após uma longa luta contra a tuberculose, conta a história de um personagem que tenta viver, amar e fazer arte quando todos os ideais de gerações anteriores já estão desacreditados pela revelação contínua de que um ser humano é apenas outro animal.

Niels Lyhne tem uma mãe apaixonadamente idealista e um pai prosaico, empresário e agricultor. Esses dois puxam o jovem Niels em duas direções diferentes, nenhuma das quais será capaz de apaziguar sua necessidade de compreender a realidade. É claro que isso não fica tão claro e definido na consciência infantil de Niels como eu expresso aqui, mas está tudo lá.

O romance acompanha Niels desde a infância até o fim prematuro de sua vida e é organizado em torno de seus principais relacionamentos, principalmente com uma série de mulheres idealizadas, juntamente com amigos do sexo masculino que atuam como contrapesos e, às vezes, rivais eróticos.

Embora a prosa de Jacobsen muitas vezes consista em pura anotação de estados psicológicos — ela é muitas vezes sem ação –, ele também é um escritor de cenas eróticas memoravelmente vívidas que transmitem a sensualidade avassaladora até mesmo de momentos aparentemente triviais, como quando Niels encontra sua prima mais velha, Edele, que vem para ficar com a família pouco antes de sua morte prematura por tuberculose, a primeira de muitas mortes precoces na história. O que é aquela cena das flores e a posição de Edele no divã?

A morte de Edele leva Niels à sua primeira rebelião contra Deus, a divindade cruel que tirou uma vida tão jovem e bela. Ele faz um longo e irrespondível discurso mental contra aquela injustiça.

Depois, quando o amigo aparentemente pouco artístico Erik vai a Copenhague para se dedicar à escultura, Niels o segue e se apaixona pela cidade. Lá ele tem um caso de amor abortado com uma viúva mais velha e experiente, a Madame Boye. Soando como uma das heroínas feministas de Ibsen, Boye é também a primeira a dizer a Niels que a sua idealização das mulheres, da qual penso que a prosa lírica de Jacobsen era cúmplice, é, na verdade, opressiva e destrutiva. Sim, esta parte é genial.

Após o caso de Niels com Madame Boye terminar com a retirada dela para a segurança financeira e social burguesa, Niels perde a sua amada mãe, cuja busca apaixonada pelo ideal deu início a tudo.

Então Niels e Erik se apaixonam pela mesma mulher, uma adolescente aparentemente inocente chamada Fennimore. A escolha de Erik, seu arrependimento por essa escolha e seu consequente relacionamento desastroso com Niels levam o romance ao seu clímax emocional, e percebemos que todo relacionamento nesta narrativa terminará com uma morte física ou com o retorno ao rebanho da sociedade normativa.

Ou as duas coisas ao mesmo tempo, como prova a conclusão do romance: Niels afinal encontra a felicidade com outra jovem. Eles se casam, têm um filho e juntos defendem o ateísmo e o humanismo (“Deus não existe e o ser humano é seu profeta”, Niels havia afirmado anteriormente), tanto que isso choca seus vizinhos. No entanto, diante de mais uma morte prematura inexorável, será que fé retornará? A resposta varia de acordo com o personagem moribundo, mas o próprio Niels termina como o herói solitário e íntegro, confrontando a morte e confirmando que não existe Deus, nem transcendência, nem salvação.

Esse resumo e esses trechos deveriam indicar por que o romance se mostrou tão influente. É um participante muito ilustre em uma linha de romances que vai desde A Educação Sentimental, de Flaubert, de Melville, até O Retrato do Artista Quando Jovem, de Joyce, e A Montanha mágica, de Thomas Mann, romances nos quais seus protagonistas não conseguem se desenvolver como bons cidadãos ou grandes artistas, esmagados como estão por uma sociedade e um cosmos indiferente.

Niels Lyhne também é um livro reconhecidamente falho. Como o método narrativo de Jacobsen é principalmente descritivo e não dramático, muitas vezes carece de tensão, e a complexidade de seus personagens tende a ser afirmada de forma abstrata, em vez de retratada de forma vívida. Georg Lukács, na sua Teoria do Romance, criticou o livro por estes motivos.  Ele diz que o romance de desilusão de Jacobsen, que expressa em maravilhosas imagens líricas a melancolia do autor sobre o mundo, desmorona e se desintegra completamente. A vida desse herói, que deveria se tornar uma obra de literatura é, em vez disso, um fragmento pobre, transformada em uma pilha de escombros. O romance seria uma bela e irreal mistura de voluptuosidade e amargura, tristeza e desprezo, jamais uma unidade. Uma série de imagens e aspectos, mas não uma totalidade de vida. Vejo tudo isso no livro, mas gosto dele mesmo assim.

Jens Peter Jacobsen

Na outra ponta da noite, de Lílian Velleda

Na outra ponta da noite, de Lílian Velleda

Poesia é uma coisa complicada. É muito fácil ser ruim e alguém que faça uma boa leitura muitas vezes engana o ouvinte. Quando vai para o papel, pouca coisa sobrevive.

Por isso, fiquei surpreso com o lançamento da última sexta-feira. Em primeiro lugar porque era anunciada a página onde estava o poema. Depois porque cada participante da festa lia um. E os poemas sempre sobreviviam, seja a uma leitura um pouco pior, seja ao acompanhamento das palavras no papel. A poesia mostrava uma dimensão a mais do que o comum.

Falo do livro Na outra ponta da noite, de Lilian Velleda, lançado na Bamboletras sexta-feira passada. Poesia madura e exigente, como disse Paulo Scott. Poemas lindos e cultos, para serem lidos mais de uma vez e que crescem a cada leitura.

Gostei muito. A Livraria Bamboletras sente-se honrada pela grande noite de sexta-feira.

Um pouco sobre Nyels Lyhne

Um pouco sobre Nyels Lyhne

Certamente, Nyels Lyhne é um dos melhores livros que já li. Um pouco verboso demais, mas um clássico extraordinário.

Este livro do dinamarquês Jens Peter Jacobsen foi lançado pela Cosac em 2000, com uma segunda edição em 2001. Hoje, usado, custa uns R$ 700 (280 páginas). Nunca foi relançado, um completo absurdo.

Eu o estou relendo, agora em voz alta para a Elena, e nele redescobri trechos que parecem explicar minha pré adolescência melhor do eu jamais a entendi. Refiro-me à minha revolta contra Deus. Aquilo me fez uma pessoa diferente das outras e empurrou-me para o silêncio e para uma timidez sempre desconfiada. Só me soltava falando sobre ou jogando futebol. Quem me conhece sabe que aos 20 eu já não era assim.

Nyels Lyhne é um romance de formação e estou na página 70. Engraçado, não lembro do que virá, mas sei que, após a leitura que fiz lá em 2000, escrevi na primeira página que era “o livro perfeito”. Ou um deles.

Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia

Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia

Dia desses, eu e a Elena estávamos na Academia. Eu estrebuchava numa sala e ela em outra. É fato sabido que a Elena, vestindo qualquer coisa — até mesmo as camisetas antediluvianas que usa em casa — é uma mulher muito bonita e charmosa.

Pois então ela chega até onde estou dizendo que um Sr., quando ela liberou um aparelho, beijou-lhe a mão.

Homem moderno e descolado que sou, pergunto como ele beijou. Ela repete o gesto do cidadão e detecto alguma devoção na atitude.

Como russa, ela me pergunta se aquilo era um agradecimento pela cessão do aparelho ou outra coisa.
Homem esclarecido que sou, penso em esquartejar todos os velhos, gente da minha idade, presentes no local e respondo com um sorriso que ele queria outra coisa.

— Mas recém saí do hospital, tô triste, um caco, por que ficam olhando?

Homem seguro que sou, não respondo e fico fazendo séries de abomináveis, pensando que preciso acabar com minha barriga naquele mesmo minuto.

P.S.: A Elena me corrige: ela não passou o aparelho para o seu admirador, ele foi até ela, pediu licença e beijou sua mão.

Franz Moormans (1832-1893): A corte

Misoginia, vem aqui à mãe para levares tau tau

Misoginia, vem aqui à mãe para levares tau tau

Por Isabela Figueiredo, em seu perfil do Facebook

A escritora foi à escola do Douro falar sobre os seus livros, em particular, e sobre a leitura, em geral – com alunos do ensino secundário. Uma sala cheia, como gosta. Foi recebida pela pessoa responsável pela biblioteca. Perguntou-lhe se a escola tinha adquirido os livros sobre os quais ia falar. Não, senhora. A escritora declarou que essa tinha sido uma condição solicitada: aquisição de livros da autora para a biblioteca escolar. Um de cada. Bastava. “É que não é coerente nem profícuo falar com os alunos sobre livros se não estão posteriormente disponíveis para leitura.” A pessoa nada sabia sobre o assunto, mas gentilmente afirmou que podia falar com o senhor diretor, que disse ter a intenção de estar presente na conversa com os alunos. “Muito bem”, respondeu a escritora.

Subiram para o auditório. As turmas entraram com os professores. Primeiro o 12º ano, à frente, depois o 11º, entalado a meio da sala, a seguir duas turmas do 10º, que preencheram os lugares de trás. Alunos com bom ar. Giros. Interessados.

A escritora preparou o seu cenário de trabalho, o caderno, os livros, ajeitou as mesas, tal como precisava delas, e ficou sozinha à frente, à espera. Entrou um homem e colocou-se em pé, do lado esquerdo. Não falou com a escritora nem se apresentou. Pela atenção aos alunos parecia um professor acompanhante ou um auxiliar educativo, pensou a escritora, sem se preocupar. O homem foi trocando palavras com alguns alunos. O tempo passava e nada acontecia. A certa altura a escritora perguntou em voz alta, de forma a ser ouvida por toda a sala, “quem é que faz a introdução desta sessão?” Alguém haveria de saber. O homem respondeu “faço eu”. A escritora disse “ok” e aguardou. Eram 10h40. Às 10h45 perguntou a que horas acabava a sessão, porque precisava de calcular o tempo. O homem respondeu “às 11h30”. A escritora pensou “tenho pouco tempo” e avançou que era melhor começarem. O homem respondeu que estava à espera de uma turma de 10º. A escritora calou-se. O homem continuou a falar. Esperou-se. O homem conversava com alunos do 12º. A escritora olhou para o relógio e verificou que faltavam cinco minutos para as 11, altura em que afirmou: “temos de começar”. O homem conformou-se e anunciou “temos de começar sem os que faltam.” Começou por agradecer aos alunos a disponibilidade para estarem ali. A escritora pensou que a sessão decorria em tempo de aula, com os respetivos professores. O homem declarou que os hábitos de leitura eram importantes, ele próprio lia bastante no contexto da sua profissão. Neste passo do discurso, a escritora olhou-o. Ouviu-o agradecer aos alunos a sua presença ali. A dela, escritora. Voltado para os alunos. Anunciou que a escritora “vinha falar de um livro sobre cães.” A turma que faltava entrou, finalmente, e o homem resumiu para os recém-chegados aquilo que já tinha dito. A escritora pensou “lá se vão mais dois minutos.” Felizmente, o homem concluiu a introdução, percorreu a lateral na direção da porta e saiu. A escritora ficou a vê-lo sair, boquiaberta. Quando a porta se fechou a escritora ouviu-se a exclamar “mas foi-se embora? Mas ficamos sozinhos, só eu, os alunos e professores das turmas?” Os alunos riram-se, os professores das turmas puseram os dedinhos no ar, sim, estavam ali. A escritora não perdeu tempo: “ah, ok, tudo bem, vamos lá então começar, porque tenho muito pouco tempo para falar.” A mulher pega no “Caderno de Memórias Coloniais”, levanta-o bem alto e diz “trouxe este livro para oferecer à vossa biblioteca. A vós. É um livro do qual as bibliotecas não costumam gostar, não costumam adquirir por causa de um certo palavreado que vocês usam com abundância nos corredores, de maneira que resolvi trazê-lo eu para estar disponível sem constrangimentos. Se por acaso a leitura vos for negada, façam-me saber através das redes sociais. Tenho outros livros meus para vos oferecer, o que farei dentro em pouco, mas não quero sair daqui sem deixar este aviso.” E quando levantou o “Caderno” bem alto e disse “se a leitura vos for vedada avisem-me”, a mulher percebeu que estava capaz de limpar sebo. A pessoa responsável pela biblioteca disse lá do fundo “vai estar, vai estar.” A escritora respondeu “ótimo, perfeito, é isso que quero garantir.”

A conversa correu lindamente, embora o tempo fosse escasso. Os alunos mostraram interesse em ler. Um belo encontro, como é raro.

Lanço agora eu um desafio:

– quem seria o homem que apresentou a escritora do livro sobre cães? A escritora não faz ideia de como se chama.
– porque motivo o homem não se apresentou, não falou diretamente com a escritora, não lhe agradeceu a sua presença, não se despediu e nunca estabeleceu contacto visual?
– a escritora pergunta-se se teria tido a sorte de manter um ligeiro contacto formal, porém um contacto, caso fosse o Valter Hugo Mãe, o Afonso Reis Cabral, o José Luís Peixoto, o João Tordo ou, e isso, sim, seria relevante, o José Rodrigues dos Santos ou o “tenham noção”.

E é só isto que a escritora me pediu para relatar no Dia Internacional da Mulher. Por ser o dia que é e por ter prometido à sua alma que nunca mais calaria o que não pode calar-se.

Ilustração recolhida em https://www.annesiems.com/. Vejam o trabalho incrível de Anne Siems, a quem não pedi autorização para reproduzir a ilustração.

Se a autora aqui vier ter, informo que este texto não tem fins comerciais, peço desculpa e agradeço a sua ajuda.

Atrás do balcão da Bamboletras (XLVIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (XLVIII)

Várias e boas conversas ocorreram hoje à tarde na Livraria Bamboletras. Um velho professor de literatura conversou comigo e com quem estava próximo sobre o “balaio de preconceitos” que aflorou nos últimos dias. Há os bolsonaristas que criticam O Avesso da Pele sem tê-lo lido, claro, mas há gente mais próxima de nós que só consegue falar nos poucos palavrões do livro e que o acusam de ser, pasmem, um livro racista por causa de uma cena de séquiço da qual, sinceramente, não lembro. A cena seria racista ao inverso! Ou pornográfica… Qualquer coisa serve para acusar. E meu amigo perguntou: quantos livros acusados de pornográficos se tornaram clássicos para a geração seguinte? Um monte. É só o tempo de esvaziar o balaio.

O estranho é que a história do pai sumiu da boca desses caras. O cerne virou coisa secundária. A falência educacional de nosso país descrita no Avesso é terciária. O balaio transformou o livro em outra coisa.

Os outros papos foram mais legais, excetuando-se aquele sobre Israel…

Juliette Binoche faz 60 anos

Juliette Binoche faz 60 anos

Por respeito, procurei uma foto atual de Juliette Binoche. Une photo d’aujourd’hui. Não queria uma da jovem atriz. Encontrei esta de 2022 no Festival de Berlim. Ela não para, faz filmes e mais filmes, sempre brilhantemente. Ainda bem.

Ela diz que os diretores gostam de colocá-la em papéis dramáticos e que ficam desconcertados quando a conhecem porque ela passa seus dias fazendo piadas, muitas vezes inconvenientes ou autodepreciativas. Te compreendo, Ju.

Hoje, está completando 60 anos. Gosto demais da poesia de seu rosto, assim como da inteligência que transborda de seu olhar. Parabéns, deusa.

Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo

Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo

Bem, então, o estar à parte interessa-me do ponto de vista humano. E se me interessa do ponto de vista humano, interessa-me do ponto de vista literário. 

Isabela Figueiredo, em entrevista para a Bertrand Livreiros

Humano, demasiado humano. O título de Um cão no meio do caminho poderia ser o mesmo da obra de aforismos de Nietzsche. Entre o melancólico e o bem-humorado, a portuguesa Isabela Figueiredo arrasa neste romance. Li os dois primeiros livros de Isabela e neles ficava clara a estupenda narradora. Mas Caderno de Memórias Coloniais era autobiográfico e o mesmo parecia acontecer com A Gorda. Este Um Cão seria seu primeiro livro com história original e acabou que o li com ainda maior prazer.

Ela conta a história de José Viriato, um solitário catador de lixo que quase só sai de casa à noite. Um dia ele conversa com Beatriz, conhecida no bairro como a Matadora, mas que na verdade é um pessoa bastante reservada, uma acumuladora que mantém tudo o que é seu em caixas e vive apertada num canto de seu apartamento. Ela fica doente, ele a trata, tornam-se amigos e muitos dos seus traumas vão lenta e delicadamente surgindo sob o olhar inteligente de Isabela. São dois personagens invisíveis, mais por terem desistido do que por vulnerabilidade social. (Vulnerabilidade no Brasil não é mesmo que em Portugal). E não, não é uma história de amor.

Fiquei muito surpreso com a crítica hostil que apareceu na Folha de São Paulo. Ainda bem que não acreditei nela. Ela dizia que o livro é sobre a amizade e reclamava que Isabela não dá espaço ao leitor para pensar. Não entendo, pois (1) é muito mais do que uma história sobre amizade: o livro é tanto sobre este tema quanto sobre solidão e traumas e (2) encontrei bons espaços para reflexão. Se Viriato é falador, a história de Beatriz é apenas espreitada. Muito de si é deixado a cargo de nossa imaginação, assim como na relação entre os pais de Viriato.

Não há nada de pieguice no dolorido livro de Isabela. Um cão é compassivo e duro, franco e abrasivo, e alguns dos mais exigentes leitores da Livraria Bamboletras, retornaram perguntando se temos outro no mesmo estilo.

Isabela Figueiredo

 

Mariana Enriquez

Mariana Enriquez

Eu adoro a escritora argentina Mariana Enriquez. Mas custei a entrar em sincronia com seu livro Nossa Parte de Noite.

Sou um sujeito que não consegue levar a sério o sobrenatural, seja ele em filmes, em livros ou nas formas mais comuns do catolicismo, islamismo, neopentecostalismo, etc. Falou em magia, milagre, vida depois da morte ou em entidades, deu pra mim.

Então, me raciocinei todo e passei a encarar aquilo que de inexplicável acontecia como um elemento do terror muito próprio da autora. Isto é, relaxei e a coisa começou a funcionar.

Acho que nunca esquecerei os últimos capítulos que li do livro — não cheguei à metade de suas 541 páginas. São maravilhosos.

 

Rádio

Rádio

Eu gosto de rádio. Muito. Mas hoje a quase totalidade das emissoras tem péssima programação musical, apresentadores muito limitados com opiniões irrelevantes ou casuístas, certamente ditadas pelos donos ou anunciantes. Rimou.

Só me sobraram duas: a briosa e querida Rádio da Ufrgs (AM, mas que pode ser ouvida na Internet) e a FM 107,7.

O futebol? Ele passa por uma agonizante fuga de cérebros. Há poucas exceções. Para ouvir um Sala de Redação ou outro programa de rádio, só com muita compaixão pela humanidade.

Mozart, o K. 515 e o som do trompete

Mozart, o K. 515 e o som do trompete

Esta manhã, estava ouvindo o Quinteto K. 515 de Mozart na Rádio da Ufrgs, admirando a proeminência das violas. Contrariamente à maioria dos compositores, ele admirava o instrumento e muitas vezes o assumia ao tocar em quartetos de cordas.

Mozart aparentemente não gostava era do violoncelo, mas o que detestava mesmo era o trompete.

Quando criança, quando ouviu pela primeira vez um trompete de perto, ficou nauseado e vomitou.

Coisas das sensibilidades dos gênios.