O Violista (I – Largo)

De hoje até sexta-feira, sempre ao meio-dia, publicarei os cinco capítulos desta novela.

O violista entrou lentamente no teatro. Não costumava falar muito com os colegas, era metódico e silencioso. Chegava até seu armário, deixava seus pertences, abria a caixa do instrumento, fazia-lhe rápida revisão, afinava-o e seguia para o ensaio. O repertório romântico ao qual a orquestra prioritariamente dedicava-se era conhecido e para Romeu quase não havia diferença se o programa do concerto semanal fosse este ou aquele: a viola era um ornamento orquestral a quem nem compositores nem regentes davam muita atenção. Uma nota aqui, outra ali e longas e repetitivas séries depois. Fazia tempo que não estudava mais.

Mas era a viola quem lhe dava um bom salário em euros na Orquestra Nacional do Porto, para a qual fora aprovado há dez anos, quando ainda tinha algum entusiasmo pela música. Viera do Brasil, de Porto Alegre, onde era violista da valorosa Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Uma vez, enquanto esperava o ônibus a fim de ir para casa após um concerto, numa noite fria e chuvosa do inverno portoalegrense, olhou para o homem mal vestido a seu lado, que também esperava pacientemente o miraculoso aparecimento de uma condução. Chegou-se e eles uma jovem também esperançosa de ir para casa. Notou o olhar da moça: estava receosa de algum assalto ou abordagem e o violista teve consciência do ridículo de estar com o estojo da viola numa parada de ônibus. Será que ela pensou que o estojo contivesse uma metralhadora como no cinema? Disse baixinho para si mesmo:

— Calma moça, um é músico e o outro também não tem dinheiro. Mas somos do bem.

Tais ressentimentos eram comuns na vida de Romeu. Em sua juventude, não achara-se suficientemente bom para o violino e logo correra para a viola. Ser violista normalmente não é uma opção, é o que sobra, e ele escolheu sua sobra muito cedo, depois de ouvir, por meses, gravações de seus amados Jasha Heifetz e Henryk Szeryng. Concluiu, de forma triste e calada, que sua técnica nunca chegaria a dez por cento daquilo que ouvia… e passou à viola. Depois, quando via os violinistas da Orquestra de Porto Alegre em ação, dava-lhe ganas de recomeçar sua vida. Sabia que enquanto ele e seus colegas violistas, agarrados a seus instrumentos, coçavam-se como um cães pulguentos, repetindo eternamente a mesma nota, os violinistas atraíam os olhares dos espectadores, mesmo errando lamentavelmente.

Quando soube, em 1997, da fundação de uma orquestra na cidade do Porto, em Portugal, pensou ser esta uma boa chance de receber mais do que o modesto salário em reais de funcionário público. Se sua vida futura seria a de tremer como uma máquina de lavar roupas no meio de um palco, acompanhando quem pensava fazer música, talvez chegasse a roupas mais limpas na Europa, com melhores músicos. Fez o Concurso e acabou surpreendentemente aceito após interpretar uma obra solo de Hindemith e uma transcrição de uma suíte para violoncelo de Bach. Seus concorrentes, um bando de instrumentistas da Europa Oriental, eram assustadores e ele autenticamente admirou-se quando viu seu nome anunciado: Romeu Martins.

Os primeiros tempos na cidade do Porto foram felizes, tudo era novo e ele logo adaptou-se à vida portuguesa. Tornou-se torcedor – ou adepto, como lá dizem – do Boavista FC. Seu principal adversário do clube era o multi-campeão FC Porto, mas ele preferiu o alvinegro por não ter o odioso azul do Grêmio de Porto Alegre.

A única vez que Romeu foi visto em pé durante um concerto da ONP – além das ocasiões em que o maestro pede que todos levantem para receber os aplausos -, foi quando alguém resolveu apresentar a Sinfonia Concertante de Mozart para Violino e Viola. O maestro titular Marc Tardue o chamou e perguntou se ele poderia tocar a Concertante dali a um mês. Ele respondeu que sim, claro, que iria estudar a música para os ensaios.

Hindemith, Bartók e Mozart foram os únicos compositores a voltarem suas luzes para a viola. O primeiro era violista, os outros dois talvez fossem bons corações que deixaram-se levar por amigos violistas, deprimidos com um repertório de terceira linha.

No dia do primeiro ensaio, foi apresentado à violinista com quem faria o duo. Ela o deixou instantaneamente irritado. Era jovem, muito jovem e bonita, tinha os cabelos loiros e olhos azuis que denunciavam uma origem nórdica e fria. Era lituana. Romeu não deu a menor importância à beleza da moça, mas fixou-se em seus pés. Viu que ela estava de sapato baixo. Concluiu que todo seu esforço, dormindo dias e noites sobre a partitura de Mozart, seria solapado por alguém com 15 anos e 15 quilos a menos que ele, e com – o mais importante – 15 centímetros a mais de altura. Ninguém veria um arredondado, pequeno e feio violista brasileiro. E, pior, ela certamente viria de salto alto ao concerto.

O ensaio foi um fiasco. Apesar do estudo intensivo da obra, Romeu tocou pessimamente e nem suas desculpas (“Estou num mau dia, maestro.”) acalmaram o todo-poderoso Tardue. Ele pensava apenas no regime que teria que submeter-se para estar um pouco mais esguio, aflautado. Arranhava seu Mozart, atrasando-se sempre após a longa introdução do primeiro movimento, porque conjeturava que tinha de deixar de comer até o concerto, que procuraria sapatos com saltos um pouco maiores e que, finalmente, precisaria tocar adequadamente a peça.

Continua amanhã às 12h.

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