O Caso Sampallo e o Mar de Histórias (algumas absurdas, outras dignas)

A bonita moça ao lado, María Eugenia Sampallo Barragán, de 31 anos, estava na barriga de sua mãe quando esta foi presa em dezembro de 1977. Não se sabe exatamente quando, mas supõe-se que em fevereiro de 1978, Mirta Barragán deu à luz uma menina na prisão. Seu pai, Leonardo Rubén Sampallo foi informado do nascimento da filha. Dias depois, María foi dada de presente pelo capitão do exército Enrique Berthier ao casal Osvaldo Rivas e María Cristina Gómez Pinto. Os pais verdadeiros de María desapareceram.

De acordo com sobreviventes da prisão clandestina “El Banco”, Mirta foi levada para o Hospital Militar em fevereiro de 1978. Nunca mais se teve notícia dela nem do companheiro. Antigos militantes do Partido Comunista Marxista Leninista, os dois eram operários e atualmente fazem parte das cerca de 30 mil pessoas desaparecidas durante a Guerra Suja, como é chamada a repressão desencadeada pela ditadura militar argentina contra seus opositores.

Há uma história semelhantíssima no romance Duas Vezes Junho, de Martín Kohan. Alías, hoje há comprovadamente outros oitenta e oito jovens na mesma situação chegando todos aos 30 anos na Argentina. Devem ser muitos mais.

Vários fatos saltam aos olhos dos brasileiros. Em primeiro lugar, a rapidez e eficiência da Justiça Argentina (propositalmente em maiúsculas). Como é que um processo que começou em 2007 tem data marcada para sua terminar e esta será em 4 de abril de 2008? Como pode? Em segundo lugar, a rapidez e eficiência da Justiça Argentina que ordenou em 2001 que fossem realizados exames de DNA dos “pais adotivos” de María, da própria e dos parentes de seus pais. Tendo em mãos o resultado, ela permitiu, no mesmo ano de 2001, que María Eugenia alterasse seu sobrenome de Rivas Pinto para Sampallo Barragán. Tudo em 2001. Em terceiro lugar, a rapidez e eficiência da Justiça Argentina, pois, em 2007, o casal Rivas processou María por calúnia e difamação. Após perderem a causa, María, no mesmo ano, resolveu abrir processo contra os falsos pais, que agora podem pegar 25 anos de prisão cada um no próximo 4 de abril.

Em quarto lugar, a postura de um país implacável que não parece apreciar pizzas como o nosso. Se nosso passado pode ser escamoteado, o que impede de fazermos o mesmo com nosso presente?

María Eugenia não fala à imprensa, é uma pessoa de dignidade e discrição aparentemente inabaláveis, porém seu caso é acompanhado com extremo interesse em toda a Argentina. O tal capitão Berthier, o homem que a entregou aos pais “adotivos” já está preso. O resultado, como já disse, movimenta a imprensa argentina e o resultado deve ser conhecido dia 4 de abril.

Sim, uma das formas de ver o mundo é imaginá-lo como um vasto mar de histórias. A expressão “Mar de Histórias” era utilizada em sânscrito para se referir ao universo inteiro das narrativas: “Os contos estão entrelaçados: a primeira história não acabou, e personagens começam a narrar outra, na qual por sua vez, outras se acham encravadas. Acotovelam-se nesse estranho labirinto as figuras mais singulares…” (Aurélio Buarque & Paulo Rónai). Este mar de histórias une fatos que um escritor talvez tivesse pudor de escrever. Há casos análogos e inacreditáveis como o de Victoria Donda Pérez: ela descobriu que seu pai foi prisioneiro do próprio irmão que a doou a um militar… Isso mesmo, o torturador doou a sobrinha, mas para que a história ficasse ainda mais novelesca, o mesmo criou sua irmã mais velha como filha!!!

Voltando ao Caso Sampallo, diria que ele tem enorme valor para este ficcionista amador. É uma história de busca de identidade sem as chateações da adolescência, é uma história dura e cheia de ódio, é a recuperação do direito de saber a própria história pessoal, e há algumas contrapartidas muito interessantes: o que Las Madres de Plaza de Mayo faziam procurando seu filhos, hoje é feito pelos netos procurando seus avós. Eles são los Hijos; elas, las Abuelas.

Há um movimento chamado H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio). Um integrante do movimento declara:

– Sabemos que as pessoas que nos criaram foram cúmplices do aparato estatal e cometeram delitos. Os netos cresceram e criaram consciência das graves violações. Hoje, podemos enfrentar o trauma da busca de identidade.

A mãe “de adoção” de María dá declarações assim:

– Mocosa maleducada, tenías que ser hija de guerrilleros para ser tan rebelde.

Como resposta, María, cuja voz é conhecida da imprensa apenas por seus depoimentos à Justiça, não diz palavra. E está certa, não tem que fazer cenas nem buscar a piedade fácil que uma órfãzinha mereceria. Suas poucas fotos revelam uma mulher doce e tranqüila. Eu invejo a Argentina; lá, há vontade de punir quem deve ser punido. Para trazer esse espírito para cá, teríamos primeiro que implodir nosso belo Judiciário. Sou candidado a apertar o botão. Me chamem.

Atualização de 27 de março, 17h42:

CONFERENCIA DE PRENSA

Ref. Juicio por la apropiación de María Eugenia Sampallo Barragán

Abuelas de Plaza de Mayo convocamos a una Conferencia de Prensa, junto a María Eugenia Sampallo Barragán, su abogado Tomás Ojea Quintana y otros nietos restituidos para hacer saber la importancia de este juicio y lo ejemplar que debe ser su sentencia.
El 19 de febrero comenzó el juicio oral contra Osvaldo Arturo Rivas, María Cristina Gómez Pinto y Enrique José Berthier por la apropiación de María Eugenia Sampallo Barragán, primera nieta recuperada por Abuelas de Plaza de Mayo que querella a sus apropiadores.
Luego de casi dos meses de audiencias el Tribunal Oral Federal Nº 5 (TOF Nº5) deberá dictar su sentencia el próximo 4 de abril. Las Abuelas esperamos la máxima condena para los tres imputados.
Los esperamos en nuestra Sede de la Virrey Cevallos 592 PB 1 el lunes 31 de marzo a las 11:30hs.

Buenos Aires, 26 de marzo de 2008

22 comments / Add your comment below

  1. Milton, concordo em gênero, número e grau contigo. Também te ajudo a apertar o botão da implosão. O problema mais emergencial do Brasil é nossa justiça (com letras minúsculas). Lentíssima, ineficiente e burocrática. Nossa (in)justiça se basta em si mesmo.

  2. é Milton, essas histórias têm que vir à tona, têm que aflorar, ser expostas, julgadas e punidas. Para que possamos seguir em frente com a dignidade de María.
    Belíssimo post!
    beijo, f

  3. Olá, Milton.
    Tem um filme argentino sobre uma história muito similar à de Maria Eugenia. É “Cautiva”, de Gastón Birabén, que se não me engano é de 2003. Vale a pena ver:
    Abraço.

  4. Dario, um dia vou contar minhas agruras pelo judiciário… (Acredita que o juiz que julgou meu acidente dormiu durante a exposição de meu advogado? Fiquei olhando bem firme para ele a fim de que acordasse!) A coisa que mais me irrita é não haver prazos para juízes, só para as partes. É óbvio que tal indulgência é o principal componente da demora. E já notaste o ritmo frenético que as pessoas trabalham no fórum? É de rir. Bomba neles!

    Flávia, achei esta história muito digna e registrei-a de uma forma meio jornalística, para não esquecer. vamos ver o resultado.

    Franz, pois é. Meu cunhado me disse que havia um filme, mas não lembrava do nome. Agora sabemos! Obrigado!

  5. Milton,
    a história é trágica e digna. A reação do Estado Argentino é a única possível para um país que quer chamar-se assim.
    Tenho no entanto um visão um pouco diferente, embora tenho restrições parecidas com às tuas no que tange ao “ritmo judiciário” .
    Primeiro, no Brasil a punição jamais aconteceria, que uma justiça célere ou não. Cabe ao juidiciário cumprir a lei, neste caso a lei de Anistia, um enorme arreglamento onde todos esquecem (ignoram) o que passou. Esta é uma característica brasileira: esconder o problema e varrer a sujeira para baixo do tapete a fim que todos se acomodem, pois todos têm uma parcela de culpa e é mais conveniente assim.
    Abçs.
    Branco

  6. De acordo, Branco. Eu não escrevi isto, mas penso que nossa justiça tenha sido feita para não funcionar, principalmente em alguns casos bem determinados. A questão dos prazos apenas acentua os problemas, porém o cerne da questão é a estrututra montada. Te dou toda a razão.

    Um dia, tratarei de meus três processos na justiça aqui no blog. Nos três, tive resultados, digamos, paradoxais, além de lances inacreditáveis.

    Abraço.

  7. Vc não sabe Milton, como pensei profundamente nisso aqui. Seu post e seus comentários dialogam com uma discussão que tive ontem na minha terapia. Acontece que desde dezembro descobri que fui vítima de um plágio. Um capítulo de minha tese foi transformado em dissertação e rendeu o título de mestre a um cara numa universidade federal. E eu sinto que estou sendo enrolada, pois fui “acalmada” pela criação de uma comissão para investigar o caso em dezembro e até agora nada. Passei o mes de janeiro trabalhando na demonstração do plágio, e sofrendo-o em doses homeopáticas. Terminei o trabalho com uma gastrite. Não obtive nem ao menos um pedido informal de desculpas. E ainda tem gente falando mal de mim entre meus colegas (escandalosa, quais seriam as reais intenções dela?, está querendo se promover?)
    Ontem minha psiquiatra me botou na parede: por que não entrar logo na justiça?
    Há situações em que, ou vc reproduz o abuso e as revitimizações posteriores, ou opta por sua dignidade (e enfrenta as revitimizações que esse enfrentamento também impõe).
    O duro é que depois que o abuso foi perpetrado, parece que não há como fugir das revitimizações, um preço que a dignidade, seu processo de regeneração, cobra…
    Abç, Flávia

  8. Milton, e olhe que por estas bandas o TJ do RS é muito respeitado pelas decisões proferidas… aliás, é visto como um dos mais modernos do Brasil. Estou com você sobre a implosão da estrutura organizacional… é uma corte do velho regime ainda, como já disse um amigo. Há jovens servidores honrosos, isso tenho de reconhecer, e é um pena que essa gente tão instruída e competente seja achincalhada por culpa de outros “juízes”.

  9. hehe, Já li é ótimo!
    Milton, nõ se preocupe em “responder”, seu post já responde. E tb fico sempre preocupada em “monopolizar” a discussão nas caixas de comentário. Sou muito faladeira e muito pensadeira. Já me sinto bem respondida.
    Mas se vc não quiser ou puder encompridar muito o assunto por aqui ou por enquanto, tem meu email lá no finzinho daquele meu post sobre “o boi”. Aí vc escreve quando rolar, não se preocupe. bj. f.

  10. POEMA DO POVO
    by Ramiro Conceição

    Inevitavelmente – me consumo
    na reação de combustão da Arte!
    Sou a luz duma besta, uma luz de vela
    para o casco – além do meu nariz!

    Sou um efêmero aprendiz,
    um rascunho de Prometeu,
    mas que sempre está alumiando
    e denunciando a prisão de Platão!

    Sou um farol às estrelas cegas,
    uma sinfonia aos surdos-mudos,
    uma cor daltônica aos olhos ditos “normais”.
    Minha casa não tem teto, quarto ou janela
    pois moro na “Rua da Imaginação” de nós.

    Tenho quatro mãos,
    quatro pés e milhões de cabeças;
    contudo, possuo um só coração:
    eu sou – um “Poema do Povo”!

    É justamente dentro dele que flui
    a História da Humanidade inteira!

  11. apesar de não costumar comentar muito, acompanho teu blog há algum tempo já, Milton, e esse deve ser o post mais marcante que já li.

    conheces uma crônica do Verissimo chamada (se não me engano, posso estar errando feio) “Como na Argentina”?

    abs

  12. Milton, parabéns pelo post. Escrevo hoje, que é o dia da sentença. Conheço a MAria Eugenia pessoalmente e é de fato incrível. Muito corajosa. Acho que o fator preponderante neste caso, em relação ao judiciário destes dois países (veja que nenhum dos dois governos, apesar de suas origens, tiveram a coragem de abrir os arquivos da ditadura) é realmente a pressão da sociedade civil para julgamento das pessoas involucradas no processo da ditadura.

  13. Milton, adorei o post. Maravilhoso mesmo! Este assunto faz parte do meu trabalho de conclusao da faculdade, e estou tomando como referencia o filme “La Historia Oficial”, conhece? E gostaria de saber se vc tem outras referencias: artigos, filmes, livros que tratem dessa tematica. Grata pela atençao.

  14. Prezados, para os interessados, existe um livro do pernambucano Samarini lima, chamado CLAMOR, conta a história de vários exiliados argentinos na época da ditadura que chegaram ao brasil. São histórias incríoveis. são pessoas que hoje em dia a gente encontra sem querer, por aí. Vale a pena.

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