Fogo Morto, de José Lins do Rego

Atualmente, Fogo Morto deve ser um fenômeno de vendas no Rio Grande do Sul. O romance foi indicado como leitura obrigatória para os alunos que prestarão exame vestibular na Universidade Federal em janeiro de 2009. Ignoro o número de estudantes que se preparam decentemente para o concurso, mas quem o fizer, passará por Zé Lins. Não tinha lido o romance e meu filho, que fará o vestibular, leu e gostou, convencendo-me a retormar o romance regionalista da década de 30, movimento ao qual Fogo Morto está relacionado, mesmo que tenha sido escrito em 1943.

A linguagem é simples, a história é boa e José Lins do Rego é um tremendo narrador. Ou seja, o livro gruda. É dividido em três grandes partes, cada uma dedicada a um personagem da trama: a primeira ao seleiro Mestre José Amaro, a segunda ao Coronel Lula de Holanda, proprietário do Engenho Santa Fé e a terceira ao Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, uma espécie de quixote que, sem ofício definido, é candidato na próxima eleição.

Os três personagens possuem em comum um acentuadíssimo orgulho de si — tão patológico que me fez lembrar Pâmela (ou Suélen, nunca lembro seu nome) — e o fato de escravizarem as mulheres em torno. Mestre Amaro é fechado e ranzinza, permanece solitário em seu mundo e não ouve ninguém, nem sua mulher e muito menos a filha, a qual tortura com suas críticas e que acaba louca. Arrepende-se tardiamente. O Coronel Lula tem orgulho de uma grandeza que apenas ele vê em si. Pouco a pouco leva o Engenho Santa Fé, que herda do sogro, à falência, ao mesmo tempo que pousa de grande e impede a filha de casar, por não encontrar nas redondezas homem digno de sua perfeição. A esposa, uma empregada de luxo, chama-se Amélia (atenção: o samba de Mário Lago e Ataulfo Alves é de 1941). Já o Capitão Vitorino guarda muitos pontos de contato com Dom Quixote e Sancho Pança, a começar pela coragem sem limites e pelo cavalo logo mudado para mula. Anda de um lado para outro fazendo campanha política, orgulhoso de não levar desaforo para casa e desafia todos com suas idéias, desde representantes do governo até cangaceiros. Também tem sua Amélia, digo Adriana, que ameaça uma revolta mas não cumpre.

As protagonistas reais da tragédia são a moral torta e a decadência dos senhores de engenho, além da confusa situação política dos primeiros anos da república num período pré-eleitoral. Apesar da simpatia de José Lins pelos cangaceiros, ele os faz muito parecidos com os representantes do governo e não é por acaso que o quixotesco Vitorino apanha de ambos. Na parte final, um tenente do governo passa a desobedecer o Judiciário e a levar sua atuação para o caso puramente pessoal… É o Brasil-sil-sil velho de guerra!

A UFRGS tem razão em destacá-lo em seu vestibular, pois o livro é excelente e apenas cai na segunda metade da segunda parte, quando já sabemos que o Coronel Lula é um perfeito imbecil e Zé Lins estende-se em sua descrição além do necessário. Nada grave. Logo depois, na terceira parte, o romance retorna com a força anterior.

O mundo mudou: em minha época de estudante, Erico Verissimo era considerado tão importante que os professores não davam muita bola para José Lins do Rego. Era Jorge Amado e olhe lá! Hoje, não há Ericos na lista, que é bastante esquisita, incluindo livros e contos maravilhosos como Antes do Baile Verde, O Primo Basílio, Pai contra Mãe, e Estrela da Vida Inteira, mas também um medonho Assis Brasil — a propósito, meio livro de Erico ou algumas linhas de um conto de Sérgio Faraco são maiores do que toda a obra de Assis Brasil –, um desnecessário Cyro Martins (por que dar a alunos recém saídos do segundo grau uma visão tão pobre da literatura gaúcha?) e Iracema (ai, que saco!)… A seguir, a lista:

Luís de Camões – Os Lusíadas – Cantos I ao V
Castro Alves – Espumas Flutuantes
José de Alencar – Iracema
Machado de Assis – Quincas Borba
José Lins do Rego – Fogo Morto
Lygia Fagundes Telles – Antes do Baile Verde
Milton Hatoum – Dois Irmãos
Luiz Antônio de Assis Brasil – Concerto Campestre
Machado de Assis – O Caso da Vara, Pai contra Mãe e Capítulo dos Chapéus
Cyro Martins – Porteira Fechada
Eça de Queirós – O Primo Basílio
Manuel Bandeira – Estrela da Vida Inteira

9 comments / Add your comment below

  1. Tu já me indicaste tantos livros, agora era a minha hora!!
    Mas, realmente, que bom que gostaste, só ouço críticas negativas sobre ele. A Carol odiou, talvez porque não faça o tipo dela. Também já ouvi dois professores criticando-o por não ser tão realista quanto deseja ser, mas nada me convenceu inteiramente de que o livro não é bom…

  2. Sabe, Bernardo? Não conheço teus professores, só conheço a Carol e acho mesmo que não é livro para ela. Ela quer mais poesia, psicologia, etc.

    Sobre os professores: ou eles têm gosto literário semelhante ao da Carol ou… — aposto nisso — têm aquela mania intelectualóide de desconsiderar livros escritos de maneira simples, mesmo que sejam ótimos.

    Vá explicar…

  3. Milton, tomo a liberdade então de indicar a teu filhote o “São Bernardo” do mestre Graça; o monólogo final do protagonista, sozinho, abandonado por todos… é literatura de primeiro mundo.

  4. Listas são, quase sempre, discutíveis, caro Milton.
    Lido com elas há 28 anos, como professor de pré-vest (e de Literatura Brasileira) aqui, em Vitória, ES. Há até quem garanta que o jabá come solto, entre professores, editoras, livrarias e Conselhos Universitários. Prefiro crer que não.
    “Fogo Morto”, para mim, é obra-prima. A linguagem simples a que vc se referiu guarda toda uma ideologia da chamada “Prosa de 30”, regionalizada no ambiente e na linguagem. Vitorino Papa-Rabo é a criação máxima. É do nível de Jubiabá, Capitão Rodrigo, Fabiano.

    Uma pena que a maioria dos alunos não se comporte como seu filho. Quase todos correm para os braços de resumos (alguns de qualidade duvidosa) que infestam a web. Seu filho lê.
    Encare os céus e agradeça. E, claro, agradeça a si mesmo por ter dado o exemplo.

    Abraço.

  5. Grijó.

    Não sabia que davas aula em pré-vestibular. Sim, Vitorino é o máximo.

    Quanto a meu filho, é o que disseste. Céus, ele lê e gosta!

    Abraço.

  6. Milton.
    A melhor coisa – senão a única coisa boa – do meu vestibular foi a lista de livros: Memorial de Maria Moura, Memórias do Cárcere, A Estrela da Vida Inteira, Alguma Poesia, Capitães da Areia, Vidas Secas, O Auto da Compadecida, Marília de Dirceu (único que não li) e… aff!! Iracema (nada é perfeito… mas mesmo assim fiz uma leitura hiper-dinâmica dele em uma hora e meia).
    O que eu acho, de verdade, é que a escola não estimula ninguém a ler: se resumem a passar resumos, questões de marcar x, “bizus”…
    Quando vc chega no vestibular, te dão meia dúzia de livros pra ler e a gente fica perplexo (felizmente não aconteceu comigo, mas meus colegas ficaram desesperados pra ler Memórias de Cárcere…).
    Mas tem nada não: na faculdade piora (ao menos da de direito)… era praticamente uma heresia aparecer por lá com um livro que não fosse de direito (e os de direito devem preferencialmente ter questões comentadas de concurso)…
    É meio complicado esse nosso sistema educacional, viu??

  7. Quando fui fazer vestibular fiquei muito contente porque colocaram o Lavoura Arcaica na lista dos romances. Eu já tinha lido e gostava bastante – mas, como não poderia deixar de ser, errei a questão a respeito dele.

  8. Oi, Milton!
    Sou conterrânea de Zé Lins e amo sua obra que se relaciona demais com minhas memórias de infância, com seus cheiros, cenários, palavreados, enfim…(suspirando rs)
    Se quiser um pouco mais, faça uma visita ao Menino de Engenho e os seqüentes…Adoro-os!!! Desse ciclo da cana-de-açúcar…Depois, num outro cenário, Pureza…ai ai quero revisitá-los!
    Enfim, sou suspeita em falar, mas acho gostoso demais o jeito dele contar suas histórias.
    Bom te visitar também!
    Há braços

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