Louco por Beethoven

Pois pensei ter ouvido as 32 Sonatas para Piano de Beethoven em dois dias. Foram mais de dez horas de música. Não indico tal empreitada a quem não conheça as sonatas, pois acho que a falta de convivência com elas pode causar uma massa de milhares de notas sem maior sentido. Por que fiz isso? Ora, Beethoven escreveu sonatas durante toda sua vida e pensei que seria interessante ouvir a evolução de sua linguagem através delas.

Foi uma boa idéia, não me arrependo. Para fazer a maratona, escolhi a versão do estupendo pianista ucraniano Emil Gilels (1916-1985), que gravou a quase integral para a Deutsche Grammophon. Fiz excelente escolha de pianista, mas… a versão de Gilels tem apenas 29 sonatas e as 15 Variações e Fuga sobre o tema de Prometeus da Eroica. Ele estava completando a série quando faleceu. Dei-me conta da incompletude da série quando notei a falta da transcedental Sonata Nº 32, Op. 111, sobre a qual tinha escrito aqui, referindo ao famoso capítulo 8 de Fausto de Mann. Para minha sorte, as outras duas sonatas faltantes acrescentariam pouco ao mosaico. Estão lá a nº 29, a imensa Hammerklavier — premiada pela revista Gramophone como a melhor gravação do ano de 1984 –, a Moonlight, a Patética, a Appassionata, a Waldstein, a 13ª e as últimas, com exceção da 32ª.

Gilels teve uma morte bem ao estilo da guerra fria. Já fora vítima de um ataque cardíaco em Amsterdam em 1981, mas o ocidente, auxiliado por Sviatoslav Richter, atribuiu sua morte a um médico incompetente do Hospital do Kremlin, que teria errado o conteúdo de uma injeção… Acredite quem quiser.

Para descrever a evolução do compositor através das sonatas seria preciso escrever um livro. Apesar de Beethoven ter morrido em 1827, sua evolução parece ultrapassar seu ano de morte: vem desde a virada do século XVIII para o XIX, impregnado que estava de seus contemporâneos de juventude: Haydn e Mozart; entra decidido no romantismo com obras fortes e grandiosas — expressão às vezes paroxística de um romantismo muito bem compreendido por sua época — e, paradoxalmente, avança em direção ao século XX, tornando-se modelo e norte para os compositores que o sucederam, ao menos até o início do século XX. “Entenderão depois”, dizia Beethoven a quem criticava esta fase “inacessível”. Torna-se um espantoso criador de arquiteturas que, se foram melhor apresentadas nos últimos quartetos, também o foram nas sonatas. Estamos diante de uma culminância da arte ocidental. Sim, o homem foi um monstro só comparável a Bach, deixando Brahms, Mozart e Bartók empatados no segundo lugar de meu panteão particular.

Gilels talvez tenha a melhor versão das sonatas. As clássicas versões de Arthur Schnabel e Wilhelm Kempf estão no mesmo patamar esta turma póstuma só é derrotada quando o italiano Maurizio Pollini — que não tem a integral delas — ataca as chamadas últimas sonatas e algumas românticas, como a Waldstein. Todos tem suas manias e eu não fujo à regra. Quando quero analisar um pianista tocando Beethoven, vou direto à Waldstein. Visceralmente romântica, radicalmente contrastante, obriga o pianista a passar da obsessão furiosa do primeiro movimento para a lenta solenidade do movimento central que dará lugar a um delicado final. Ninguém, mas ninguém supera Maurizio Pollini nestas variações assombrosas, talvez inconcebíveis, de humor. E a segunda melhor gravação que ouvi desta sonata vem de um irlandês que gravou uma importante integral das sonatas pela Telarc e do qual se fala muito pouco no Brasil: John O’Conor.

A Hammerklavier (Pianoforte) e a Op.111 de Pollini também são imbatíveis. Imaginem que Beethoven indicou que sua sonata Op. 106 tinha de ser tocada no piano, pois muitos ainda utilizavam o cravo!

Não conheço todas as integrais. Ouvi as citadas e mais a de Arrau, que não acrescenta muito. Vou parar por aqui porque me deu vontade de ouvir a Waldstein com o Pollini, ao vivo. Fui.

21 comments / Add your comment below

  1. Depois da morte de Mozart, Haydn reinou porque era um gênio e havia justiça. Não tinha rivais sinfônicos, essa é a verdade. Aliás, o que seria da estrutura da “sinfonia” sem Haydn? Mas aí veio o velho Ludwig e as coisas se complicaram. Acho que não existe um músico tão engenhoso quanto Beethoven, seja nas sinfonias, seja nas sonatas, nos quartetos de cordas (que, para mim, não há nada melhor). Nem Bach, Milton, de quem vc – e eu, naturalmente – é fã, é tão hábil. (Essa discussão vai se estender…) Li seu texto e, estimulante que ele é, fui buscar uma rápida leitura de Carpeaux que, naturalmente, discorda de mim. E, se ele discorda, é bem provável que o errado seja eu.
    À noite, ouvirei a “Appassionata” e a “Waldstein”, com Jenö Jandó ao piano.
    Abraço e obrigado pelo texto, logo pela manhã, durante o café quente e o dia de folga.

    1. Eu realmente não levaria a peito uma discussão Bach x Beethoven. Acho que Bach é maior, mas não ousaria argumentar contra Beethoven. Simplesmente não posso. Se eu comparasse A Arte Da Fuga, as Goldberg e a Oferenda com as últimas obras de Beethoven, trataria de colocá-las lado a lado, comparando-as. Fugiria dos juízos de valor. Amo ambos, não abro mão de nenhum! Se adoro as Goldberg, não as usaria para bater nos maiores quartetos que já ouvi até hoje e que podem até ser superiores às primeiras. Não imagino uma vida sem o Op. 132 não exagero nem um pouco.

      A idade nos tira beleza, força, elasticidade, potência, magreza, porém, antes de nos dar a decrepitude e a morte, brinda-nos com algum bom senso.

      Haydn, que completa 200 anos de morte este ano, ocupou um lugar incrível na História da Música. Nasceu antes de Mozart (1732 e 1756), morreu depois (1809 e 1791). Viu nascer Beethoven (1770). Foi professor de ambos, inventou o quarteto de cordas e sedimentou a forma sinfônica. Pouco, né?

      Grande abraço, Grijó.

      1. É verdade, Milton.
        Como comparar, por exemplo, os Concertos de Brandemburgo com os últimos quartetos de Beethoven? Não dá. O que talvez seja possível é afirmar o que dá prazer maior aos ouvidos.
        Dia desses escrevi que a Tríade Santíssima da música era composta por Bach, Mozart e Beethoven. Desde então o fantasma de Haydn me perturba. Como deixá-lo de fora?
        Valeu.

  2. Sempre deixo tocando essas músicas dos séculos XVII e XIX enquanto leio. Estranhamente, ajuda a concentração. “Essas músicas”. Prefiro, contudo, ler em bares bem cheios. Quanto mais barulho há, melhor para o foco da leitura. Não sei porque, mas funciona assim. Além disso, há o refrigério de, num breve intervalo de leitura para dar um ínfimo gole, olhar em volta e perceber o movimento das mulheres. Bach, Beethoven, Haydn? É, gosto muito. Mas trocaria por 3 mulheres.

  3. Sabe, Milton, eu tenho uma relação estranha com Beethoven. Eu ouço muito suas composições, sou completamente fanático pelas obras do seu último período, mas quando me perguntam sobre favoritos, seu nome nunca vem a minha cabeça. Estive a pouco tempo atrás discutindo com um amigo sobre como é possível considerar uma obra perfeita, tanto num sentido técnico quanto num plano mais elevado, e mesmo assim não se identificar plenamente nela. Bach com sua religiosidade, Mahler com seu pessimismo e Shostakovich com seu sarcasmo me tocam mais do que quaisquer outros compositores. Mas se me perguntarem quem foi a maior influência na música ocidental, a resposta sai sem titubear: Beethoven. Tudo bem, é uma frase forte e houveram milhões de outros que se influenciaram mutuamente, mas o caso de Beethoven foi diferente, penso eu. A música vinha se modificando, mas de repente houve um salto monstruoso, quase desconexo. É realmente como se apenas uma mente tivesse vislumbrado uma possibilidade completamente diferente do que todos antes tinham pensado. Sua maneira de enxergar a música mudou completamente o jeito de se compor e não existe nenhum, absolutamente nenhum compositor após Beethoven que não tenha sido fortemente influenciado pelo mestre de Bonn. Quando me perguntam porque eu defendo tanto o ponto de vista de que a música erudita não é simplesmente um fundo sonoro, mas sim uma mensagem, um tratado intelectual e filosófico, eu sempre uso como exemplo a Quinta para mostrar minhas opniões. Em dois segundos, exemplifico como se pode fazer perguntas e respostas músicalmente, em seguida como é possível usar um mesmo tema para conduzir os ouvintes por paisagens distintas (a ponte entre o 1o e o 2o tema é feito pelo 1o tema sem modificações nas “notas”, mas com outro espírito), ou o 1o tema aparecendo em outros movimentos como ligação, e para em seguida termos uma conclusão completamente otimista. Ainda que subjetiva, a mensagem é clara e está lá para quem quiser enxergá-la. Um grande abraço a todos!

  4. Milton,

    não sei se você já leu, mas na piauí de fevereiro tem um texto pequeno na seção Esquina, chamado O Ziriguidum de Rachmaninoff ( http://www.revistapiaui.com.br/edicao_29/artigo_881/O_Ziriguidum_de_Rachmaninoff.aspx ) que é bem divertido. Merece uma leitura.

    Além disso, te linkei num post lá do meu blog, http://vinhal.blogspot.com/2009/02/luiz-caldas-sao-outros-carnavais.html em um pedido inusitado ao Luiz Caldas, para que ele demonstre a sua superioridade perante Bach e Beethoven e acabe logo a discussão desse post!

    Abraço
    Vinhal

  5. Caro Milton, BEETHOVEN também me exerce um fascínio impressionante. Pra mim, ele, juntamente com BACH e BRAHMS, correspondem a nove décimos daquilo que se constitui a arte musical. Sem nenhum exagero. MOZART até hoje nunca me prendeu a atenção, exceto por algums poucas obras. Sobre as sonatas do gênio de Bonn, recentemente concluí uma empreitada grandiosamente prazeirosa, que durou vários meses. Adquiri e baixei pela internet uma infindável seleção das referidas sonatas. Conheci tudo o que você possa imaginar. Não pretendo fazer as contas aqui, mas acredito ter conhecido mais de 15 integrais e outros ciclos quase completos. No mais, pude comparar, uma a uma, todas as sonatas, com mais de 20 intérpretes diferentes. Uma coisa monstruosa. Tive algumas decepções, não com as sonatas, mas com alguns intérpretes, como ARRAU, KEMPFF, BARENBOIM e o próprio GILELS, que são sempre muito bem falados, mas comparando-se uma a uma não tiveram uma única escolha. Alguns ciclos, porém, me deixaram entusiasmado, foram os de GULDA, GOODE, JANDO e KOVACEVICH. Resumindo, fiquei apenas com a melhor versão de cada uma. A lista é a seguinte:
    Sonata Nº 1 (GULDA)
    Sonata Nº 2 (GULDA)
    Sonata Nº 3 (GOODE)
    Sonata Nº 4 (GULDA)
    Sonata Nº 5 (GULDA)
    Sonata Nº 6 (GULDA)
    Sonata Nº 7 (KOVACEVICH)
    Sonata Nº 8 (JANDO)
    Sonata Nº 9 (KOVACEVICH)
    Sonata Nº 10 (ASHKENAZY)
    Sonata Nº 11 (GOODE)
    Sonata Nº 12 (YOKOYAMA)
    Sonata Nº 13 (KOVACEVICH)
    Sonata Nº 14 (GOODE)
    Sonata Nº 15 (GOODE)
    Sonata Nº 16 (KOVACEVICH)
    Sonata Nº 17 (ASHKENAZY)
    Sonata Nº 18 (KOVACEVICH)
    Sonata Nº 19 (JANDO)
    Sonata Nº 20 (GULDA)
    Sonata Nº 21 (JANDO)
    Sonata Nº 22 (KOVACEVICH)
    Sonata Nº 23 (BACKHAUS)
    Sonata Nº 24 (JANDO)
    Sonata Nº 25 (BACKHAUS)
    Sonata Nº 26 (GOODE)
    Sonata Nº 27 (GOODE)
    Sonata Nº 28 (GOODE)
    Sonata Nº 29 (POLLINI)
    Sonata Nº 30 (GOODE)
    Sonata Nº 31 (KOVACEVICH)
    Sonata Nº 32 (KOVACEVICH)
    Esta seleção condiz com o estilo beethoveniano de execução. É carregada de ímpeto, energia, expressividade e sentimento. Não troco ela por nada.

  6. Não entendo porque, para elevar (com toda justiça, diga-se de passagem) Beethoven seja preciso, mesmo que discretamente, depreciar Haydn… Concordo em que a obra de Beethoven é fantástica, e o já citado quarteto op. 132 é praticamente único. Já a Missa solene pouco me diz. Já o mestre nascido em Rohrau tem muita coisa desconhecida, e surpresasa quem se aventurar. O que dizer da Missa Santa Cecília, que só tem a gravação de Preston como decente? As sinfonias “Sturm und drang”? E a maravilhosa sonata em dó menor, praticamente esquecida? Bem, concluo com Minczuk: se Bach, Mozart e Beethoven formam a SSma Trindade da música, é preciso arrumar aí um lugar para Haydn…

  7. Sou ainda leigo em música. Estudo-a há pouco mais de um ano, teclado com teoria musical. Porém, ouço música erudita desde meus tempos de seminário, 13 a 15 anos de idade. À noite, todos os seminaristas deitados, prontos prá dormir, os padres (italianos) colocavam (quase sempre) a Quinta Sinfonia, de Beethoven, e algumas poucas valsas de Strauss. E isso se repetia todas as noites, com pouca variação, pois o seminário gozava de parcos recursos materiais, aí incluído o estoque de discos . Enfim, era apenas uma maneira de acalentar o sono dos possíveis futuros padres. Assim, conhecí Beethoven através da Quinta Sinfonia. Talvez, por isso, a inclua entre as obras mais geniais da Música Erudita, atemporal que ela é. Depois do seminário, seguí minha leiga vida musical, ouvindo aqui e alí (e comprando), outras músicas de Beethoven, de Mozart, de Vivaldi (tinha uma coleção em casa), de Tchaikowski, de Chopin, entremeadas com MPB, sambas de raiz, Saint Preux, Beatles, rock romântico … até que ví uma coleção “Best Bach 100”, nas melhores “casas do ramo”. Não conhecia Bach. O mundo anglo-saxão, ainda dominador do mundo, parece que não gosta muito dele. Culpa do Hitler e da Missa em Si menor? Pois bem, ouví Bach e me apaixonei imediatamente por sua música. Coisa instantânea. Sua música me emocionou. É isso. A música, prá ser realmente boa, tem que emocionar. Tem que entrar no ouvido e pousar no coração. Não basta ser perfeita, pois perfeitas há muitas. Falta-me profundiadade musical? Provavelmente, sim. Mas o que gostaria de discutir é isso. Por que as músicas de todos esses grandes mestres não me emocionaram na intensidade das de Bach? O que é mais importante prá se perceber uma música erudita como grandiosa: o conhecimento musical ou a sensibilidade musical? O que fez a música de Bach me tocar bem mais que as de outros gênios, a ponto de me levar a estudar música? Emociono-me com um Concerto Prá Clarineta de Mozart, mas não muito mais que isso. Com um Canon, de Pachebel, com uma Serenata ao Luar e Quinta Sinfonia, de Beethoven. Mas não há muito mais músicas de Ludwig que me faça emocionar. Já o Bach … Ah, o Bach! … Chego a pensar que essa questão de gosto musical é muito pessoal. É como comida. Adoro uma feijoada. Tem gente que não gosta. Gosto de uma rabada com polenta. Tem gente que não gosta. Adoro uma dobradinha. Tem gente que não gosta. Uma moqueca capixaba. Outros gostam de moqueca de camarão. Eu não gosto tanto. Será assim tb na música? Ou me falta profundidade musical? O fato de não gostar de ópera é ignorância musical ou não? Eu não gosto e não me sinto um ignorante musical. Afinal, adoro as músicas de Bach!

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