Dia desses, estava eu na sala de espera do dentista de minha filha quando vi uma Veja antiga bem do meu lado. Como sou um ser de algumas manias, comecei a folheá-la da maneira mais inteligente e correta, ou seja, de trás para diante. Logo, dei de cara com um artigo de Isabela Boscov — normalmente discordo dela — e, bem, ela estava coberta de razão. Numa crítica ao filme Katyn, de Andrzej Wajda, ela estende seu elogio a toda a geração de cineastas a qual pertence o polonês de 83 anos. É uma bela crítica, tão boa que perguntei à secretária do consultório se podia roubar a revista de quatro meses de idade. Ela deixou.
Neste ínterim, o Marcos Nunes pediu para que eu assistisse o filme Jean Charles. Não entendi bem o motivo, mas ia vê-lo de qualquer maneira. Gostei do filme de Henrique Goldman. Mais: saí do cinema quase entusiasmado. Por quê? Ora, porque vejo cada coisa ruim por aí que é bom saudar um filme com ritmo, atuações dignas e que retrata honestamente seres humanos muito reais.
O que isso tem a ver com a crítica de Boscov? Ora, tudo. Ela, após elogiar o filme de Wajda, entrou em surto fazendo uma longa digressão sobre o que fora o cinema entre os anos 50-70 e o que é hoje. Fellini, Antonioni, Bertolucci, Visconti, Bergman, Kurosawa, Truffaut, Malle, Godard, Kubrick e outros viam o cinema não somente como espetáculo. Eles tinham consciência de que tinham na mão um meio de expressão de apelo sem precedentes e tratavam de utilizá-lo como difusor de ideias — explícitas ou subliminares –, de imagens que não fossem uma derivação da publicidade, como fórum, etc. E eles foram bem sucedidos em sua tentativa de criar uma cultura relevante, tanto que seus filmes — e deveríamos citar também Clint Eastwood, Emir Kusturica, Francis Ford Coppola, Andrei Tarkovski, Hal Hartley, Alexandr Sokurov, Martin Scorcese e Werner Herzog…, misturo conscientemente seus nomes — formam talvez o mais completo referencial do que foi o século XX.
Mas não foi só o cinema que apequenou-se, foi a cultura de forma geral. Kurosawa sabia como fazer, mesmo com atores japoneses, um Trono Manchado de Sangue perfeitamente shakespeariano por ter recebido uma educação clássica ou, no mínimo, por ter estudado cada detalhe da obra original. Hoje, é tudo mais fácil. Não há necessidade de continuidade, de debate e assim vamos ficando cada vez menores.
Jean Charles é muito bom. Faz um relato seguro, honesto e até delicado de uma vida banal interrompida de forma estúpida pela paranóia e medo de um agente da Scotland Yard. Nada demais, mas talvez o máximo a que possamos aspirar nestes dias de decadência consolidada.
Na verdade eu não esperava que você gostasse de Jean Charles, como eu também fui ao cinema preparado para me aborrecer, e não me aborreci. Soube que o diretor era uma espécie de Jean Charles, um daqueles brasileiros que saem do país em busca de dinheiro e, quem sabe, alguma aventura, e enfrentam um mundo que, a princípio, necessita deles, mas os despreza, agindo com enorme hipocrisia social e econômica. Mas a merda é a tal da perspectiva, demonstrada pela personagem que, depois de se adaptar ao mundinho inglês, volta, como lamentavelmente se diz, “traumatizada”, mas, diante da insossa vida gonzagueana, retorna à Europa e, como boa parte dos brasileiros, aprende a se safar, até para comprovar que, além de iguais a todo mundo, o brasileiro tem um troço que os europeus não tem: ciência da miséria. Diante desse saber empírico, qualquer esquadrão antiterrorista, na verdade terrorista de Estado, é perfeitamente encarável. Mais do que um prato de farinha com garapa. Sempre me lembro de Vinhas da Ira, onde a mãe do herói fecha o filme com uma declaração de resistência da pobreza diante da adversidade. O ser humano é assim, como também disse o Faulkner, indestrutível. Ainda mais cascudo que nem a gente, de tanto levar porrada de tudo quanté direção. A bosta é que, no processo, a gente também se bestializa, e corre o risco de jogar água no moinho da estupidez sistêmica, aliás, nem corre o risco, joga mesmo, que nem cachoeira. Vida que segue ou, como a de Jean Charles, que não segue.
Eu gostei do filme. Os atores, principalmente o grupo do apartamento, estão muito bem e o diretor leva a narrativa com segurança.
Sim, ciência da miséria é a expressão certa. Mal aqui, menos pior lá. Há mais dinheiro lá e dar um jeito é com a gente mesmo. Vi um grupo de baianos num ônibus em Verona discutindo como discutiam Jean Charles e seus colegas. Um veronês não tinha lhes pago uma conta e eles iam fazer uma cobrança após o serviço. Claro que obteriam a grana. Os italianos são enrolões, mas pagam sempre e depois abraçam e beijam.
Precisam de nós, dos oriundi e dos outros, para serem seus cidadãos de segunda classe. É o paraíso dos faz-tudo, mas principalmente dos marceneiros (ficam ricos!) e enfermeiros. Estas duas últimas profissões ascendem socialmente mesmo.
Mas tergiverso. Gostei do filme.
Esqueci, como sempre, de uma coisa. Também vi o Katyn. História nojenta de se filmar; um documentário seria suportável, mas a dramatização das execuções e dos sentimentos daqueles que sobreviveram, depois ainda multiplicados pelo apagamento da história que se viu, apagando mais vidas e de maneira tão estúpida quanto em Katyn, são de arriar nossas resistências. Para produzir horror na mesma intensidade que o ser humano, só mesmo um deus. E penso que taí uma razão para a invenção dos deuses: eles servem, como a “natureza”, de álibi para nossas ações. No dia do Juízo Final, o primeiro a ser guilhotinado será o Rei.
Sem dúvida…
Não vi Katyn.
que interessante a resenha e os dois comentários…
eu ainda não fui assistir o filme.
Meio incompleta, Rodrigo. Mas foi o que deu para fazer hoje pela manhã…
Vai parecer uma destas histórias inventadas pela internet, e não tenho como provar que é verdade. Minha avó deve ter sido uma das primeiras emigrantes brasileiras a se por de frente aquelas mesinhas dobráveis detrás das quais sentavam-se os agentes alfandegários novaiorquinos, pelo menos os agentes dos filmes holliwoodianos que é onde sempre me pareceu viver essa senhora que eu conhecia apenas através de cartas. Ela me mandava longas cartas com a boa caligrafia das orgulhosas pedagogas formadas de antigamente e, criança ainda para entendê-las, não me faltava a intuição de que as escrevia mais para si mesma, para suportar a solidão. Era uma fugitiva. Fugia da mesmice, da ignorância, da indolência, e sua ousadia em atravessar para um outro hemisfério lhe dava o direito de apurar o ódio ao povo que deixava para sempre para trás. Como em todas as fúrias legitimamente femininas, o motivo verdadeiro era a traição. Depois de parir seis filhos, seu marido a trocou pela empregada da casa. Minha mãe, uma de suas filhas (a redundância se explica por eu ter chamado a nova esposa de avó até a morte), aprendeu a repudiá-la. Ainda hoje minha mãe tem um certo desconforto em chamá-la de mãe, uma espécie de vergonha da infantilização ligada ao termo. Meu avô já se foi há muito, tendo trocado de esposas inúmeras vezes_ como assinatura à triste sina que a vida lhe reservara, morreu durante o ato sexual_, e minha avó continua viva, aos noventa e dois anos, morando num sítio fruto de suas economias, aqui no Brasil. Como a sucessão de Aurelianos no romance de García Márquez, a cada ano aparece um homem alegando ser um dos bastardos da família (sempre homens, e sempre com o cordel de histórico de mulheres que comprovam a origem da libido acentuada.) Minha esposa mesmo, só baixou a guarda depois de insistentes provas de que, assim como não puxei o gosto pelo futebol e pelo comércio, minha aptidão é ser fiel como um papagaio. Minha avó viveu cinquenta anos nos EUA. É uma cidadã naturalizada. Trabalhou cinco anos na casa de Vladimir Horowitz, e ela diz que nunca houve ser humano mais cordial e generoso. Ela tem um LP assinado pelo Horowitz, um objeto que tem colocado à prova minhas virtudes de bom neto além dos limites. Trabalhou três anos para o João Gilberto, um homem passivo, regido pelos desmandos da esposa ( que muito maltratava minha avó).
Tergiverso também. Onde moro não tem cinema. Daí que só fico remoendo, louco para ver Loki e Jean Charles.
abraço.
Acredito em você, só não entendi qual foi exatamente a triste sina do seu avô… vejo mais a triste sina de sua avó: além de se naturalizar no País dos Idiotas, trabalhou para João Gilberto, o Rei dos Bananas. Triste sina é isso aí. Se onde moras não há cinema, fique feliz, pois se houvesse, estariam projetando Transformers. Novamente: triste sina seria isso aí.
Antes que me entendas mal: não sou nacionalista, mas sou um tanto antiamericano. A responsabilidade disso foi a ação aplicada desde a Doutrina Monroe, e eu acho isso perfeitamente compreensível e aceitável, tanto quanto sua avó não tolerar as traições de seu avô. Guardadas as devidas proporções, as situações se equivalem. No mais, o mundo inteiro está repleto de histórias sobre os fluxos migratórios mundiais; por mais que as contemos, elas sempre guardarão humanidade e frescor. Menos aquelas que são filmadas por Hollywood, é claro!
Já vistes algum exilado que não seja infeliz? Quanto à sina de meu avô, julgo-a triste pela teoria do sobrevivente do Elias Canetti. O corpo de um homem de sessenta e três anos já é suficientemente deplorável para entrar para os registros necrológicos com o desamparo de um orgasmo de última hora impresso na cara. E que humilhação para alguém que sempre fora um artista do sexo, ter fracassado em satisfazer sua parceira justo desta maneira irreparável. ( e aqui volto para um post anterior do Milton,em que ele cita o romance de Bellow “A mágoa mata mais”; o narrador deste romance confessa a inveja que sentia da beleza de seu pai, de seu charme aristocrático de profissional do sexo, algo que, em certa medida, eu compartilho.) E, o que não passou despercebido para esse faulkneriano de merda que aqui escreve, aproveitando a deixa de sua menção ao mestre, concluo com esta frase célebre de “As palmeiras selvagens”: “entre o nada e o sofrimento, ele ficaria com o sofrimento”. Entre a infelicidade de uma morte de certa forma prematura, eu ficaria com a visão dos campos de Minas Gerais, sentado numa cadeira confortável, esperando, ainda sem pressa, que a mão contumaz da providência venha me retirar de todos esses arranjos da experiência.
“O corpo de um homem de sessenta e três anos já é suficientemente deplorável para entrar para os registros necrológicos com o desamparo de um orgasmo de última hora impresso na cara. E que humilhação para alguém que sempre fora um artista do sexo, ter fracassado em satisfazer sua parceira justo desta maneira irreparável.” Mas aí o sofrimento é só nosso, para ele restou o nada. Então a sina dos sobreviventes que puderam mirar o registro do orgasmo assassino é bem mais dura, e taí um caso onde o nada é melhor do que o sofrimento… Mas, sim, é claro, é bem melhor sentir dor do que não sentir mais coisa alguma, embora tenha gente que, viva, faça todo esforço do mundo para isso, almejando o Nirvana…
Tergiversar, há coisa melhor?…
A história de miha família tem poucas coisas excepcionais e absolutamente nada internacional.
Mas sempre há algo… A especialidade de alguns dos nossos, antes de Horowitz, costuma ser ou o extremo moralismo ou a bebida a mais. Dois integrantes de minha linhagem resolveram tomar água durante uma bebedeira, mas lá no interior onde eles estavam, só havia água num poço. Sim, ocorreu o que imaginaste. Um se atirou e o outro foi atrás. Pura solidariedade etílica. Menos dois Cunhas no mundo. Taparam o poço….
(Meu sobrenome é “Cunha Ribeiro”).
Charlles, me apresente um bom músico que não seja dominado pela mulher? Não existe!
Ah, também sou uma natureza fiel…
Bom post e ótimos comentários!
Sem dúvida. Bom post e melhores comentários!
Eu lamento que meu post não tivesse sido grande coisa. Falta de tempo. Merda!
Você tem razão, principalmente quanto ao fato de irmos ficando cada vez menores. As coisas malfeitas parece que se impõem até como estilo. E a arte, hoje em dia, é feita como se fosse uma função qualquer. Digo no aspecto da própria vivência, do ato de fazer a arte. Sobre isso, me lembro de um depoimento de Marcelo Mastroianni em um livro sobre um filme de Fellini. Ele comentava com satisfação como trabalhar com Fellini era algo incorporado na vida Era um prazer pessoal, havia uma intensidade durante a feitura do filme. Era a arte vivida no dia-a-dia enquanto o trabalho seguia. Dá para notar pelas palavras do ator que havia uma qualidade nas relações que não permitia essa bobagem estabelecida hoje, isso de “sair pra trabalhar”. Nada disso. Existia uma unidade existencial entre o filme e tudo o mais que faziam na vida.
Achei meio parecido com velhas redações de jornais, do jornalismo de antigamente e de outras coisas que fazíamos. Era mais ou menos assim que vivíamos neste país, não acha? Talvez com menos mulheres e vinho de menor qualidade, os diretores também não eram tão bons quanto o Felinni, mas havia semelhança com a qualidade nas relações e esta unidade entre trabalho e vida de que falava o Mastroianni.
Acho que era bem melhor sem as divisões que hoje se colocam entre as nossas atividades. É interessante o que o Mastroianni fala: a qualidade final exposta na obra na verdade vinha de trás, do processo de trabalho dele com Fellini e os demais que faziam aqueles belos filmes.
Sobre a crítica que você leu, um serviço de utilidade pública: ela está neste endereço: http://veja.abril.com.br/080409/p_124.shtml
E quanto ao processo que você sofre e que o revisor do meu word não aceita de jeito nenhum, torço por você. Que coisa idiota. Fora o ataque claro à liberdade de expressão e ao debate, acusá-lo de ser antipolonês mostra a má intenção do processo.
Essa mulher está te fazendo mal. Parece que você até dorme com ela (calma, advogados, calma…) na cabeça. Fico aqui imaginando os dois cavalgando em sonhos; ela em um lindo cavalo baio branco como nuvens pairando sobre o pampa e você em um alazão negro.
Você não para de falar nela. Rezo, mesmo sendo um ateu dos diabos, para que neste processo haja um juiz de bom senso que determine que você fique pelo menos cinco metros longe da obra da sem acento. Vai te fazer um bem danado.
Milton,
teu post não tem nada de apressado, ao contrário. Gosto, particularmente, de quando te debruças sobre o empobrecimento artístico – humano ? – nas últimas décadas, como naquele post elegíaco ao rock dos 60 e 70.
Interessante, também, a atribuição do empobrecimento, Por José Pires em comentário anterior a este, a certa funcionalidade (que gosto de chamar de especialização ou profissionalização) da vida contemporânea.