O Marabá está morto

O Marabá está morto

Não há quase mais cinemas de rua em Porto Alegre. Todos os cinemas se internaram em shoppings. À noite, não se vê mais placas luminosas com letras quase sempre tortas ou faltantes anunciando filmes. Além, disto, os cinemas reduziram seu tamanho. Já faz tempo que desapareceram aquelas imensas salas em que funcionários com lanterninhas nos indicavam os lugares livres depois de iniciar a sessão. O VHS, a televisão, o DVD, o Now, o Netflix, a pandemia e o streaming, aliados à falta de espaço, de tempo e de charme transformaram nossas salas em coisas diminutas.

Mas a época do Marabá era diferente. O Marabá era um cinema que ficava em um bairro contíguo ao centro da cidade. Ou no bairro mais próximo a ele, se considerarmos que nosso centro é, na verdade, uma ponta enfiada no rio-lagoa-estuário Guaíba. O Marabá não tinha nenhum charme, não era frequentado por mulheres elegantes que deixavam rastros não de ódio, mas de perfume, atrás de si. Essas iam a outros lugares. Nenhuma surpresa nisto, pois o Marabá, fora construído para passar reprises e porcarias. Os filmes mais artísticos que lá vi foram as obras-primas kitsch de Jack Arnold: O Monstro da Lagoa Negra, O incrível homem que encolheu e — como esquecer dos gritos da mocinha? — A Revanche do Monstro. O enorme cinema ficava na rua Cel. Genuíno, 210, próximo à Av. José do Patrocínio. Só que, um dia, cansado de tanto passar filmes ruins, alguém de lá enlouqueceu e começou a passar somente grandes filmes em programas duplos. Eram apenas duas sessões — uma iniciava às 14h e outra às 20h — mas, meus amigos, que sessões! Um belo dia, estando eu na casa dos quinze anos, abri o jornal e li que o Marabá passava A Noite, de Antonioni, e Viridiana, de Buñuel, em seu programa duplo. Talvez a nova geração desconheça a expressão “programa duplo”. É o seguinte: semanalmente, eram apresentados dois filmes com um pequeno intervalo no meio para irmos ao banheiro e ao bar comprar balas, fumar, conversar, beber, namorar ou simplesmente esticar as pernas. Só que os programas duplos apresentavam normalmente filmes pornográficos ou de pancadaria. Nunca coisas daquele calibre.

Eu e um bando de loucos por cinema começamos a acorrer ao lúgubre Marabá. Aposentados e desocupados também pagavam o ingresso baratíssimo do cinema não muito limpo. Grupos de estudantes vinham ver e rever filmes enquanto matavam aulas. Minha sessão habitual era a das 14h. Formávamos uma peculiar fauna de jovens secundaristas, universitários, velhos e desempregados. Lembro de ter saído muitas vezes rapidamente de casa, batido a porta, lembro de pegar e pagar o ônibus, de parar nas imediações do centro e de correr como Catherine, Jules e Jim (ou Lola, para os mais jovens) em direção ao cinema. Comigo, chegavam outros esbaforidos. Trocávamos um cumprimento rápido e entrávamos. Comigo, muitas vezes veio Maria Cristina, minha primeira namorada. Quando víamos os filmes pela primeira vez, não protagonizávamos grandes cenas de amor nas poltronas desconfortáveis de encosto de madeira, deixávamos para fazer isto no corredor do edifício onde ela morava, na rua Santana. No máximo, trocávamos alguns beijos apaixonados no intervalo — afinal, estávamos ali pelo cinema. Porém, quando conseguíamos ir duas vezes na mesma semana, a segunda tarde era dedicada quase que inteiramente ao amor. Foi numa cadeira do Marabá — ou em duas, mais precisamente — que minhas mãos e boca tiveram seu primeiro contato com o seio feminino. Inesquecível. Não entrarei em detalhes sobre tudo o que fiz pela primeira vez no Marabá, mas não exagerem na imaginação, pois nossa primeira relação sexual, a minha e a dela, ocorreu numa noite, atrás do sofá da sala de sua casa… Voltemos ao cinema.

Depois vieram outros programas duplos. Houve Gritos e Sussurros (Bergman) e Amarcord (Fellini), Jules e Jim (Truffaut) e Ascensor para o Cadafalso (Malle), O Mensageiro (Losey) e Petúlia, um Demônio de Mulher (Lester), Janela Indiscreta e Um corpo que cai (ambos de Hitchcock), Cidadão Kane e A Marca da Maldade (ambos de Welles), Paixões que alucinam (Fuller) e O Sétimo Selo (Bergman), O Magnífico (de Broca) e A Malvada (All About Eve, de Mankewicz), West Side Story (Wise-Robbins) e O Criado (Losey), e, comprovando que a loucura tomara conta do programador, houve Andrei Rublev (Tarkovski) e Acossado (Godard), evento que deixou nossas bundas quadradas por longo tempo. Em 1975, após um programa duplo que apresentava Contos da Lua Vaga (Mizoguchi) e Morangos Silvestres (Bergman), comecei a ter aulas à tarde e a estudar para o exame vestibular. Planejava voltar ao Marabá quando entrasse na universidade, em 1976. Só que, neste ínterim, o Marabá morreu para virar garagem. Sim, após Dillinger está morto (Ferreri) fazer dupla com Um Caso de Amor ou O Drama da Funcionária dos Correios (Makavejev) começou a demolição. Ou seja, a glória do Marabá, um cinema de 1800 lugares fundado em 1947, foi sua agonia, a agonia de um querido dinossauro.

Não há mais cinemas de rua em Porto Alegre e também não há nenhuma cinemateca alucinada e radical como o Marabá. Quando as salas menores pareciam ter o poder de reabilitar para nós a gloriosa história do cinema, algo as trouxe para a isonômica mediocridade dos blockbusters. Resta-nos ver os filmes em nossa casa, às vezes na cama, podendo a sessão ser interrompida pelo telefone ou pela campainha da porta. Apesar das imagens perfeitas, não há o ritual de ir ao cinema, nem a sala escura onde somos ininterrompíveis, nem — perversão minha — o divino cheiro de mofo do Marabá, hoje substituído pela fuligem dos automóveis e pelos gritos dos manobristas.

A Cel. Genuíno hoje. Ela é a da direita.

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O Divã e a Tela completa dez anos falando de cinema

O Divã e a Tela completa dez anos falando de cinema
Enéas (em destaque) e Robson: amor ao cinema | Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Enéas (em destaque) e Robson: amor e polinização de cinema | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Publicado no Sul21 em 23 de novembro de 2015

O seminário sobre Cinema e Psicanálise da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), O Divã e a Tela, completa dez anos este mês. O Sul21 conversou com os coordenadores do projeto, Enéas de Souza e Robson de Freitas Pereira, numa mesa do Restaurante Santo Antônio, onde, para decepção dos garçons da casa, eram servidas carradas de observações a respeito de clássicos e não-clássicos da tela ao invés de carnes e bebidas.

Enéas é crítico de cinema, psicanalista e economista, tendo trabalhado como pesquisador da FEE/RS. Robson exerce a clínica psicanalítica e participa ativamente do diálogo entre psicanálise e cultura como autor. Os seminários da dupla normalmente consistem de uma introdução, em que cada um dos coordenadores fazem uma rápida exposição sobre o filme, a apresentação completa do mesmo, um intervalo e uma discussão pós-filme. A próxima sessão de O Divã e a Tela — a última deste ano — será em 28 de novembro com Glória feita de Sangue, de Stanley Kubrick. As sessões ocorrem sempre nas últimas sexta-feiras do mês,  na sede da APPOA, na Rua Faria Santos, 258.

Inicialmente, os filmes apresentados obedeciam apenas à preferência dos coordenadores do Seminário. Depois, passaram a ser escolhidos de acordo com o trabalho desenvolvido pela APPOA durante o ano. Atualmente, além deste critério, diz Robson, são utilizados outros dois: o de “dar espaço ao cinema nacional e seus diretores” e também aos “filmes clássicos, importantes na história do cinema”.

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Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Robson: “É fundamental reconhecer que o filme não está ali como uma ilustração para a psicanálise” | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Sul21 – O Divã e a Tela completa 10 anos. Como surgiu a ideia?

Enéas – Ali por volta de 2004 eu comecei a pensar na hipótese da gente fazer um evento que relacionasse cinema e psicanálise. Principalmente porque eu tinha os pés nas duas áreas, e eu, o Robson e outros amigos, conversávamos muito sobre cinema. Então eu propus ao Robson um encontro e a coisa começou.

Sul21 – Tu já fazias alguma coisa na APPOA, não, Robson?

Robson – Sim, antes mesmo da APPOA, eu fazia parte de um grupo que se chamava Centro de Trabalho e Psicanálise. E nós fazíamos discussões periódicas sobre cinema e psicanálise.

Sul21 – Mas isso foi bem antes de 2004, não é?

Robson – É, nos anos 90.

Enéas – Na época tinha muita coisa pipocando. Se um filme era importante de se discutir, a gente discutia dentro um seminário. Então a ideia foi fazer alguma coisa mais sistemática, um trabalho que reunisse seis ou sete filmes por ano.

Robson – Nossas reuniões ocorrem entre abril e novembro, sempre na última sexta-feira do mês. Geralmente são sete ou oito filmes, no máximo. A gente usa dezembro e janeiro para conversar sobre a programação do ano seguinte. Porque nós procuramos, de alguma maneira, colocar o foco não só sobre o diálogo entre cinema e psicanálise, mas também colocar a discussão em conjunção com os temas que a APPOA está desenvolvendo durante o ano.

Enéas – A APPOA tem um eixo, e a gente procura trabalhar em torno desse eixo.

Robson – Por exemplo, nesse ano que passou, o eixo foi em relação ao gozo e ao corpo. Então, nós abrimos com O Império de Sentidos, que é um filme marcante para a psicanálise. Lacan comentou a respeito nos Seminários. Outro que nós pegamos, dentro dessa temática, é Um Método Perigoso, que fala da relação entre Freud e Jung. O filme permitiu que a gente tocasse na história da psicanálise, da história dos conceitos, de como foram se desenvolvendo.

Enéas – Vamos dizer assim: a partir do terceiro ou quarto ano, a gente começou a fazer um alinhamento com os temas da APPOA. Nós dialogamos com os temas. Porque uma das coisas importantes é que a gente não aplica a psicanálise ao cinema. Não é uma relação aplicativa. Ela é uma relação de diálogo. Ou seja, os conceitos cinematográficos são trabalhados como conceitos cinematográficos e os conceitos da psicanalise como psicanalíticos. A gente não tenta fazer uma fusão. Aquilo que é cinema, pode fertilizar os conceitos psicanalíticos e vice-versa. Vou dar um exemplo, a questão do olhar em Lacan. Isso é, obviamente, algo bastante importante no cinema. Nessa dialética entre cinema e psicanálise, nós não “cinematizamos” a psicanálise e nem “psicanalisamos” o cinema. O Lacan tem uma frase muito bonita, que diz o seguinte: “Não se psicanalisa personagens em papel”. No caso, nós não psicanalisamos personagens em imagem.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Enéas: “Quando terminou ‘Quanto mais quente melhor’, que recebeu uma plateia culta, de psicanalistas, historiadores, arquitetos, etc., o pessoal bateu palmas” | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Sul21 – Pensei que os cineastas imitassem a vida enquanto vocês desconstruíam os filmes a fim de analisar os pedaços… O fato de ter um ator na tela, de ele ser um terceiro, facilitaria esta ousadia?

Enéas – A gente faz a discussão do filme. Essa é a proposta. Por quê? Porque tu não deves botar a psicanálise no filme, a economia no filme. O filme tem uma forma que deve ser respeitada.

Robson – É fundamental reconhecer que o filme não está ali como uma ilustração, seja pra buscar a psicopatologia de um personagem, seja para buscar uma contribuição da psicanálise para a cultura. Por exemplo, em O Som ao Redor, a ideia não era dissecar os personagens pensando na psicopatologia. Como o Enéas lembrou, o Lacan dizia que não se interpreta personagens de ficção, nem se faz a psicopatologia desse personagem. Nesse sentido, ele nos  ajuda a pensar de uma maneira mais geral. Quantas e quantas vezes, do ponto de vista psicológico, se disse que Hamlet era obsessivo? Que graça tem ir lá e dizer isso, “tá aqui o obsessivo e a sua relação com o pai, com o desejo, etc.”? Mas, é possível falar da relação de um sujeito com o seu desejo, com o desejo da mãe, ou seja, abrir essa discussão metapsicológica, abrir essa discussão sobre a obsessividade em geral, sobre a relação do homem com o desejo, com a morte.

Enéas – Por exemplo, Sarabanda, de Ingmar Bergman.  É uma história familiar completamente diferente do que normalmente se lê nos livros. Os filmes trazem novidades, trazem as vanguardas da sociedade para que os psicanalistas possam dialogar sobre o que aconteceu, sobre aquilo que ele vai ver na sua clínica.

Sul21 – Vi vocês analisando O Som ao Redor. Não sei se foi casual ou não, mas vocês se dividiram. O Robson analisou mais a questão de um personagem, dos personagens, da história, e o Enéas se dedicou mais a questão econômica, ao engenho. Vocês costumam fazer essa divisão?

Enéas – Bom, isso é possível, porque nós temos um diálogo entre nós. E mais, um filme tem uma multiplicidade de fatores e elementos que ninguém consegue discutir totalmente. Pelo menos não em um comentário do filme. Alguns desses fatores poderiam dar um seminário, porque aí nós poderíamos analisar mais profundamente cada aspecto. A totalidade de alguns deles é muito ampla. Quanto mais quente melhor rendeu uma bela discussão de cinema e de psicanálise. Uma das coisas mais fantásticas que eu já vi na minha vida — quando terminou o filme, que recebeu uma plateia culta, de psicanalistas, historiadores, arquitetos, etc., o pessoal bateu palmas. Aplaudiu o filme. Isso nunca tinha acontecido. Em uma plateia que não é de especialistas, isso nunca teria acontecido.

Sul21 – É um filme muito moderno. Há a questão da troca de sexos, e tudo sem preconceito.

Enéas – Sim, e o filme passa muita energia.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Robson: “Essa ideia do prazer, a questão lúdica, me parece fundamental, seja em relação ao cinema, seja em relação à matemática, por exemplo. Se não existe uma relação lúdica, não vai” | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Sul21 – Há o prazer de vocês envolvido, não?

Enéas – Sim, mas a gente faz também para avançar no conhecimento. Mas é claro que o lado do prazer está totalmente inscrito. Pega um filme como esse ou Amarcord, de Fellini, que é outro filme que adoraram. Trabalhamos também os grandes filmes nacionais. Santiago, do João Moreira Salles, Tropa de Elite, além de filmes mais antigos, como os de Glauber Rocha.

Robson – Há a ideia pedagógica de dar uma formação em relação à história do cinema, com relação aos conceitos psicanalíticos e também como o que tu falaste, ou seja, essa ideia do prazer, a questão lúdica, que me parece fundamental seja em relação ao cinema, seja em relação à matemática, por exemplo. Se não existe uma relação lúdica, não vai. Agora, queria voltar à forma de escolha dos filmes. Porque dentre os espectadores, ao longo dos anos, se formou um grupo fixo. Eles são os nossos interlocutores diretos nessa história. E também são os nossos consultores em relação à programação. Quer dizer, a decisão final é nossa, mas a gente está sempre em diálogo com eles. Então esse grupo é nosso cartel de trabalho, nosso “núcleo duro”.

Enéas – Tem outra coisa, nós já fizemos reuniões fora da APPOA, por exemplo, lá no Santander sobre Hamlet, e por exemplo, nós já fomos convidados para fazer discussões sobre filmes fora da POA. A gente não incrementa muito isso por causa da dificuldade de datas, etc.

Robson – Há colegas nossos que, a partir da nossa experiência, resolveram abrir seus locais. Por exemplo, em São Paulo e no Rio de Janeiro, também foram formados ciclos permanentes de discussão de cinema e psicanálise.

Sul21 – Um filme intimista, como por exemplo, o já citado Sarabanda, de Bergman, ou um filme de Antonioni… Eles seriam mais fáceis de serem analisar por psicanalistas? Vocês pegam poucos blockbusters. OK, já fizeram com A Origem, mas é raro.

Robson – Não são necessariamente mais fáceis. Eu acho que isso tem a ver com a própria história do movimento psicanalítico aqui na cidade. Houve um momento em que, quando se falava em cinema e psicanálise, tu ias para o filme intimista, ia para o Bergman, filme para psicanalista. Mas nós desejamos pensar a relação com a cultura. Isso devia ser expandido. Nós discutimos filmes como O Som ao Redor ou Tropa de Elite, que te permitem também leituras muito diversificadas e multifacetadas. Hoje é muito diferente de trinta anos atrás, onde tu tinhas que ter um filme que delineasse um personagem, que fosse uma coisa mais intimista. Hoje, eu acho que daria pra discutir Batman.

Enéas – A questão é sempre a seguinte: o valor principal da sessão é o filme. Sempre o filme e o que o cineasta propõe. Nós temos sempre o objetivo de mostrar o que o cineasta fez. O filme é sempre visto pelo lado da cultura. Nas sessões vão arquitetos, economistas, sempre tem uma série de grupos que vão lá. Tratamos o cinema como algo cultural que permite o diálogo com a psicanálise e com as outras áreas. Esse é o tema importante. Nós não temos aquela ideia de “vamos aplicar a psicanálise”. E o fato de nós estarmos vinculados com o eixo da APPOA, não significa que nós vamos fazer exatamente o que vai ser feito nos seminários da APPOA. O que eu acho que é importante no nosso seminário é que ele é um trânsito dentro da cultura. E esse trânsito tem pés em várias áreas às quais as pessoas estão vinculadas. Então nós também dialogamos transversalmente. Quando tu trabalhas a questão do cenário, tu trabalhas as questões da arquitetura. Quando tu trabalhas a questão da história, no caso de O Som ao Redor, por exemplo, tu trabalhas a formação histórica do Brasil. Essa é a questão importante. Ou seja, o filme dentro da história das imagens, o filme dentro da história da cultura. E é isso que nos permite esse diálogo com todas as áreas. E permite a cada um que está lá, frutificar, semear e fertilizar a sua área de trabalho. Nós criamos energia para que outros caras e para nós mesmos, desenvolvam essa realidade.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Enéas: “É aquela história, o diabo passa nos detalhes. É o que se diz na psicanálise também. O que diferencia um filme bom de um filme ruim é como o cara trabalha os detalhes” | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Sul21 – E como é a participação das pessoas no seminário?

Robson – A participação vem crescendo bastante. Como se trata de um seminário, eu e o Enéas somos os coordenadores. Então é esperado que nós façamos uma apresentação do filme, um comentário inicial. E aí, depois, abrimos para as pessoas comentarem.

Enéas – Primeiro assim, tem uma apresentação inicial de cinco minutos, é apresentado o filme, depois eu e o Robson fazemos um comentário de dez a quinze minutos e começa a discussão. Até esgotar.

Robson – Dependendo do filme, claro. Esse ano um filme que nos surpreendeu foi Rocco e seus irmãos, de Visconti. Ele prendeu a atenção, as pessoas ficaram discutindo, houve uma participação incrível.

Enéas – Porque tem isso, alguns vão lá só para verem um determinado filme.

Robson – Porque a gente já sabe que, por exemplo, se passarmos um  David Lynch, o setor jovem aparece lá. Então tem um determinado público.

Enéas – Bergman é para o pessoal mais antigo.

Robson – E tem aquele pessoal que diz assim: “Eu aceito ver filme velho brasileiro porque vocês vão passar, e porque vamos extrair alguma coisa de interessante”.

Sul21 – Quer dizer, aceitam pelo comentário?

Robson – Exatamente.

Enéas – Isso é uma coisa interessante. Como as pessoas se comportam em relação aos filmes. Tem todo um folclore…

Sul21 – Por exemplo…

Enéas – Por exemplo, tinha uns caras que chegavam lá e queriam ser analisados na sessão. “Eu por exemplo… na minha situação…” (risadas) Isso foi muito raro, aconteceu pouco porque a gente meio que cortou isso. Mas, por exemplo, para Fellini, é certo que comparecerá um determinado tipo de público para vê-lo. E vai outro para ver o cinema brasileiro. Para o cinema americano, outro.

Sul21 – Você devem ter diversos casos curiosos…

Robson – Temos, mas olha, é o seguinte: inevitavelmente, ao longo desses dez anos, aprendi uma coisa, temos que sempre chegar mais cedo para testar a aparelhagem. Isso que tem uma empresa contratada que vai lá, que faz a instalação, os ajustes, etc. Nos primeiros anos, eu ia lá horas antes e ficava junto com os caras. Depois eu achei que tudo bem, que os caras resolveriam e só dava instruções “olha, esse filme é em preto e branco, precisa abrir mais o brilho, a iluminação, o contraste”. Mas, inevitavelmente, tem que chegar lá e testar, porque tu nunca sabes se vai estar funcionando.

Enéas – Outro aspecto interessante nosso é que fomos a primeira entidade do Brasil a apresentar Sarabanda. Porque Sarabanda não tinha vindo pra cá.

Robson – Assim como fomos os primeiros a passar Pina. Eu tinha voltado da França, consegui uma cópia.

Sul21 – Antes do cinema comercial?

Robson – Sim.

Enéas – Sarabanda também.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Robson: “Que roteirista conseguiria financiamento para um filme em que o Brasil tomava 7 a 1 da Alemanha?” | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Sul21 – Tu tens uma predileção por Sarabanda, não é? Eu também.

Enéas – Eu gosto muito. Normalmente, quando o cara, no caso Ingmar Bergman, faz um último filme, é um filme médio. Esse não, esse filme é excepcional.

Robson – Com exceção do John Huston, que finalizou com Os mortos.

Enéas – Sarabanda tem novidades antropológicas, novidades psicanalíticas, novidades cinematográficas. É notável a forma como ele faz a exposição do roteiro através de uma série de segmentações utilizando, principalmente, o ponto de vista cenográfico, do ambiente, da roupa. As cenas são densas porque o que acontece com o personagem principal é mostrado fisicamente no filme e cinematograficamente com as roupas e cenário e na própria relação dele com a Liv Ullmann. Uma outra cena importante é a que mostra o incesto do pai e da filha. Ela é absolutamente excepcional. Bergman mostra o pai deitado, a filha deitada na frente, o movimento de câmera mostra a relação dos dois, e ao mesmo tempo tu tens a presença da mãe no retrato. Ali há todo tipo de reflexão e é uma cena de simplicidade absoluta. A relação da Liv Ullmann com a neta… A forma como elas conversam, o crescimento do vermelho no rosto, a bebida, a intimidade, a relação, marca a possibilidade dessa guria se afastar daquele cara.

Sul21 – A cena da igreja…

Enéas – Aquela cena da igreja é genial. Toda a construção é fabulosa.

Robson – Tu tinhas falado, Milton, a respeito dos filmes intimistas, que possibilitam talvez um diálogo maior com a psicanálise. Ali está todo o estilo do Bergman, que mostra o tempo todo o fracasso da função paterna e de várias relações. Aquele avô jamais conseguiu transmitir alguma coisa para o filho dele, a não ser a relação de ódio. A relação é instrumental, digamos assim, “eu sustento, eu sou o provedor, as coisas tem que ser construídas da minha maneira”.

Enéas – Esse é o tipo do filme para o qual tu podes fazer uma análise perfeitamente psicanalítica, tranquila, sem nenhum problema, ou uma análise cinematográfica. E as duas dialogam. Esse filme dá uma ideia do que se pode fazer.

Sul21 – Vocês puxam muitos detalhes, coisas que normalmente passam por cima do olhar mais desatento.

Enéas – É aquela história, o diabo passa nos detalhes. É o que se diz na psicanálise também. O que diferencia um filme bom de um filme ruim é como o cara trabalha os detalhes.

Sul21 – Falando em bons e maus filmes, como vocês comparam a situação cinematográfica do ano passado e desse ano? O ano passado parece que trouxe muita coisa boa e esse ano foi uma desgraça.

Enéas – Nada sobrevive num ano de Copa do Mundo e eleições, não é?

Robson – Talvez a gente possa entrar no lugar comum, e dizer que a realidade superou amplamente nossa capacidade de sonhar e de ficção.

Enéas – A questão é: como é que os caras iam fazer uma programação cinematográfica de grande qualidade tendo jogos todos os dias?

Robson – E vamos insistir na ironia: que roteirista conseguiria financiamento para um filme em que o Brasil tomava 7 a 1 da Alemanha? Quem é que ia financiar isso? (risadas)

Enéas – Só os alemães, e olhe lá. E como eram jogos muito seguidos, a programação de cinema ficou “ilhada” naquele mês. Mas realmente, tem pouco filme aí. Há um velho fato: o problema da distribuição no Brasil, que já esteve muito melhor. A produção europeia chega pouco e o que dizer dos chineses, japoneses, coreanos, russos?  Mesmo filme alemão não chega. Chega filme americano e alguns filmes franceses. Então fica muito difícil fazer uma boa programação. Além do mais, acho que tem um outro problema, que é um problema da realidade contemporânea, que é um certo afastamento dos jovens do cinema. Porque eles baixam os filmes. Veem no celular, no tablet, etc. Então tu tens uma modificação nos dispositivos. Nós somos da geração em que o cinema era a tela, a sala escura. A gurizada não pensa assim.

Robson – Eles talvez tenham substituído a qualidade da imagem, a qualidade da projeção, pelo acesso mais rápido e direto.

Enéas – Mudou o suporte. Em vez da tela, tu tens uma tela de computador, ou uma tela de celular, a recepção do filme tornou-se individual. E mais, os filmes são vistos sob a luz de lâmpadas, caminhando, no carro, em lotação, etc. O cinema tradicional, a meu ver, hoje está mais na função que o teatro tinha quando o cinema começou a existir. Ou seja, quem vai ao cinema são os caras que gostam de especiarias.

Em 2011, Enéas e Robson publicaram, com outros coladoradores, um livro sobre os filmes apresentados e, O Divã e a Tela | Foto: Filipe Castilhos/Sul21
Em 2011, Enéas e Robson publicaram, com colaboradores, um livro sobre os filmes apresentados até aquela data em O Divã e a Tela | Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Sul21 – Eu noto que os blockbusters entram e saem rapidamente. O ciclo é curto.

Robson – Eles precisam faturar alto e rápido. No primeiro fim de semana já sabem se vai dar certo ou não. No segundo final de semana já sabem quando vai morrer.

Sul21 – Há uma produção interessante que jamais chega aqui, da qual a gente apenas lê ou baixa. Ela poderia ser passada, em algum lugar. Em seu último livro, o Hobsbawm fala que a música erudita, assim como jazz, acabou se transformando em “Produto de Festivais”. Vocês acham que o cinema artístico pode acabar também ilhado ou apresentado apenas em Festivais?

Robson – Eu não sei o que dizer, não tinha pensado nisso. Mas talvez a tendência de estar nos festivais venha e abranger o cinema e a música. Com a queda de vendas dos CDs, os músicos divulgam seus trabalhos na internet ou se apresentam ao vivo em festivais. Tu vês que, internacionalmente, aumentou a proliferação de grandes festivais de música. O Lollapalooza virou uma franquia, o Rock in Rio também é outra franquia que no ano que vem vai acontecer no Rio de Janeiro e nos Estados Unidos. É onde tu consegues reunir o maior número de pessoas.

Enéas – E tem o problema econômico. Há uma forma oligopólica de dominar a divulgação de um filme. Ou seja, a cadeia de divulgação está totalmente dominada pelas grandes empresas. Então, por exemplo, veja a jovem produção do cinema brasileiro. O que acontece é que normalmente esses filmes vão para os festivais em busca de espaço. Ou seja, é uma forma de constituir um circuito.

Sul21 – E, para finalizar, falemos um pouco sobre o filme da próxima sexta, Glória feita de Sangue, de Stanley Kubrick?

Robson – São 100 anos da Primeira Guerra, a que inaugura a guerra moderna. O personagem principal é um oficial que, fora dali, é advogado.

Enéas – Era uma guerra de trincheiras, os caras tinham que avançar até a próxima posição e não conseguem ou nem tentam, por medo. Aí são escolhidos três covardes de cada batalhão para serem julgados. E Kirk Douglas é o advogado e o comandante daquele batalhão.

Robson – O filme é baseado em fatos reais. A partir da metade da guerra, a França não tinha mais condições de bancar avanços. Eles não tinham como se rearmar para investir contra a Alemanha. A situação era tão precária e as ordens tão absurdas que começaram as deserções e a insubordinação no exército francês. Havia uma óbvia recusa a participar deste suicídio.

Enéas – Sim, quem saía da trincheira para avançar era metralhado. É um filme curto, denso e muito bom. Naquela época — anos 50 e 60 –, os filmes não eram tão longos. Eu sou do tempo que as sessões de cinema eram assim: às duas, quatro, seis, oito e dez horas da noite. E, antigamente, quando eu era menino, às três horas tinha matinê. Às vezes tinha às seis da tarde, que era a matinê das moças.

Por Filipe Castilhos/Sul21

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Melancolia, de Lars von Trier

Vi duas vezes Melancolia, de Lars von Trier. A primeira foi logo na pré-estreia, na primeira sessão do filme em Porto Alegre. Eu não podia deixar de fazer isso. Lars von Trier, Emir Kusturica, Peter Greenaway, Abbas Kiarostami, Roman Polanski e talvez Alexander Sokurov ainda mantêm viva aquela curiosidade que no passado tinha cada lançamento de Bergman, Truffaut, Tarkovski ou Antonioni. Destes, dos modernos, apenas von Trier, Kiarostami e Polanski têm vida comercial em cinema. Os outros estão em DVD e olhe lá.

Ontem, ao sair do cinema, depois de ver o filme pela segunda vez, minha mulher pôs em palavras minha opinião. Ela disse que achara Melancolia mais simples e inferior a Anticristo. Estou de acordo. Mas a produção cinematográfica de nosso tempo é tão lastimável que não me surpreendo com as loas que tecem à Melancolia como obra-prima e candidato a “filme do ano”.

A ação do filme centra-se menos no fim do mundo — o planeta chamado Melancolia aproxima-se da Terra e os cientistas são cétidos sobre se Melancolia vai passar ou bater…  — , mas na relação entre as irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg). O início é muito bonito plasticamente — momento em que lembramos da deslumbrante abertura de Anticristo. São dez minutos com a música de Wagner (Tristão e Isolda) que terminam com o maior dos spoilers: o choque entre Melancolia e a Terra. Ou seja, já de saída somos informados do provável final. Quem vê o filme pela segunda vez nota claramente a simbologia da abertura. Justine, vestida de noiva, tenta avançar mas está amarrada pelas pernas. Claire, charfurdando, leva o filho no colo para não se sabe onde, nem ela. Justine constrói com o sobrinho a “proteção” para o fim do mundo. Novamente Justine, de vestido de casamento, é levada pelas águas. Os planetas chocam-se.

Como ocorre com tantos bons filmes (lembrar de voltar a este assunto), Melancolia está dividido em duas partes. Estas têm os nomes das irmãs. Na primeira, Justine casa-se numa cerimônia de opereta. Poucas vezes vi uma depressão ser tão bem caracterizada. Justine não quer casar, não parece interessada, está de saco cheio de tudo, da vida, do chefe, do futuro marido e parece apenas dar importância ao pai brincalhão (John Hurt) e à irmã. Neste trecho do filme há muito que observar. É notável como retorna ali, perfeitamente reconhecível, o cineasta que criou o Dogma 95. A câmera está na mão de alguém nervoso, os cortes ocorrem com frequência e em momentos pouco habituais, as crises são resumidas por von Trier em “apresentação da situação” e “consequência”. Neste modo cinematográfico de mostrar os fatos, as falas nunca são longas. E como rende!

A narrativa aproxima-se do clássico na segunda parte. É quando Claire, que ama a vida, desespera-se. Justine, pelo contrário, parece conformada e ciente de tudo o que ocorrerá. Porém, seu bom senso e inteligência é complementado por desconcertante passividade, a mesma utilizada para entrar na fria de sua festa de casamento. Ela sabe de seu destino. E sabe que nada pode fazer a respeito. Cética, fatalista e paralisada, faz uma adivinhação surpreendente e, transformada em oráculo (Respondendo a meu filho Bernardo: acho que o número de feijões adivinhado apenas quer dizer “eu sei tudo”), revela para a irmã a verdade fatal: “a humanidade é má, a Terra não merece existir, não há deus, nem vida em outro planeta, esqueça”. Quando Claire balbucia uma reclamação sobre o futuro de Leo, seu filho, Justine não responde.

À medida que von Trier envelhece, fica cada vez mais claras suas influências: Tarkovski e Strindberg. Se Anticristo é dedicado a Andrei Tarkovski e é tão próximo a O Espelho (1975), Melancolia parece vir de Solaris (1972). Lá também a ficção científica foi utilizada para cogitar e interrogar o humano e a humanidade. Como nos filmes do russo, o olhar dos personagens para o céu e o para que não entendem reflete um mergulho em suas interioridades. Muitos, como o marido de Claire (Kiefer Sutherland), não suportam conviver com ela. É Tarkovski e não é; trata-se é uma continuidade. Uma vez, com entrevistadores mais inteligentes que os de Cannes, Trier disse algo mais ou menos assim: “Tarkovski é um deus real para mim. Quando eu vi O Espelho, Stalker e Andrei Rublev, mesmo num televisor pequeno, fiquei em êxtase. Se você quiser falar sobre religião, eu te respondo que minha relação religiosa é com Tarkovski. Ele viu o meu primeiro filme e o odiou… Mas eu me sinto muito próximo a ele”. O deus de Trier é punitivo…

Não estou com pressa de terminar hoje. Ontem, publicamos no Sul21 uma entrevista que fiz com o escritor Charles Kiefer e vejam só. Na entrevista também havia uma questão de troca identidade e revelação da verdade do leito de morte da mãe. Quando a mãe de Trier morreu, ela lhe contou que seu pai não era o judeu Trier, mas Fritz Michael Hartmann, de família católica alemã. Vários de seus novos parentes eram renomados músicos, etc. Após quatro encontros nada felizes, o alemão recusou-se seguir mantendo contato com o filho. Isso não explicaria a entrevista de Cannes, quando ele se disse “nazista” e não judeu? E como fazer para não olhar para a melancolia e Melancolia, quando ela aparece como uma enorma esfera pronta a nos aniquilar?

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Tema recorrente

Dia desses, estava eu na sala de espera do dentista de minha filha quando vi uma Veja antiga bem do meu lado. Como sou um ser de algumas manias, comecei a folheá-la da maneira mais inteligente e correta, ou seja, de trás para diante. Logo, dei de cara com um artigo de Isabela Boscov — normalmente discordo dela — e, bem, ela estava coberta de razão. Numa crítica ao filme Katyn, de Andrzej Wajda, ela estende seu elogio a toda a geração de cineastas a qual pertence o polonês de 83 anos. É uma bela crítica, tão boa que perguntei à secretária do consultório se podia roubar a revista de quatro meses de idade. Ela deixou.

Neste ínterim, o Marcos Nunes pediu para que eu assistisse o filme Jean Charles. Não entendi bem o motivo, mas ia vê-lo de qualquer maneira. Gostei do filme de Henrique Goldman. Mais: saí do cinema quase entusiasmado. Por quê? Ora, porque vejo cada coisa ruim por aí que é bom saudar um filme com ritmo, atuações dignas e que retrata honestamente seres humanos muito reais.

O que isso tem a ver com a crítica de Boscov? Ora, tudo. Ela, após elogiar o filme de Wajda, entrou em surto fazendo uma longa digressão sobre o que fora o cinema entre os anos 50-70 e o que é hoje. Fellini, Antonioni, Bertolucci, Visconti, Bergman, Kurosawa, Truffaut, Malle, Godard, Kubrick e outros viam o cinema não somente como espetáculo. Eles tinham consciência de que tinham na mão um meio de expressão de apelo sem precedentes e tratavam de utilizá-lo como difusor de ideias — explícitas ou subliminares –, de imagens que não fossem uma derivação da publicidade, como fórum, etc. E eles foram bem sucedidos em sua tentativa de criar uma cultura relevante, tanto que seus filmes — e deveríamos citar também Clint Eastwood, Emir Kusturica, Francis Ford Coppola, Andrei Tarkovski, Hal Hartley, Alexandr Sokurov, Martin Scorcese e Werner Herzog…, misturo conscientemente seus nomes — formam talvez o mais completo referencial do que foi o século XX.

Mas não foi só o cinema que apequenou-se, foi a cultura de forma geral. Kurosawa sabia como fazer, mesmo com atores japoneses, um Trono Manchado de Sangue perfeitamente shakespeariano por ter recebido uma educação clássica ou, no mínimo, por ter estudado cada detalhe da obra original. Hoje, é tudo mais fácil. Não há necessidade de continuidade, de debate e assim vamos ficando cada vez menores.

Jean Charles é muito bom. Faz um relato seguro, honesto e até delicado de uma vida banal interrompida de forma estúpida pela paranóia e medo de um agente da Scotland Yard. Nada demais, mas talvez o máximo a que possamos aspirar nestes dias de decadência consolidada.

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Três grandes amigos: Luís Frederico Antunes, Fernando Monteiro e Marcelo Backes

1. Estou obtendo minha cidadania portuguesa. É um processo que parece fácil quando lido no papel, mas que se complica numa burocracia inteiramente diferente da nossa. Todos os documentos têm prazo de validade, todos têm de ser reemitidos, inclusive a certidão do nascimento de meu avô, ocorrido no ano de 1900, e o óbito de meu pai. É como se fatos novos pudessem alterar seus conteúdos. A parte chata é esta, a da fria papelada. A parte interessante é a comprovação dos vínculos com Portugal. Valem quaisquer comprovações lusófonas, desde fotografias tiradas em Portugal, associações a entidades portuguesas, interesses sobre a cultura e até depoimentos abonatórios de portugueses. Mostrei as minhas, que penso serem suficientes. Para tanto, é necessário escrever uma carta de próprio punho ao Ministro da Justiça português. Agreguei à minhas justificativas algumas curiosidades, como a árvore genealógica que gerou este desfrutável rebento, o notável e infelizmente falecido blog Cidades Crónicas, do qual fui prefeito por uma época, e o esplêndido depoimento abonatório do professor e doutor em História Luís Frederico Antunes. Conheci-o através da Internet. Fizemos uma bela amizade por e-mail logo após a vitória do Inter no Campeonato Mundial Interclubes sobre o Barcelona. A rede é maravilhosa para se fazer amizades em que os laços advém não da proximidade física, mas das afinidades e das eleições pessoais e ideológicas. Pedi então ao amigo — que antes já me conseguira a certidão de nascimento do meu avô por duas vezes! — que dissesse que não sou Hannibal Lecter, que sou apenas um bom e real português com quatro gerações de ascendentes nas proximidades de Aveiro e de seus ovos moles. A carta abonatória é uma obra de arte.

A quem possa interessar

Atesto por minha honra que Milton Ribeiro, brasileiro de nascimento, é de origem genética e cultural profundamente português. Na realidade, fui o signatário responsável pela pesquisa efectuada no Arquivo Distrital de Aveiro sobre as raizes familiares de Milton. Lembro-me que o seu avô Manuel Martins Ribeiro nasceu em 21 de Fevereiro de 1900, na aldeia do Pinheiro, freguesia de S. João de Loure, do concelho de Albergaria a Velha, distrito de Aveiro.

Mais, ele era sapateiro de profissão e os seus pais (logo bisavós de Milton) eram igualmente gente da terra lusitana. Declaro que sou leitor assíduo do seu caderno digital ( http://opensadorselvagem.org/blog/miltonribeiro ). Os artigos e opiniões aí editados comprovam na perfeição que Milton domina com esmero a língua de Camões e que tem ideias – o que é agradável -, especialmente quando, o que é o caso, são interessantes. Este facto reputo de muito importante na medida em que, nos dias que correm, já vai sendo raro, mesmo para os nados em Portugal.

Finalmente, o facto que melhor indica a sua origem portuguesa é ter um coração vermelho, adepto do glorioso SPORT LISBOA E BENFICA. Aqui, por terras lusas, se diz que quem não é do Benfica não é nem bom chefe de família, nem bom português.

Por tudo isso, EU POSSO ATESTAR QUE MILTON RIBEIRO PREENCHE TODOS OS REQUISITOS PARA SER UM BOM CIDADÃO PORTUGUÊS.

Luís Frederico Dias Antunes
Natural em 1954, em Goa, (antigo Estado da Índia).
Bilhete de Identidade emitido pelo Arquivo de Lisboa xxxxx63
Sócio cativo do Glorioso 39286

Luís, muito obrigado. Novamente.

2. Leiam que bela crônica Fernando Monteiro publicou no último sábado, no JORNAL DO COMMERCIO. Ele estará hospedado em minha casa no início de novembro. Se bem lembro, vem aqui entre os dias 3 e 8 de novembro para a Feira do livro. No dia 7, palestrará na Feira sobre o tema QUEM MATOU O LEITOR?, segundo ele uma espécie de palestra policial. Fernando é outro amigo que nunca vi e que chegou através da rede. Este ateu jura que adora a Internet.

Lembrança de Antonioni

Li, recentemente, o autobiográfico Comincio a capire – de um dos autênticos gênios do cinema, o italiano (de Ferrara) Michelangelo Antonioni. O título do livro revela bem a surpreendente modéstia do artista que achava que “o passado e a vida estavam por se fazer mais entendidos (por ele) somente na velhice”.

Num ano já longínquo, visitei Ferrara – e não me lembro de ter feito associações da cidade senão com a literatura. Para mim, em 1969, Ferrara e suas fumaças se mapeavam, na moderna cultura italiana, muito mais pela família Finzi-Contini – do romance de Bassani – do que pela certidão de nascimento do autor de Blow-up.

Isso foi há quase 40 anos. Teria sido uma boa oportunidade para tentar ver Ferrara com os olhos do grande diretor… mas os meus – e outros olhos inquietos, no pós 68 – estavam então “enevoados”, à sua maneira, pela arrogância da juventude que nunca quer ver nada pelos olhos alheios. Terminada a leitura da autobiografia, tentei rever a imagem do diretor naquela Roma da primavera de 1970: ágil e elegante, aos 58 anos, num restaurante francês da Via Mangili, muito longe da sua cidade e morada agora definitiva.

O restaurante era francês porque G. o escolhera para a nossa piccola extravagância. Minha colega de turma no Centro Sperimentale era filha de um romano e de uma francesa de Montpellier. No final do almoço no La Piscine, a nossa atenção se distraía com a mesa logo ao lado, onde havíamos assistido o diretor Michelangelo Antonioni ser o tempo todo servido com grande solicitude (extensiva às duas senhoras que o acompanhavam e que riam mais do que a minha lisa paciência podia suportar).

O que querem? Era 1970, eu tinha 21 anos – e a minha geração tinha raiva de tudo. Hoje, a pasmaceira não permite que se compreenda jovens como nós fomos, no Rio, no Recife ou em Roma.

O cineasta parecia um homem calmo, sereno. Apenas esboçava um sorriso quando as mulheres riam, talvez mais atento ao jogo da luz enviesada iluminando trutas e outras iguarias nos pratos. “Todos comem pouco quando fumam” – dizia a minha amiga. “Por isso é que ele é tão magro?”

Na dúvida – e antes de pagarmos a conta bem examinada – G. se levantou e, com o largo menu na mão, se dirigiu a Antonioni, para… pedir um autógrafo?! Não acreditei nos meus olhos enevoados, ou não, pelo monte de liras gastas (e não com trutas delicadas). Fiquei “na minha”, mal acompanhando, pelo canto do olho, a acolhida por parte de Michelangelo, o meio sorriso mais uma vez esboçado e o rápido sacar de uma caneta muito grossa – uma espécie de “pincel atômico” – retirada do bolso a fim de assinar, com segurança, na carta do La Piscine. Quando G. voltou, eu perguntei porque lhe interessava o autógrafo daquele “solene amontoador de caixas vazias” (usando de uma definição meio invejosa que nem sequer era minha, mas de Orson Welles, que só admitia o gênio próprio). Ela sabia tanto da minha admiração pelo diretor de Cidadão Kane (e por Godard e Straub), quanto da minha antipatia, naqueles anos, pelo “cineasta da incomunicabilidade”. Talvez porque esse tema me parecesse um luxo no mínimo dispensável, debaixo das botas de 64.

Com o autógrafo de vinte centímetros (e “quilométrica vaidade”, denunciei) na mão, a minha amiga apenas sorriu – ainda mais serenamente do que o Signore que acenaria de volta, para ela, ao sairmos… jovens e imortais na primavera romana.

Faz muito tempo. Eu mudei. E o mundo também mudou, entre cores e cinzas, filmes memoráveis e discursos sinceros sobre a transformação – ainda possível – dos mundos que portamos todos, incomunicáveis.

Eu, pouca coisa mais moço que Fernando, também custei a ser dobrado por Antonioni.

3. Adriana Falcão não tem culpa de nada. Ela enfrentou Marcelo Backes no Jogo 6 da Copa de Literatura Brasileira. Numa boa, levou um vareio. E eu, ocupadíssimo em toda semana passada, também. Marcelo esteve — de quarta-feira à sábado — com a Nina em Porto Alegre e eu os perdi. Mau amigo, liguei para ele só às 15h de sábado, quando o casal já estava mais para avião de volta do que para nós enquanto bar. Lamentável, ainda mais que Marcelo mandou dois e-mails com todos seus telefones, direções e saudades. Todas perderam a validade, menos o número do celular e as saudades, que ficou em mim recrudescida depois de conversamos, alemão. Merda de vida.

Voltando à Copa, Marcelo já está nas semifinais, pois enfrenta o apenas simpático Na multidão, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Dedicamos todo o respeito a nosso adversário teoricamente mais fraco e acreditamos que ele VIRÁ BEM ARMADO. Apesar disso, sabemos da obrigação de ganhar os três pontos para deixar satisfeita a grande massa torcedora aqui presente.

Não conheci o Marcelo Backes através da Internet, mas de um memorável churrasco.

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