Acordei hoje com considerável dor de cabeça, algo que era habitual até meus vinte anos, mas que não me ocorre mais. Dizem que eu sofria de enxaqueca, principalmente porque a luz piorava tudo. Logo descobri que o melhor era ficar num quarto sem muita luminosidade, lendo ou ouvindo música. Em algumas horas, voltava ao normal. Há pouco tomei um paracetamol. Ele resolveu o que nenhum remédio resolvia antes.
Por que será que a gente encafifa com assuntos passados sem nenhuma relação com o presente? Pois hoje, sei lá por quê, enleei-me num episódio cômico ma non troppo de uns dez anos atrás. Sorria enquanto tomava café. Meu casamento estava charfurdando na crise que o matou, eu ainda vivia com minha ex, mas não havia nenhum interesse nem dela, nem meu. A gente ficava junto por inércia e por não ser ruim o suficiente para sair batendo a porta. Éramos apenas amiguinhos. Não obstante, eu mantinha a fama real de não trair. E não traía mesmo.
Como sói acontecer, o local mais espetacular que frequentava era a academia. O resto era assexuado: trabalho, crianças, até amigos e amigas. Eu era uma espécie de piadista oficial da academia ou, sendo mais veraz, diria que era um dos vários focos de geradores de assuntos e atenção. Aquilo me deixava feliz, vaidoso. Alongava, cumpria todo o treino com afinco (verdade, adoro!), corria meus trinta minutos, alongava de novo e conversava muito durante os intervalos e no final. Contribuíam para isso o café, o chimarrão e a cozinha sempre aberta da enorme ex-residência onde se esbelecera a academia. Raramente faltava a meus dois os três compromissos semanais lá.
Claro, um dos sintomas que quem está a fim de trair é o de reservar amigos para si e a turma da academia era só minha. Lá, a presença de minha ex — chamada Suélen ou Pâmela, nunca lembro –, seria imprópria e, verdade seja dita, ela nunca quis juntar-se a nós, sinal inequívoco de que o que havia aqui, talvez houvesse lá. Então, não eram necessárias grandes preocupações nem cavar ou pedir um espaço para mim. Este me era dado de presente. Havia, ora se não, minhas instrutoras preferidas e aquela com a qual mais gostava de fazer meus alongamentos e receber orientações era a dona da academia. Muito competente, tinha uns dez anos a menos do que eu (deve ter ainda, parece que isto não costuma alterar-se…) e não costumava deixar sem respostas nenhuma das minhas perguntas sobre encurtamentos e nódulos musculares. Principalmente os do pescoço. Algumas vezes pedia-lhe que dissolvesse aqueles nódulos com massagens, o que ela fazia com miraculosa habilidade.
Alongamentos, encurtamentos, etc. e não lembro como a conversa esquentou, mas posso garantir que foi subitamente, sem obedecer a nenhum planejamento. Com o papo indo por aquele caminho que faz uma parte de nosso corpo de menino estremecer, ela resolveu me alongar deitando-se sobre minhas costas, coisa que já fizera outras vezes de forma absolutamente profissional. Não tenho inteira certeza da posição em que ficava, mas acho que rezava voltado para minha meca particular quando ela resolveu me empurrar mais para o chão. Aquilo era agradável, nem parecia que estava alongando alguma coisa. Devo ter dito alguma bobagem como “Hum… peso bom!”. Ela não riu, o que tinha significado óbvio. Afinal, mulheres adoram que as façamos rir, mas quando param é melhor analisar. Pode ser irritação, ora.
Bem, depois são detalhes. No mesmo dia, ocorreu um agarramento dentro da cozinha da academia, cuja porta foi fechada com certa violência por minha professora, houve algumas festas de fim de ano e, vocês sabem, futebol é bola na rede. Aqui, chego próximo ao ponto no qual pensava durante minha dor de cabeça matinal. Se algum de meus sete leitores pensam que passei a me esconder, a atender sobressaltado o celular, se pensam que a confusão me procurava, estão enganados. Eu não contava para Pâmela (ou Suélen, nunca sei), mas também não mudava nada em meu comportamento. Só saía mais de casa. Exatamente como também ela passou a fazer. Ficávamos alternadamente em casa. A única coisa que me atrapalhava a consciência era vê-la muito quieta. Sempre achava que ela estava pensando em meu caso. Mas nunca conversamos a respeito de nada que rondasse a palavra “traição”. Não fazia sentido, dado o desinteresse mútuo.
Aqui, bem aqui, chego ao ponto exato que me fez rir hoje de manhã enquanto escovava os dentes. Já estávamos frequentando uma “terapeuta de casal” que serviria para definir a questão dos filhos. Um dia, bem lá no final do “tratamento”, durante uma sessão, Suélen (ou seria Pâmela?) me disse que eu tinha sido visto no cinema pelo chefe dela. Preparei-me para ser acusado, devo até ter me ajeitado na cadeira, quando a ouvi dizer, toda sorridente, que eu estava sozinho. Virei santo.
Quis saber que filme era. Era Malena. Então foi minha vez de sorrir. Naquela noite, fora ao um velório da mãe de meu melhor amigo de infância, jantara com minha amiga F., mas, antes do filme, deixara-a em casa com uma crise de rinite. Ela não gostava muito dos filmes que eu escolhia. Preferia ver DVDs de blockbusters americanos em casa. Um saco. Curiosamente, aquilo passou a ser a prova inequívoca de minha… sei lá… idoneidade, honestidade? Muitas vezes tal prova foi citada quando se conjeturava a possibilidade de reconstruirmos a relação. Deixei assim.
Quando por fim nos separamos, também me separei de minha amiga e da academia. Meus sete leitores devem saber que depressão a gente curte privadamente, não em praça pública, fazendo piadas.
Estado de coisas
Percebendo seu corpo paralisado e seu olhar mirando um ponto específico do teto, vislumbrou a possibilidade do conhecimento absoluto, perfeito, sobre o objeto determinado, a saber, o teto com suas pequenas fissuras, desbotados da cor acinzentada da pintura, bolotas de possíveis infiltrações de ar ou água… Anotava mentalmente os detalhes, mas a experiência não durou o tempo necessário para provê-lo desse ajuste preciso sobre uma realidade determinada, pois o acidente vascular cerebral que o vitimara acabou por matá-lo em cerca de dez segundos.
A mulher, que saíra para buscar um café de que estava necessitada, encontrou-o com uma expressão beatífica, mas olhar vidrado em direção a um ponto preciso do teto; observou-o por alguns segundos, pensando que talvez ele estivesse morto, levando-a a perguntar “Osvaldo, você também quer um pouco de café?”, mas ele não respondeu, o que a fez pensar que ele talvez estivesse vivo.
Há uma piada em que o marido, enquanto vê um programa sobra medicina na TV, pede para que a mulher, no caso de ele ficar hospitalizado em sobrevida vegetativa, desligue todos os aparelhos que o manteriam vivo.
Em resposta, ela pega o controle remoto, desliga a TV, apaga a luz e vai embora.
(Claro que é um resumo sem graça, o que queria mostrar era uma variação do caso do Osvaldo).
A piada é boa mas também se aplica às mulheres, bastando acrescentar o celular e o secador de cabelos.
Sem dúvida, mas “as minhas mulheres aqui de casa” não dedicam-se ao celular. Preferem as roupas, sapatos, essas coisas sobre as quais é tão bom conversar…
Minha mulher é, para o gênero, extremamente rápida em frente à vitrines e muito objetiva comprando roupas. Não tenho do que reclamar.
Ainda assim, aqueles instantes parecem uma eternidade para mim que, REALMENTE, não consigo diferenciar um sapato pérola de tirinhas e salto médio de outro creme trançadinho e salto baixo (!!!!!!).
E ela insiste em comentar comigo sobre os sapatos das vitrines. Percebi que, nesses momentos, ela não quer realmente um interlocutor, mas apenas alguém que faça eco ao que é, na verdade, uma interjeição. Ela diz:
“Olha que lindinho aquele sapato”
Eu respondo sempre com “É… bem bonitinho.”
E pronto. Nos vamos felizes adiante.
Imagino que ela tenha tática semelhante para quando comento sobre futebol na TV. Nem tento descobrir quais são as palavras ensaiadas dela.
Afinal, tudo tem dado muito certo desde que éramos pouco mais que adolescentes. Deixa assim.
Nunca pude te imaginar dando em cima de “personal trainers” … Milton, o tarado da academia !!!
Te mete!
Bom texto, Milton. Põe mais um nessa sua lista de sete leitores!
Só quem separou mais de uma vez, te entende!!!!
Forte abraço
És experiente, sabes de tudo…
Nunca pude te imaginar dando em cima de “personal trainers” … Milton, o tarado da academia !!! [2]
Alias, nem imaginar você numa academia eu consigo…
Acho engraçado. Dia desses, descobriram que eu jogava futebol. Achavam impossível. Vcs pensam que eu não sou filho de deus?
:¬)))
Deve ser seu refinado gosto pela música e literatura … 🙂
Puff… E daí eu tenho que ser guei?
:¬)))
Vou gastar minha mineirice: UAI?!!!! O que refinado tem a ver com ser guei?!!
🙂
O fato é que as pessoas idealizam (para o bem ou mal) pelas primeiras impressões :-)…
Quando me conhecem de perto há sempre um espanto: não ando no salto (exceto nos compromissos formais); uma camiseta um tênis e uma calça jens fazem minha alegria… não demoro horas na frente do espelho, não gosto de comprar roupa, sandálias, maquiagem, celular… é sério quando tenho que ir a um supermercado é um suplício, detesto… 🙂 ah! Tive um namorado que terminou a relação porque achava que não gostava dele porque toda vez que me comunicava uma viagem com a galera não tinha crises de ciúmes ao contrário desejava boa viagem e procurava o que fazer… ah! Homens… gosto, mas em dose homeopática … 😉
Beijão!
Ah, fiz dois gols jogando com uma turminha sub-30.
Milton
Lembro que jogavas futebol: saiu até no jornal.
Mas imagino que não atire mais gatos no Arroio Dilúvio, pois não?
Eu te admiro pela desenvoltura na academia. Meus amigos me definiriam como um cara expansivo, que consegue se adaptar a diferentes locais e pessoas. Mas um dos poucos ambientes onde me sinto verdadeiramente constrangido, sem jeito, fora do lugar, um bosta é na academia de ginástica.
Imagino que Freud explique, até com alguma facilidade. Mas não quero perguntar a ele.
Ah, Milton…
Sua história me faz pensar dos meus 5 casamentos…
Poeta,
poeta,
poeta…
– Cala-te boca!
errata: nos meus 5 casamentos…