Chega um momento na vida em que é necessário falar com Deus. Mas, ai, o guichê de Deus recém tinha atendido a ficha 98 e seu número era o 317. Ele aguardou, ouvindo os cambistas gritarem números menores. Pagou caro pelo 119. Quando chegou sua vez, pensava que veria toda sua vida passar num átimo por seus olhos, porém viu apenas um padre. Este deu-lhe um comprimido e indicou-lhe a sala ao lado. O homem, desconfiado, não engoliu a pílula vermelha, mas dirigiu-se à sala. Havia dezenas de pessoas nos bancos, enquanto atendentes caminhavam entre elas analisando quem já era alma e quem não era ainda. As almas eram levadas para uma porta branca, as ainda não-almas causavam-lhe um misto de dó e repugnância; ficavam ali, aguardando seu momento. Sentiu medo. Como sairia? Deveria tomar a pílula? Fingiu-se de drogado. Quando uma mulher de preto e lenço na cabeça passou à sua frente, ouviu-a dizer Esse ainda demora um pouco e a resposta de outra: É. Ele tinha certo talento para meter-se em confusões, mas aquilo talvez fosse demasiado. A sala começava a ficar vazia e os avaliadores sempre emitiam a opinião de que ele iria demorar mais um pouco. Minutos depois, sentiu pegarem seu braço, abriu os olhos e viu um padre preparando certamente a injeção letal, aquela para evitar o serão. O padre assustou-se quando ele disse Eu não deveria estar aqui. Como resposta, o representante de Deus leu o prontuário: Falar com Deus, uma vida mixuruca como a sua?, só tomando o remédio. Ele explica que quer sair, mas o padre diz-lhe que o único caminho é o da porta branca, que sua repartição funciona como o tempo, só tem um sentido. Reforçam a segurança. Vê um guarda magro, narigudo e de faces chupadas postar-se bem na frente da porta de entrada a fim de impedir-lhe o retorno. Na sua insígnia está escrito seu nome e a repartição à qual pertence: “K.”. O impasse está montado e o padre diz-lhe com voz sedutora, Eu poderia lhe dar outra ficha para o senhor voltar amanhã. Ele admite que é uma saída honrosa para ambos e aceita a nova ficha. Dirige-se ao guarda que, sem dizer palavra, aponta-lhe a porta branca num gesto peremptório. Nervoso, o homem perde o controle e grita afirmando saber que aquela saída-entrada estava destinada apenas para ele. Ouve o padre murmurar às suas costas Quanta pretensão… O homem procura acalmar-se, pois sempre soube que o bom senso e a razão podem milagres. O padre solicita que ele se dirija à porta branca e ele responde É possível, mas ainda não. Observa o efeito da frase. O padre permanece impassível; sabe-se lá se não há orgulho na expressão do guarda.
Se falar com Ele parece mais O Processo, prefiro ficar na dúvida mesmo.
Meu amor à Kafka às vezes me cria este tipo de post…
Vou mandar uma ficha pr’Ele falar comigo. Eu não tenho a mínima intensão de bater um lero, deve ser muito chato, passe outra hora.
Quem será chato? Eu ou Ele? Certamente ambos…
O que há por detrás da porta branca? Um buraco negro ou um coral de anjos a entoar o Magnificat?
Bem pensou o padre: Quanta pretensão!.
Ou estariam lá 109 virgens experientes?
Quanta pretensão!
E Deus ainda busca a Humanidade…
se fosse a “pílula” azul ele encontraria as virgens experientes?…
Na primeira versão a pílula era azul, mas achei que ia dar confusão…
O chato é Ele. Nunca trouxe os presentinhos que por que ajoelhei…
rsrsrs. Abraços!
Kafka? Eu juraria por Cortàzar.