Pré-leitura de Dom Quixote

Compartilhe este texto:

2005 foi o ano em que se comemoraram os 400 anos da primeira edição do Dom Quixote. Na época, programei uma homenagem particular ao livro — relê-lo — , mas não o fiz. Faço agora.

Antes de reenfrentar o Quixote, quero fazer um comentário comparativo entre a impressão que tive ao lê-lo pela primeira e única vez, aos 16 anos, e certas interpretações atuais. Durante um Fórum Social Mundial falou-se muito no Quixote como uma utopia, mas não creio que isto tenha muito contato com a história contada por Cervantes. Utopia (palavra do latim moderno, com origem no grego oú, “não”, e no grego tópos, ‘lugar’), utopia, repito, segundo Thomas Morus, é um local e uma situação ideais; isto é, refere-se a um país e a um governo imaginário que proporciona excelentes condições de vida a um povo feliz. Ironicamente, utopia significa não-lugar ou lugar nenhum… Não sei o que esta definição tem a ver com a história do Engenhoso Fidalgo, um personagem que aplicava sua fantasia para transcender sua circunstância imediata e que é destituído de projetos para si e seu país ou, melhor dizendo, refaz seu projeto cada vez que pensa ou vê algo que o interesse.

Sua fantasia forma gloriosa e minuciosa antítese com o ultrarrealismo de Sancho Pança. É na oposição de Quixote ao senso comum de Sancho que está grande parte da riqueza do livro. A capacidade do Quixote de adaptar-se e de manter seu idealismo acima da vulgaridade, leva-nos a acreditar que haja outro bom senso, único e pessoal, a lutar contra o marasmo e o comum. Mas não pensem em Sancho como um personagem desagradável, politicamente correto (…)  ou como “o representante da vulgaridade”, nada disso. Ele é engraçado e inteligente, estando sempre disposto a piadas e a citar oportunos adágios populares (Populares ou era Cervantes quem os criava?).

Cervantes é o fundador do romance moderno; no Quixote há personagens representando idéias e as situações falam, representando ideias, sem a necessidade de maiores explicações do autor. Escrito como só um grande romancista e poeta poderia fazê-lo – pois, como vocês sabem, Cervantes era também poeta e dramaturgo –, Dom Quixote foi o único livro que me fez chorar durante sua leitura. Eu adoraria que ele repetisse o feito 34 anos depois. (Fiquei feliz quando li, nos Diários de Virginia Woolf, que ela sempre derramava algumas lágrimas, furtivas ou não, quando abria seu Quixote. Isto me une a ela de alguma forma, já que somos tão antípodas em termos de talento.)

P.S. – Vocês sabiam que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, no dia 23 de abril de 1616?

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

21 comments / Add your comment below

  1. Milton, boa viagem. Só um lembrete: esqueça as traduções brasileiras, todas elas criminosas, incapazes até de distinguir expressões idiomáticas. A melhor edição é a do IV Centenario da Real Academia Española lançada pela Alfaguara. Tem todas as notas necessárias pra gente desenrolar o espanhol quinhentista. Abraço.

  2. Interessante. Pensava mesmo pensando em ler em espanhol. Estou na idade em que se recusa intermediários, mesmo os bons e, nesse caso, parece que não os há.

    Abraço.

    1. Milton,

      Também desejo a você uma boa aventura. Eu ia dizer exatamente a mesma coisa sobre a edição espanhola da Alfaguara argentina. Além de vir na língua original, é uma belíssima edição.

      Abraços,
      Luis

  3. Puxa,
    eu também estou com esse projeto aqui na gaveta…reler dom quixote, que li quando tinha 16 anos…caramba!
    Mas, pelo jeito, eu era muito menos culta do que vc com 16 anos (e, é claro, ainda sou). Pois, embora tenha percebido a sagacidade de sancho pança, sua ironia e humor, não foi isso o que me levou a colocar quixote como o melhor livro que li (até hoje ele ocupa essa posição). Eu gostei mesmo foi daquela enxurrada de histórias paralelas e interpostas, aquela multidão de personagens, aquele desenrolar frenetico e ao mesmo tempo lento do enredo mesmo do livro.

    Agora, dito isso e frente ao comentário do Ernani, peço ajuda a vocês: eu até consigo ler em espanhol, mas com dificuldade. Será que não tem mesmo nenhuma edição em português com alguma qualidade? Nem que seja editada em portugal? Como eu perdi o exemplar que li há 30 anos, peço indicações a vocês.

  4. Salve, Milton!

    E dizem que 23 também é o dia de nascimento do Shakespeare. É dia também do São Jorge. Tá sabendo da conversa que rola por aí sobre adotarem São Jorge como padroeiro da literatura fantástica, talvez comemorando no dia 23, inclusive? O que acha disso?

    – também chorei um pouco quando li Quixote, quando tinha 17 anos.

  5. Tenho uma audiência com o excelso judiciário agora a pouco, às 10:30, como vítima num processo de danos morais, por isso não li o post ainda. Mas só coloco aqui a torcida para que o Pedro seja atraído pelo tema.

    1. Eu sou 100% solidário a ti, um cara que não preciso conhecer para GARANTIR ser decente e honesto. Espero que tudo dê em nada, Charlles.

      Dê notícias.

      1. Muito obrigado, Milton! Não vou torrar a paciência de ninguém expondo o que é. Só basta falar que fui acusado de algo que não fiz em meu trabalho, a juíza mesmo achou o processo absurdo e o arquivou. Movi no cívil uma resposta aos acusadores, pela única razão de mostrar que não sou um idiota qualquer, limitando-me em não acusá-los penalmente.

        Hoje se confirmou mais uma vez que as constelações que regem a minha vida são as de alpha_Grouxo Marx e woody allen-centauros. A frivolidade da comédia chega a alcançar altos índices de trivialidade grotesca na minha vida. Escuta só: antes da audiencia de conciliação de hoje, eu, em casa de uma advogada amiga, comentei o caso com ela e disse que a mim bastaria uma carta de pedido de desculpa por parte dos meus acusadores (desde que citassem frases inteiras escritas por mim). Mas essa advogada me convenceu a contratá-la para irmos fundo no caso. Hoje, num mutirão do MP feito num colégio público aqui, sentamos de frente ao juíz de conciliação e da parte contrária, e, repassando a papelada, descubro que a minha advogada era uma dos quatro advogados que assinaram a denúncia contra mim. Foi algo de filme do primeiro time do humor, quando li o homônimo completo da doutora na acusação, chamei-a no cochicho e lhe disse: “a não ser que a senhora tenha uma companheira de profissão com os quatro nomes absolutamente idênticos aos seus, acho que está impedida de me representar”.

        Essa vida_ sem ironia_ é maravilhosa!

  6. Também o li aos 16. Idade das leituras felizes de David Coperfield,Tom Sawer, Kim. Tinha consciência da importância do livro, mas, afortunadamente, me escapava o profissionalismo de cituá-lo política e simbolicamente. Para mim o Quixote era um herói tratado com a dignidade intocável do Batman, daí um certo choque na cena em que ele leva uma surra de uma turma de tropeiros. Acho que Quixote colocou meus pés no mundo real. Toda a sua apiedante figura ridícula, a sua senilidade hiper-ativa, de certa forma era a descoberta do filho idólatra que tem a revelação de ver o pai apanhar de policiais.

    garcía Marquez se culpava de nunca conseguir ler o Quixote, até um amigo lhe vir com a fórmula definitiva: era um romance para se ler sentado na privada. Nunca entendi muito bem isso. Faulkner dizia que era o maior dos romances, e todos os anos o relia na íntegra. Nabokov desprezava-o, alegando ser uma mixórdia de vulgaridade.

    Mas foi nele que aprendi o significado de algumas palavras assombrosas, como “vilipendiar”. E dele me namorei até hoje da palavra mais linda da lingua portuguesa: “setentrional”. (passei tempo me recusando a averiguar o que queria dizer, só para rolá-la na boca e usufluir de todas suas infinitas alusões: setentrional!)

    1. Setentrional !!! A minha preferida é “Serenidade”.

      Senilidade hiperativa, registre a expressão.

      (tudo começando com “Se”…)

      Ler na privada? Tb não entendo.

      1. Setentrional é realmente uma bela palavra.. Gosto de serenidade também, é uma palavra que me acalma e traz força. As minhas preferidas são liberdade e poesia, gosto também de fraternidade, mas minha relação com as palavras é bastante dinâmica para eu ter um gosto sempiterno.

        Aliás, são tantas palavras boas. Taumaturgo é demais. Conheci ela lendo um bonito poema de Vinicius, A Espantosa Ode a São Francisco de Assis, que já torna a palavra poética. Gosto de saudade. De borboleta, palavra divertida. Imaginação.

        Dom Quixote está mesmo repleto de interessantíssimas palavras. Também acho uma boa idéia ler em espanhol para não perder nada da riqueza e beleza delas na tradução. Espanhol também é uma língua fascinante. De palavras extraordinárias. De palabras vivas. E por falar nelas, me recordo do brilhante “La Palabra”, de Neruda.

        Bem. Quanto ao ler na privada. Fiquei pensando. Pode ter algo a ver com a leitura íntima e serena. Silenciosa. Com a leitura despretensiosa, sem complicações técnicas, teóricas ou analíticas. Uma leitura íntima e aberta. Também não entendi o que ele quis dizer ao certo, mas isso fez algum sentido para mim. Hahaha.. Vai saber.

        1. Isso tá no volume 5 das crônicas completas do GGM, Luis Felipe. Confesso que tentei seguir as instruções do colombiano, mas foi um fracasso duplo, pois a edição do Quixote que tenho aqui é uma antiquíssima tradução de capa dura e formato grande, muito pesada, nem um pouco confortável para tais experiências e propiciadora de uma prisão de ventre dos diabos. Outra palavra do Quixote, é menoscaba: “menoscaba meus bens”

          Caminhante, a mulher ficou muito sem graça. Limitou-se a responder: “conversamos lá fora”. Não a contrataria para minha defesa nem se fosse acusado de pisar na grama, mas o caso de hoje, sem nenhum perigo para mim (já que é uma réplica a um processo arquivado), o papel do advogado é meramente burocrática, para o que qualquer um servia. O fato engraçado, também, é que, nesse mutirão (cheio de pessoas, inclusive senhores distintíssimos de terno que dava ao colégio um ar de desabrigados de uma enchente em Wall Street), essa advogada praticamente não saía da sala, estava em quase todas as a causas. Quando entrei na sala, o assistente do juíz riu quando ela se levantou e foi se sentar no outro lado da mesa das partes, e ela lhe disse: “agora represento a favor.” Na saída, ela jurou que não sabia de nada, coisa que acreditei, e disse que me passaria para um colega “confiável”.

  7. Não li. Fiz algumas tentativas durante os anos, todas em vão. Comprei a edição comemorativa que o Ernani citou. A introdução é tão longa que depois dela deixei o livro de lado (aconteceu a mesma coisa com Borges e quase aconteceu com Fernando Pessoa e Guimarães Rosa, até eu decidir pular. As editoras deveriam repensar certas introduções eruditas).

    Numa aula, a Professora Doutora disse que não é nada disso que todo mundo pensa. Que o Quixote não é utopia e nem contraponto a realismo. Que Cervantes escreveu o livro como crítica à cultura cavalheiresca da corte – ele seria tão alienado como esse meio. Ela, inclusive, achava um absurdo aquela música da Bethânia (que eu adorava) que cita um trecho do livro. Hoje vejo que essa obrigação de desencantar o Quixote também não me estimulou a mais um esforço…

  8. Curiosamente iniciei a leitura do Quixote nessa semana. Na tradução (elogiada) de Sergio Molina. É minha primeira leitura. Nas outras tentativas não fui além da página 20.

Deixe um comentário