‘2666’, romance póstumo de Bolaño, traz temas de livros anteriores

Rafael Gutierréz (*), Jornal do Brasil

RIO – Comecei a ler Roberto Bolaño em uma tarde de março de 2001 em Bogotá, quando minha amiga D. me pôs nas mãos um livro grosso de cor cinza. A imagem da capa era a de três homens jovens, usando chapéus e uma roupa elegante, que caminham por uma praia vermelha, enquanto no fundo se vê o mar de um azul intenso e uma montanha. Quando me entregou o livro, D. disse: “Lê isto. É a melhor coisa que leio há muito tempo”. Confiava no critério de minha amiga, que antes já havia recomendado outras leituras reveladoras.

Sua recomendação não me decepcionou e nos dias seguintes, ou melhor, nas noites e madrugadas seguintes (pois era o único tempo disponível para ler que na ocasião me deixava um trabalho burocrático tedioso e extenuante em um escuro ministério colombiano) li em êxtase Os detetives selvagens. A partir desse momento, continuei procurando e lendo com ansiedade os demais livros escritos por Bolaño. Nenhum deles me pareceu tão bom quanto Os detetives, até ler sua ambiciosa obra póstuma e inconclusa 2666, publicada em 2004.

Em uma entrevista para a edição mexicana da revista Playboy, realizada poucos meses antes de sua morte – em 15 de julho de 2003, aos 50 anos – Bolaño diz que, se não fosse escritor, seria detetive de homicídios para voltar sozinho, à noite, à cena do crime, e não se assustar com os fantasmas. Pois bem, acredito que, em 2666, ele volta ao lugar do crime e finalmente enfrenta os fantasmas. Dois tipos de fantasmas: aqueles que rodeiam a vida do escritor e a solidão do ato da escrita; e aqueles que estão do lado do mal e da violência (e que talvez possam ser os mesmos, como fica sugerido em várias de suas obras).

O primeiro tipo de fantasma aparece em 2666 na história do escritor alemão Benno von Archimboldi que ocupa, basicamente, a primeira – “A parte dos críticos” – e a última parte do romance. Na história de abertura, quatro críticos literários europeus tornam-se amigos ao estudar a obra do misterioso escritor que, apesar do reconhecimento da crítica e de ter sido indicado várias vezes ao Prêmio Nobel, nunca aparece em público; ninguém conhece detalhes de sua biografia. Bolaño descreve as tensões que constituem o campo literário, não a partir da perspectiva dos escritores e poetas marginais, como fez em Os detetives selvagens, e sim do ponto de vista dos estudiosos da literatura, com suas brigas e conspirações intelectuais, embora destacando a amizade e o amor que surge entre eles. De certo modo, esta primeira parte pode ser lida também como uma história de amor (não um triângulo, mas um quadrado amoroso com final inesperado).

“A parte de Archimboldi”, última do texto, está construída como um romance de formação e narra a história de vida do escritor alemão Hans Reiter (que usa o pseudônimo de Benno von Archimboldi), nascido em 1920. Como em outros de seus romances e contos, Bolaño constrói a figura do escritor como um ser marginal, errante e melancólico, afastado dos centros de poder do campo literário e político. Na visão de Bolaño, o verdadeiro escritor estaria próximo de algo que foge ao literário. Talvez por isso, na história de Reiter, a experiência (sobretudo a participação na Segunda Guerra) é definitiva para seu futuro como escritor. Esta parte do romance está atravessada por questões literárias: de onde vem o impulso da escrita? Vale mais a leitura ou a experiência para escrever uma obra-prima? Qual deve ser o lugar do escritor e suas relações com editores e leitores?

A história do escritor alemão e a história dos críticos têm seu ponto de encontro na cidade imaginária de Santa Teresa (nome fictício de Cidade Juarez, localizada na fronteira entre o México e os Estados Unidos, marcada tragicamente pelos milhares de assassinatos de mulheres que vêm acorrendo desde 1993). Os críticos viajam a Santa Teresa ao serem informados de que, possivelmente, ali se encontra Archimboldi. O escritor alemão deseja encontrar seu sobrinho, acusado de ser o autor ou pelo menos de participar daqueles crimes.

No ar estranho da cidade e do deserto que a rodeia, confluem os fantasmas da violência retratada por Bolaño com técnica hiper-detalhista que simula os informes forenses para descrever, em cadeia, os corpos das mulheres assassinadas. “A parte dos crimes” é a mais extensa e a mais arrepiante do romance pela acumulação de mortes e pela aparente ausência de explicação e de sentido para tanta violência. Machismo, narcotráfico, pornografia snuff são algumas das possíveis causas dos crimes, mas nenhuma delas consegue explicá-los por completo.

O que flutua como uma sombra em toda a narrativa é precisamente a pergunta sobre a origem e a causalidade ou casualidade do mal (tema caro a Bolaño e que aparece em seus primeiros textos). Esta parte pode ser lida como um romance policial, inclusive com a participação de um detetive americano com aparência de Sherlock Holmes. Mas, em 2666, os crimes são impossíveis de resolver, deixando no fim uma sensação de impotência e desolação.

Duas histórias, centradas em Santa Teresa, completam as cinco partes do romance: a do professor de filosofia chileno Amalfitano (que compartilha com Bolaño alguns rasgos biográficos); e a história do jornalista americano Oscar Fate.

O professor chileno é um personagem perdido, exilado e próximo à loucura. Em sua cabeça confluem, delirantemente, a filosofia e a história política do século 20. Escuta vozes permanentemente e, em suas noites de insônia, realiza estranhas performances no pátio de sua casa inspirado em instalações de Marcel Duchamp. Apesar do humor e da ironia presentes na história de Amalfitano, o que predomina é um clima de tristeza, melancolia e medo, pois ele teme, o tempo todo, pela vida de sua filha em Santa Teresa.

Cada parte do romance parece nos levar por questões centrais da história do século 20, formando um grande painel histórico-ficcional. No caso do jornalista Oscar Fate, entramos na história do partido dos Panteras Negras através da voz de Barry Seaman, um de seus fundadores. No meio da reportagem sobre Seaman, Fate é obrigado por sua revista a cobrir uma luta de boxe em Santa Teresa e, quase por azar, fica envolvido com a investigação dos crimes.

Embora existam pontos de contato entre todas as histórias, cada parte do romance pode ser lida de forma independente (e Bolaño queria que fosse assim, publicadas com intervalos de um ano para assegurar o futuro econômico de seus filhos). Porém, em conjunto, constituem uma das empresas mais impressionantes da narrativa contemporânea, uma imersão profunda pelos labirintos da criação literária e uma aproximação nada modesta ao mal absoluto.

Em 2666 convivem todas as obsessões bolanianas: a relação entre literatura e vida, a pergunta pela origem do mal e da violência, a proximidade entre literatura e perversão. Escrito com uma prosa direta e objetiva, através da acumulação de histórias e digressões, e apesar de sua longuíssima extensão, Bolaño consegue prender o leitor como só os grandes mestres da narrativa conseguem.

(*) Escritor e crítico literário. Doutor em literatura pela PUC-Rio.

19 comments / Add your comment below

  1. No Caderno Prosa & Verso de O Globo do último sábado foram 3 páginas só de 2666, com destaque a entrevista com Sergio González, o personagem do livro mas repórter real, que cobriu os assassinatos de Ciudad Juárez.

    Há conexões de 2666, pelo que pude ler até aqui, com todos os livros anteriores de Bolaño, sendo este último uma paradoxal súmula prolixa dos demais, contendo as explanações poéticas e investigações de crimes, além das conexões bárbaras que encontramos em Os Detetives Selvagens, Putas Assassinas, A Pista de Gelo, Amuleto, Noturno do Chile e o mais recente (no Brasil) Estrela Distante.

    Repetem-se temas, formas de abordagens, personagens, a obsessão com a violência como símbolo e marca do passado e futuro da América Latina, mais a discussão literária tendente ao vazio, às brumas, aos mistérios e delírios.

    Quer dizer, suponho depois de ter lido suas próprias abordagens sobre o romance e os posteriores comentários, além das matérias já publicadas em O Globo, Folha de SP e JB.

    Fico na dúvida se devo mergulhar nessa viagem lisérgica dessa barrica de sangue jovem. Mas para mim é irresistível, embora já esteja preparado para um reencontro mais do que para o choque do novo que não deve vir.

    1. Disse tudo o que eu pensei sem pretender dizer. Compraremos e leremos como quem já conhece um filme graças aos inúmeros trailers. Porém, talvez nos surpreenda. Por tudo o que lemos aqui e em outros lugares, parece que há em 666 um olhar cativado pelo abismo, e isso pode ser alguma coisa.

      Curti a parte do “viagem lisérgica dessa barrica de sangue jovem”. Ficou muito bom.

      1. A merda toda, Victor, é meu carinho pelo personagem-escritor Roberto Bolaño. A gente que vige nessa latinoamericanidad acaba se afeiçoando às criaturas perdidas (como os poetas anônimos de Detetives Selvagens) em nossas paisagens luxuriantemente inóspitas. Não é simples simpatia e identificação, mas um sentimento que nos perpassa e nós queremos fazê-lo correr a pontapés na bunda, enquanto o que fazemos é acertar a nossa própria com os calcanhares. Cara, que vida…

  2. Para mim 2666 está sendo um marco divisório em minha vida enquanto leitor. Definitivamente, um dos melhores livros que já tive a oportunidade de ler. E o mais incrível de tudo, apesar de suas trocentas e tantas páginas, é de uma facilidade de ler impressionante, devido á capacidade de Bolaño de nos envolver na trama, um dom que pouquíssimos escritores tem. Mesmo o mais longo dos capítulos, que tratam dos crimes, a riqueza dos detalhes nos lembra estes seriados tão comuns nos dias de hoje que tratam de investigações policiais com detalhes periciais que nos parecem irrealizáveis (como C.S.I., Bones, etc.) em tão curto espaço de tempo.

    1. Blasi,não compartilho desta opinião que insistem em pregar a Bolaño,de ser uma literatura digerível,fácil de ler,e por isso, superiora. Há incríveis livros, deliciosos,que, contudo,não são assim tão assimiláveis.Como uma obra sinfônica bem estruturada,a literatura deve oferecer imersão e sofisticação.Não creio de Mcewan, Roth,Nooteboom e Sebald,por exemplo,sejam “fáceis”,mas cada um deles é muito superior a Bolaño.

      1. Proust é sacana pois justo os períodos mais longos, longuíssimos, entremeados de vírgulas que encapsulam frases dentro de frases, encanta masturbadores literários como nós. 😉

  3. Vou acabar lendo o 2666,mas divido a opinião do Nunes em não esperar mais que o mais do mesmo.Sei que tem uma parte um pouco intragável, por sinal a mais longa, escrito como reportágens sobre os tais assassinatos,que de antemão penso vá ser um exercício abdominêico (gostaram?). Não sei o que nos espera na literatura latinoamericana depois de entregue esse enorme e esperado ovo de chocolate (talvez oco). Haverá um deserto, bolas de feno rolando,as eventuais efemérides quando das mortes inevitáveis dos velhos senhores da grandiosidade do boom,relançamentos de luxo de Cem anos de solidão (aliás, Eric Nepomuceno foi de extrema audácia lançar uma tradução deste romance, depois da definitiva da Zagury), Conversa na Catedral, O Túnel. Talvez a obra-prima de Bolaño seja a expectativa da chegada de 2666, que, infelizmente,a chegada de 2666 apagará.Quando li as referências heróicas sobre Detetives Selvagens,antes de lê-lo,poderia ter pego de um caderno escolar,ter tirado uma licença de dois anos,e me imposto a escrever um Detetives Selvagens inspirado pelo disquemedisque e pelo afãem torno da obra. Com certeza,mesmo talvez não tendo escrito algo numa altura tão relativamente consolidada,oprazer do trabalho teria sido superior ao degelo daquelas variadas narrativas desencontradas que foram embora da minha lembrança assim que li a última palavra daquelas intermináveis 600 páginas.

    1. Ainda tenho dúvidas sobre a sobrevivência do Bolaño. Será que ele não passa de modismo literário pós-boom latino-americano? Percebe-se nele uma literatura produzida à emergência das demandas familiares (ele inclusive queria que o 2666 fosse publicado em uns tantos volumes [cinco?] para render mais e alimentar os abandonados pimpolhos à sua morte), uma maneira à beatnik de escrever regado a vapores emaconhados que, no entanto, não produzem hilaridade, mas uma melancolia com humor subreptício. O Túnel é melhor, mas muito diferente e essencialmente amargo, Conversa no Catedral (o título foi traduzido errado no brasil, pois Catedral é um pé-sujo, não um igrejão) pretende-se sintético de um descaminho á sulamericana, mas também é muito diverso. Dos anteriormente citados, prefiro Bola]no, pois não sou realmente fã de McEwan ou Roth, e muito menos Sebald (esse homem culto à européia com seu olhar inteligente e minucioso sobre tudo, com mais pretensão que arte) e Marquezinho, enquanto desconheço Nooteboom (só compro livros em livrarias e, por estranho que pareça, não encontrei em nenhum livro deste autor no Rio de Janeiro). Por ora, leio Bolaño com prazer com algumas notas de fastio. Amanhã talvez o despreze como subliterário, tanto quanto os livros de Hermann Hesse que li na juventude (incluindo O Jogo dos Avelórios, na verdade um texto sofisticado que recobre a mesma ingenuidade dos demais livros de Hesse e sua obsessão dicotômica natureza versus cultura).

      1. Procure direito pelo Nooteboom, pois mesmo em Goiânia se pode achá-lo nas livrarias, inclusive em uma caixa especial com os três livros lançados pela Nova Fronteira, além dos dois pela companhia das letras (Paraíso Perdido, e_ o melhor deles_ Dia de Finados).

        Bom, sobre Roth, já não é de hoje que sabemos que os autores norte-americanos não são seus preferidos. Demorei para aceitar Roth, um pouco mais de tempo que levei para aceitar Bellow.Ia naquela ideia do Borges de considerar qualidade literária relacionada com distância temporal, e sentia um forte odor de farsa principalmente na literatura produzida na América do Norte na metade final do século XX. Além do mais, a leitura apaixonada dos americanos pré-1950 mostrava que algo substancialmente danoso havia acontecido com o foco e com os valores estadunidenses. Era nítido que o que motivara o grande painel humano de uma obra como Vinhas da Ira, já não lapidava nada dos novos escritores que se preocupavam mais com a fase glamorosa de ser americano, para o bem ou para o mal, chegando ao ponto de tornar a questão da desigualdade social algo obsoleto. No lugar de John Dos Passos e Steinbeck, surgira a literatura judaico_ americana, e os deserdados, bêbados arturianos, negros segregados, jovens pescadores aventureiros, e vagabundos honrados, foram suplantados pelo intelectual oprimido mas assimilado pelo capitalismo exacerbado, cujo enredo se imiscuía pelo seu campo mental proteinizado pela análise hiperintelectualizada. Todo escritor judeu americano tem o talento inato de ser um ensaísta desvirtuado que produz romances, por isso Roth, Bellow, Chabon (em menor grau), serem os expoentes da nova forma de escrever sobre uma sociedade que ultrapassou qualquer medida harmoniosa do consumo regrado.

        O primeiro livro que li de Bellow foi O Legado de Humbold, e, além da escrita inigualável e ágil (eu que estava atolado nos efeitos da lentidão faulkneriana), achei-o por demais “burguês”, falando de um mundo limitado a um leitor específico, não só que conhecesse a história norte-americana, como, essencialmente, FOSSE norte-americano. Mas, então, eu olhava para meus papelotes e rascunhos cheios de arremedos regionalistas e oitocentistas_ uma literatura desoxigenada e anacrónica, que pegava o aprendizado de Conrad e o transformava numa imatura vaidade questionativa dos impropérios da invisibilidade latino-americana_, e tinha a lucidez que deveria me modernizar, me adaptar á realidade inevitável de que já não se podia escrever sobre caminhantes enxotados de suas terras que vão tentar sobreviver nas agrúrias do paraíso lupino dos pomares californianos.

        O que Roth e Bellow fizeram foi a conversão saudável, assumiram que era um novo mundo, no qual o falseamento e a religiosa eucaristia dos grandes nomes do passado recente só acentuaria a imperfeição de um figurino que já não se adaptava à medida do novo modelo. Coisa que, por exemplo, não ocorreu no Brasil. E voltei a ler Humbolt, e percebi que eles foram tão espertos que escreviam o que queriam, com grande peso ensaístico, mas para o grande público. Um livro como “Herzog”, ficar 49 semanas encabeçando a lista dos mais vendidos do Times, mostra muito mais do que uma repaginação mercadológica. Era a nova literatura norte-americana, turbinada, profunda, complexa, musical, e popular.

        Sobre Sebald, há muito mais a solidão sincera da escrita, e_ na minha leitura_ se há “pose”, é a da melhor vitrine possível.

    2. Pô Charles, se depender da forma como escreve aqui, você vai precisar de mais de dois anos pra escrever um “Detetives Selvagens”…

      1. Beto, meu amor próprio costuma ser maior que o peso de minha brasilidade_ caso contrário, me conformaria a só assinar meu nome, quando preciso. Aliás, já me dou por gênio por conseguir ordenar as ideias com esse nível de precariedade, coisa que a grande maioria de meus conterrâneos não consegue. Só não sou auto-depreciativo, autodepreciativo não!, para alimentar a exigência da velha indulgência nacional; quando me chamam de pseudointelectual, agradeço sinceramente. O pseudo já oferece uma tentativa e modelos, e se quebrar a cara, ainda tem-se a chance de a municipalidade reservar uma bibliotecazinha aconchegante com o meu nome. Mas não foi isso que entendeu que eu quis dizer: o prazer da escrita seria melhor que a leitura de DS.

  4. Sobre Márquez, o odiei a ponto de vender, trocar e doar a coleção de seus livros. Fiquei uns dez anos sem ler uma palavra dele_ os dez anos que ele só escrevia aqueles artigos descongestionantes intestinais para seu jornal colombiano. Daí ele lançou “Viver para Contar”, e, como não consigo fugir de uma febre alastrada, comprei-o e li-o-o. Quando menos me apercebi, já tinha recapturado a coleção completa, tendo que comprar pela sexta vez “O Amor nos Tempos do Cólera”, pois se fosse atrás das namoradas que se submeteram ao ritual iniciático de um compromisso mais sério tendo que se assustar com a aparição da noiva afogada na viagem de barca de lua-de-mel de Florentina Ariza e Fermina Daza, daria para atravessar o Brasil de ponta a ponta.

    Vão sobrar dois romances do Márquez, e uma novela (Cem anos, O amor nos tempos do cólera, e ninguém escreve ao coronel). Cada uma delas tendo o que se escreveu de melhor na literatura mundial do período. Só há um autor latino superior a Márquez, e mesmo assim não lhe faz sombra pois Borges se limitou, no campo da prosa, aos contos. Nem Cortázar , nem Sábato, e nem tão pouco Bolaño. Bolaño só sobrevive por a memória dos leitores estar enfadada de tanta leitura desses três títulos, o que é natural. Mas a saga dos Aurelianos vai estar vinculada em toda a vida cultural do globo, quando Brenno von Archimboldi não passar do que realmente é, um nome sem originalidade pespegado num calhamaço que teve seu curto período de idolatria justamente aberto pela nostalgia da maravilhosa música do velho colombiano.

    Ninguém conseguiu superar a força desse começo retumbante:

    “Muitos anos depois, diante o pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendia haveria de se lembrar da tarde remota em seu pai o levou para conhecer o gelo”

    1. Penso que talvez Bolaño tenha a ver com aquilo que escreveste sobre Roth e Below: sua literatura, depois de conhecer as tradições literárias continentais, inspira e depois dá uma baforada de ar para o vazio, e daí vai em frente, sem evocações diretas, mas carregada de espíritos e a disposição de fazer livros afins ao tempo em que vivemos. Talvez por isso os escritos de Bolaño fluem como poemas líricos ruins de juventude ou prosa jornalística apressada em meio às passagens literárias que riem de si mesmas. Pô, caralho, isso é legal; se vai sobreviver além de nossa disposição atual de ter pela frente os livros escritos ontem com a técnica de hoje, aí é coisa de amanhã, que quase sempre demora a chegar, pelo menos uns vinte anos, talvez cinquenta, para sepultar com gente como Juan Rulfo, ou José María Arguedas (de Os Rios Profundos). Uma pretensão despretensiosa cai bem em 2010; também por isso gostamos de Bolaño.

      Penso que se tivesse coragem de reler o Cem Anos pudesse gostar dele hoje, mas: 1) duvido; 2) só releio os livros que amo, nunca os livros de que não gostei pensando em oferecer-lhes uma segunda chance – foda-se, eles que fiquem com quem deles gostam de primeira; 3) Tenho muitos livros pra ler, a vida chegando ao fim…

      Ah, ia escrever umas cinco linhas e deu nisso, droga!

  5. Marcos, também sou fã de Bolaño. E até acho bom esse elã em torno dele. Mas, sinceramente, como sempre digo aqui, não tive a catarse que esperei por semanas até que a estante virtual me entregasse o Noturno e Os Detetives. Nem compararia Bolaño a Kerouac, que acho o On The Road um puta de um romance que corresponde às esperas. E nem tão pouco, jamais, comparo-o a Pynchon.

    Vou te falar uma coisa, te colocando também em risco de ser acusado de prepotência: se tivesse esperado maturar um pouco mais aquela obra que me enviou, retirando aqui e ali, aumentando aqui, a coisa ficaria melhor que Noturno, amuleto ou Estrela Distante. Ninguém leria, mas e daí? Foda-se! Estou lendo dois romances de uma outra escola, “O Fiasco”, do Nobel de 2002, e “Amor e Lixo”, de Ivan Klima; ambos falam de escritores que não conseguem publicar em seus países, mas que pouco lhes importa. são autobiográficos, e o de Klima mostra como os intelectuais tchecos ocupavam cargos medíocres, em prol da não coaptação com o estado, e, principalmente, para poderem continuar escrevendo com liberdade. klima foi lixeiro, e o livro relata esse período de sua vida. Haviam escritores mecânicos, limpadores de janela, desentupidores de fossa. O Estado, à custa de reprimir as manifestações artísticas, inconscientemente fomentava uma situação muito pior: as áreas essenciais trabalhistas, os subempregos, lotados de pessoas altamente contestatórias e inteligentes. Já no livro do Imre Kertesz, narra a solidão e a deslocabilidade do escritor que tem muito o que digerir_o holocausto, o niilismo moderno.

    Acho mesmo que Bolaño é um sintoma do enfraquecimento da leitura. Foi escolhido por setores mercadológicos por corresponder à digestibilidade do leitor moderno. quando o plano deu certo, com a venda das novelas curtas, o lance seguinte foi a publicação do 2666 em volume único, contrariando o propósito do próprio autor, pois já havia-se conseguido o status de grande literatura. Mas, isso… é pura loucura da minha parte.

    1. Só como exemplo do que disse acima:

      “Por que não consigo largar Bolaño? por 2666

      Bolaño, Larsson, Dan Brown, Meyer escreveram livros que são fenómenos de popularidade e provocam adição em que em os lê. No próximo encontro Ler no Chiado vai debater-se sobre estes autores e os seus leitores.

      Com José Afonso Furtado (que devorou a saga do Larsson e tem um conhecimento próximo do funcionamento dos mercados editoriais); Paulo Ferreira (dos Booktailors, os principais consultores editoriais portugueses e um dos blogues literários mais lidos); José Campos de Carvalho (paginador quer da saga Millennium, quer do Bolaño, e leitor atento dos dois fenómenos).

      Contamos também com o testemunho de leitores compulsivos destes livros que milhões de pessoas devoram. Testemunhos deixados nos sites e redes sociais das editoras nas últimas semanas, e também ao vivo, na livraria. “(do blog “2666.blogs.sapo.pt”)

  6. E mais esse:

    ” Parece que o sabor literário da temporada cá pelo burgo (e não apenas) é o falecido chileno Roberto Bolaño, autor de um tijolão intitulado 2666. Já houve inclusivamente quem dissesse que o calhamaço de Bolaño é melhor do que o Ulisses de James Joyce, o que significa também que é ainda mais ilegível do que este. (Conhecem alguém que tenha mesmo lido o Ulisses de fio a pavio? Eu também não).

    O intenso hype criado em redor de Roberto Bolaño em Espanha e nos EUA já tem o nome de bolañomania- os departamentos de marketing das editoras e os críticos literários e opinion makers que se entusiasmam em efeito de dominó, às vezes trabalham em conjunto sem o saberem. Pelas descrições já publicadas de 2666 (cujo “enredo” multiforme e movediço, aliás, parece desafiar qualquer descrição…), Bolaño era assim uma espécie de prodígio caótico e em jacto contínuo da imaginação literária, um homem que escrevia “sem rede e sem travões, que deitava tudo cá para fora”, como descreveu o seu amigo e também escritor Rodrigo Fresán. E já está a ser pintado como um anti-Gabriel García Márquez, ou como a versão latino-americana de Thomas Pynchon.

    2666 vai até ter, esta noite, honras de lançamento especial numa livraria de Lisboa, durante uma festa em que haverá leitura de excertos por nomes de vários sectores das artes, das letras e do jornalismo cultural. ( Para os interessados, será às 23.00, na Ler Devagar da LxFactory, com apresentação de Francisco José Viegas, da Quetzal, que edita a obra em Portugal ).

    Confesso que desconfio muito destes prodígios da literatura – e das artes em geral – que são “descobertos” de vez em quando, imediata e acriticamente levados aos céus da excelência e da genialidade pelos pequenos e médios membros da intelligentsia e outros culturalistas, e que acabam por se transformar em incómodos fenómenos de intimidação cultural, como dizia o meu falecido e saudoso amigo, Pedro Bandeira Freire.

    Já aqui estou a ouvir a inevitável frase: “Como? Ainda não leste ‘o’ Bolaño? Mas isso é incrível, é o livro do ano!” E parece que uma pessoa vira leproso cultural por não ter dado atenção ao “livro do ano” , e ido ler o que lhe apetecia e não o que “devia”.

    Pelo que tenho lido sobre ele, Roberto Bolaño era também um tipo do contra por vocação e sistema (já ganha pontos no meu departamento só pelo facto de ter sido um detractor “feroz” da detestável Isabel Allende). Por isso, acho que não se chatearia muito se eu me fizer também do contra e não comprar “o livro do ano” .

    Talvez daqui a uns tempos, quando a bolañomania não for mais do que uma muito vaga recordação, e mais uns dois ou três autores de obras-primas “imperdíveis” tiverem entrado e saído de moda, eu vá dar uma espreitadela a 2666. Entretanto, vou lendo o que dele escreveram alguns raros dissidentes do entusiasmo geral, como o crítico americano Sam Sacks: “Um livro fisicamente mutilador, que é mais difícil de recomendar do que de ler.”( por Eurico de Barros, Diário de Notícias)

  7. A Companhia das Letras lançou em Maio “2666”, um dos livros mais aguardados do ano. Para comemorar, elaboramos o Concurso Bolañomania.

    Envie para nós uma resenha de até 2 mil toques de um dos livros ou contos de Roberto Bolaño publicados pela Companhia das Letras.

    As cinco melhores resenhas ganharão uma sacola comemorativa do lançamento de 2666 com um exemplar do livro. A melhor resenha também será publicada no blog.

    Acesse:

    http://www.blogdacompanhia.com.br/concurso-bolanomania/

  8. Milton, estou na metade da Parte dos Crimes, e completamente enfeitiçado por esse livro de Bolaño. Parece-me assustadoramente diferente dos outros livros dele, apesar das características que assinalam as idiossincrasis bolanianas. É quase o mesmo tema, manicômios, poetas mutilados, a procura por um escritor oculto, mas tudo é escrito com mais apuro, mais controle, menos disparates. A ideia do livro no varal, na Parte de Amolfitano, tirada das exposições de Duchamp, é simplesmente brilhante; e o modo como Bolaño narra as últimas cenas da Parte de Fate, onde o repórter negro e a mulher que o leva ao presídio recebem o gigante albino, suposto assassino das mulheres de Santa Tereza, é uma incursão ao inferno. Tudo genial! o que me surpreende bastante: Bolaño trabalhou pacas nesse livro, que é bem superior aos outros. Deliciado e lendo cem páginas por dia de 2666.

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