Por Charlles Campos
Uma breve intromissão do dono do blog: afora a demonstração de conhecimento e vivência literária, o que me interessou no comentário do Charlles foram as afirmações que costumam ser evitadas por quem “canta” as qualidades do romance de Joyce: sua falta de sutileza, de coqueteria, sua essência antiburguesa e até antiliterária. Acho que ele resumiu bem uma característica que tentei expressar sem o menor sucesso — “romance duro, engraçado, divertido, complicado, pornográfico, sexual e erudito”.
Também gostei muito das observações de outro leitor, Raphael Gomes, que escreveu assim:
Realmente o que mais afasta o leitor dos livros do Joyce é a idéia preconcebida de que Joyce é difícil. Mesmo mal de que sofre Beckett. Pobres irlandeses… Se você pega um livro com a convicção de que não irá entendê-lo, já entra em campo perdendo. Ulisses é a epopéia do homem comum, e mesmo que não tenha sido escrito para esse homem comum, também não é privilégio apenas de quem, para falar da dor nas costas da avó, se expressa no mais erudito/vernacular jargão filosófico/teórico/literário, coisa que aliás, Joyce nunca fez.
E saio de cena deixando a palavra ao Charlles:
Esse é um dos livros em que o enredo é o de menos. Importa a incrível vivacidade e energia verbal de Joyce. É o anti-limite de sua superioridade como escritor acima de todos os outros_ de Mann, de Faulkner, Proust, Kafka_ que iria subir à estratosfera e se perder com o livro seguinte, o ilegível Finnegans Wake. Trata-se de uma brincadeira bem urdida, uma ciranda calculada na espontaneidade de um severo trabalho de anos, não uma tentativa, mas uma culminação do resumo do ser humano e de sua história, e um enorme deboche à febril ciência da psicanálise (se tudo que passa pela cabeça de um homem comum é divinamente banal, é ridículo sistematizar seu comportamento contraditório numa cabala do subconsciente). Ama-se Bloom e sua esposa, ama-se Dedalus e o excessivamente extrovertido Buck Mulligan, com todos os seus pecados, suas desimportâncias, suas carências.
É o romance da falta de sutilezas, da falta de coqueteria, o romance essencialmente não-burguês (não ANTI-burguês, pois revela o enorme descaso do autor para contrapor uma reação à uma sociedade medíocre), não-científico, e, por mais que possa ser surpreendente, não-literário. Dedica-se todo à celebração da literatura, mas é anti-empolação e anti-oitocentismo. Tanto que depois de Ulisses, aboliu-se a possibilidade de escrever como Victor Hugo, Sully Prudhomme, Romain Rolland, e outros. Ulisses aboliu a literatura em diversos países, obrigando os novos escritores à adaptação. É a suprema manifestação do humor, do humanismo, da redenção velada. Uma mistura de Nona Sinfonia com a fuga da última parte da Sinfonia Júpiter, com cabrioladas de um jazz que abriu as portas para as correntes de ritmos de Coltrane e dos minimalistas. O maior mérito de Joyce foi ter controlado sua extraterrestridade para dar à obra um caráter perfeitamente legível, pois seria natural que depois de ter rompido todos os limites, seu último passo seria Finnegans Wake, assim como o passo seguinte_ o estilo tardio_ de Beethoven fosse os ùltimos quartetos húngaros e a Missa Solemnis.
Aldous Huxley lamentou que Joyce tivesse optado pela abdução. Poderia ter escrito importantes livros da estatura dos de Stendhal. Mas é compreensível. Deportou-se do mundo dos viventes. Não lhe dizia nada a estranheza e prazer de incompreensão libidinosa que o mundo adotaria ao analisar as cartas singelas que escrevia para Nora Barnacle, seu amor de toda a vida. Onde revelava a leveza de seu espírito, a ralé via apenas a sujeira sexual de um intelectual reprimido. Por isso é desconcertante que achemos de uma beleza sem igual as passagens de Bloom se masturbando, de Molly cedendo-se mais uma vez com seus repetitivos sim, sim,sim, da última página, de Mulligan se atirando seminu ao mar, ao lado dos pescadores. Uma impossível beleza nesses gestos prosaicos, e uma lucidez que desmascara toda a hipocrisia, toda pompa. Uma declaração de amor à humanidade, antes de mais nada, mas uma humanidade ainda de um distante porvir, livre das tralhas da ciência e das hierarquias, e centrada no cultivo das idiossincrasias soltas e intimistas de si mesmo.
Por isso que é tão espantoso a Buck Mulligan quando Stephen Dedalus revela que, no leito de morte de sua mãe, se recusou a se ajoelhar; mas não pelo constrangimento à mãe, mas pelo constrangimento contra si mesmo. A liberdade do homem que tomou as rédeas de si mesmo e manda as convenções e a opinião alheia às favas…
Um dia o Charlles há de me explicar o fato de ter chamado os últimos quartetos de Beethoven de “húngaros”. Não entendi. Uma referência à Bartók?
Obrigado, Milton, pelo post. Também sou um joyceano absoluto, e tenho uma paixão pelo Ulisses que me causa espanto o preconceito todo em torno desse livro, tido por ilegível, mas que não passa de uma das grandes realizações humanas e das mais divertidas.
Sobre os quartetos “húngaros”, me deu medo ao ler seu questionamento…será que foi uma mancada? O fato é que os tenho numa caixa de 4 vinis, numa edição importada da Espanha (não estou, evidentemente, com eles aqui no trabalho, embora me passou pela cabeça a cena wagneriana de 1000 vacas morrendo ao som daquele lamento de um moribundo no seu leito de morte, ah, credo!), e, a não ser que esteja alucinadamente enganado, (o que é o mais provável tratando-se de seus conhecimentos musicais )está lá “húngaro” no título. Confirmarei mais tarde.
Grande comemtário do Charlles. São sempre bons, mas ele se superou neste. A influência do tema….
Abarço
Branco
Obrigado, Branco.
Milton,confirmei a mancada. Por vinte anos acreditei,sem raciocinar sobre o assunto,que os ùltimos quartetos do maior compositor alemão tivessem o epíteto de “húngaro”. Lo Cuarteto de Cordas Húngaro,é o nome dos executantes.Desculpe.
El,El,El Cuarteto,diabos! El.
Ahhhhhhhhhhhhhhhhh, bom.
Abraço.
Charles Mason nao tem a cara da América,e sim do Brasil,se a liberdade lá tem ordem aqui é pura desordem afffff….!!!
Cuerdas…
(só falta eu lançar um romance a ser adaptado pela Globo,agora)
Excelente! A ponte entre Joyce e a vanguarda Beethoveniana me despertou ainda mais a vontade de lê-lo, o que nunca fiz justamente pelo preconceito de que Joyce seja, supostamente, ilegível e difícil demais, requerendo a subida de intermináveis degraus rumo à erudição necessária.
Caro Milton,
um ponto importantíssimo do “Ulisses” é a busca de Bloom por um filho e Dedalus por um pai. Como a viagem do Ulisses da Odisséia (fonte básica do livro de Joyce) é para retornar à Ítaca (seu lar), o dia 16 de junho de 1904 marca essa demanda de dois homens por um paraíso perdido há muito e sempre inalcançável. Se fores para Dublin, poderás refazer o trajeto de Bloom e Dedalus passo a passo (há placas em vários pontos da cidade, rememorando a odisséia demótica dos dois estranhos em uma cidade da periferia da Europa).
Abraços
Gustavo Lisboa
belo Horizonte – MG
Não acho o Joyce difícil, acho… langweilig .. como é que se traduz isso.. chato, chato.. no sentido de ser monótono, sem graça.
Talvez eu até me incomode com o excesso de “culto” que Ulisses recebe, é aquele despeito (despeito?) de ouvir uma piada que dizem ser boa mas que tu não entendeu. Daí que dispenso a data, mas não a cerveja!
De todo modo eu li Ulisses quando era muito jovem, ainda acho que posso tentar novamente, algum dia.
Abs!
Estou sempre relendo Ulysses. Hoje leio o original inglês, a tradução de Ouaissis, uma tradução espanhola e outra francesa. Continuo achando muito dificil e intrincado, mas nunca se escreveu coisa melhor.