O autor Günter Grass tem, ao mesmo tempo, fortes conexões com a Alemanha e com a Polônia. Entretanto, em entrevista para a Deutsche Welle, diz que não tem um lar. Este espaço, segundo ele, foi preenchido pela literatura.
O prêmio Nobel de Literatura Günter Grass é autor de obras como O Tambor (1959), Meu Século (1999) e Nas Peles da Cebola (2006). O autor conversou com a Deutsche Welle sobre suas impressões a respeito da identidade polonesa e revisitou alguns eventos políticos importantes que influenciaram seu trabalho.
Deutsche Welle: Como polonês que veio para a Alemanha depois da Segunda Guerra, de que forma você avalia sua recepção na Polônia? As pessoas lá não o temem, mas o celebram e o defendem contra alguns difamadores.
Günter Grass: Eu fico feliz, é claro. É uma história longa para alguém como eu, que vem de uma família desterrada, e claro que não foi fácil naquele tempo imediatamente depois da guerra, quando você considera a história entre Alemanha e Polônia.
Os meus livros ajudaram a apresentar a história desse país à geração que cresceu em Danzig [nome da cidade durante a dominação germânica entre 1793 e 1945 – hoje a cidade polonesa se chama Gdansk] depois da guerra – a propaganda e 1945 eram assuntos de séculos passados para eles. As pessoas adotaram tudo isso, o que foi bem recebido. E isso também culminou no fato de as pessoas aceitarem quando eu fazia críticas sobre a Polônia ou sobre o nacionalismo polonês. Porque as pessoas sabiam que eu fazia comentários também em certos círculos aqui na Alemanha.
Você estava lá em 1970 quando o então chanceler federal alemão Willy Brandt se ajoelhou diante do Memorial aos Heróis do Gueto de Varsóvia. Qual foi a sua sensação e como você a avalia hoje?
Eu estava num canto da multidão, e eu tenho que dizer que fiquei chocado porque imediatamente imaginei como aquilo seria recebido na Alemanha. E não foram poucos os comentários de escárnio sobre isso.
Muitos anos depois, eu escrevi sobre quando Brandt se ajoelhou no livro Meu Século, sob a perspectiva de um jornalista reservado que presencia a cena, e que vê o fato parcialmente, como um tipo de propaganda feita por parte de Brandt, mas que também pensa em como escrever sobre isso de modo que um jornal queira publicar.
Aqueles não eram exatamente os meus pensamentos, mas o evento certamente provocou muitas coisas. Mesmo muitos poloneses tiveram um tempo difícil para compreender a motivação de Brandt, e eles refletiram extensivamente sobre esse significado.
Você acha que há um risco no sentido de a História ser reinterpretada de maneira que os alemães, de repente, se vejam como vítimas do período da Segunda Guerra?
Eu vejo a divisão das pessoas entre vítimas e perpetradores como um assunto artificial. Os alemães se tornaram simultaneamente os perpetradores e as vítimas de suas políticas. Quando penso nos jovens alemães que foram deportados, claro que eles são vítimas da política dos alemães. Qualquer ato de desterro é um crime, e o desterro de alemães também foi um crime e uma consequência terrível daquele período. Isso é um fato que você tem que reconhecer. Fazer a distinção entre vítimas e perpetradores não ajuda nesse ponto.
Você nasceu em Danzig e se tornou uma personalidade na cidade. Você também tem muitos amigos na Polônia. Mas onde é o seu lar?
Para mim, lar é algo que foi perdido, mas eu tento transformar essa experiência em algo positivo. Para mim, a literatura oferece essa possibilidade, desde que você persista nesse propósito com certa obsessão.
A história de Gdansk é de destruição e revitalização e de lembrança. Depois de ter escrito O Tambor, eu voltei várias vezes para Gdansk para encontrar os vestígios dessa cidade. A fase de reconstrução e os primeiros sinais de agitação nos anos de 1970, e a revolta dos trabalhadores – tudo isso entrou nos meus escritos. Nesse sentido, eu sou um polonês que está na Alemanha.
Recentemente, Bronislaw Komorowski ganhou a eleição presidencial na Polônia contra Jaroslaw Kaczynski. O que você acha desse resultado?
É um grande alívio para mim, esse é o futuro da Polônia. O país tem que deixar de ser uma vítima absoluta. Há uma geração nova que terá um papel importante na Europa, e estou convencido que o novo presidente representa bem isso.
Com Deutsche Welle (ho, ho, ho) / Entrevista: Barbara Cöllen / Revisão: Roselaine Wandscheer
Chopin, segundo me lembro (pode ser uma mito), morto no autoexílio, teve seu coração levado de volta à Polônia, num ato símbolico de orgulho nacionalista sob a opressão da época (alemã? prussiana?). A existência da Polônia como país é algo como um milagre, pois o país foi ocupado por outros na maior parte de sua existência, o que pode ter favorecido uma forte identidade nacional e sua própria língua, mas não estou profundamente a par das vicissitudes poloneses. Grasse, ao contrário de Chopin, tem seu coração na Alemanha mesmo, por mais que se diga dividido, além do vago sentimento de pertencer não a um país, mas à Europa e, de modo geral, à humanidade inteira, mas a praga do nacionalismo é sempre mais forte que o sentimento internacionalista, por mais filiado teoricamente à “causa do trabalhador mundial” que o sujeito possa ser. É como ocorreu na Primeira Grande Guerra, quando mesmo os alemães comunistas inflaram o peito e partiram para a guerra “em defesa da pátria”, por mais que alguns dirigentes partidários tentassem esclarecê-los que a guerra não passava pelos interesses dos trabalhadores alemães e muito menos pela causa do socialismo mundial.
Eu uso Gunter Grass para medir o desencanto que a grande arte _em todas as suas manifestações_ ganhou no mundo de hoje. Qualquer livro de Grass, até o best-seller O Tambor, revela isso que ele afirmou acima, que sua pátria é a literatura. Grass escreveu o que quis, do modo como quis. Parecia pouco importar em tornar qualquer coisa que escrevia degustável; diante sua escrivaninha não havia nenhuma dimensão aberta para intrusão de terceiros, só ele e sua benéfica solidão de criador. Lendo O Tambor, se vê desde a primeira frase o quanto lhe deliciava sua arte. Palavroso, detalhista, repetia Stendhal em sua afirmação de que nunca resistia a lugares que o convidava a sentar para escrever; e quando sentava, como escrevia bem. Como demonstrava conhecimento da literatura alemã, e como afastava o perigo de sucumbir ao seu peso demonstrando que sua proficiência abarcava todas as literaturas, a história. Estava muito bem municido aos trinta anos, e sabia quem tinha que matar, no conselho didático de Hemingway; e conseguiu um feito raro, que é produzir um primeiro livro que já fosse, de imediato, uma obra prima.
O Tambor deslinda as hipocrisias, o vazio, a desesperança, a fé atirada no abismo mais profundo (a fé num demônio astuto que levara a alma da Alemanha), a grosseria, a ingenuidade, a inocuidade da história. Mas seu maior feito é mesmo a falta de sutileza, ou, mais precisamente, a falta de etiqueta. Era capaz das grosserias mais nojentas. Seus personagens engolem engias, refugiam-se debaixo de mesas para surpreender pés concupiscentes roçando por debaixo de saias de matronas ditas respeitáveis, são crianças famélicas que tem tanto talento para a degeneração sexual que veem seus próprios corpos fornicando, à distância, uma contemplação que seria oriental se não diagnosticassem um niilismo incontornável. Essa grosseria grassiana, contudo, é capaz de, em contraponto, revelar num impacto cenas de beleza assustadoras.
Em seu melhor livro _ na minha opinião_, o barroco “Anos de Cão”, a menina Tulla, personagem das apaixonadas cartas de seu primo amante no campo de batalha da segunda guerra, é uma devassa de primeira. Seu “buraco”, nas palavras nada eufemísticas de Grass, era usado como material de troca por todos os homens que ela conhecia. O contraste do amor que seu primo lhe dedica, e o quanto ela é incapaz de enxergar algo sublime no sexo além da mera sobrevivência, cria um vácuo nos sentimentos do leitor. Parece ao leitor que deva encarar os personagens como são mostrados: bichos insensíveis de um intervalo longo no inferno. Mas essa grosseria, essa dessensibilização instrumental, nos faz engolir em seco nas mortes trágicas desses personagens, Grass nos leva além da percepção trivial ou da piedade norminativa para podermos interpretar da forma mais fiel o quanto a humanidade ficou mutilada pelo século passado, e o quanto os frutos daninhos da queda do que nos afirmava como humanos está crescendo e dominando tudo à nossa volta (ler o “A Ratazana”, em que ele encena o fim do homem); o quanto a História está engendrando novas catástrofes e novos tempos de fúria, sem surpresa e previsívelmente.
Ontem li algumas das cartas do ator ingl~es John Gielgud. A mesma desilusão diante o definhamento da música, do teatro, da literatura, do cinema, e a mesma resignação exilada da prostituição que assola todas as manifestações do que antes era atribuída ao espírito. Quando Grass lançou sua autobiografia, “Nas Peles da Cebola”, a crítica viu a “confissão” de um ex-adolescente que por um momento não resistiu à filiação à brigada jovem nazista, como se isso fosse a desmistificação de um herói nacional pio e incorruptível. Disseram ser o desespero de Grass por vender que o tivesse feito apelar para atitudes polêmicas. No que Tony Judt escreveu em sua belíssima e fundamental compilação de ensaios sobre o século XX,”Reflexões Sobre Um Século Esquecido”, o esquecimento compulsório das mazelas do referido século não nos faz bem. Nos tornam mais alienados e invulneráveis às velhas forças da história; a não-reavaliação da esquerda nos dá uma esquerda amorfa e infantilizada, dormindo com as luzes acesas para não vermos o fantasma do armário; a complacencia em repudiarmos o pensamento para nos enganarmos de sermos intelectualizados pela internet, nos faz aceitarmos a espoliação dos raros benefícios conseguidos no século XX, o fim do estado previdenciário, o fim dos direitos trabalhistas, a volta feroz do neoliberalismo, a burrice extrema e a insensibilização de confinados egoístas. Quem acusa Grass da impiosidade do nazismo não leu, não aprendeu, que a maioria absoluta das pessoas sucumbem ao mal quando não pensam, quando adotam o comportamento de rebanho (nas palavras de Nieschtche).
Amado Charlles,
após ler a tua resenha sobre “O Tambor” penso-sinto que se deva ler, em pararelo, a “Psicologia de Massas do Fascismo”, de Wilhem Reich.
Tenho a quase certeza de que quem ler as duas obras JAMAIS reproduzirá o que aconteceu.
A não ser, é claro, se o leitor for um psicopata; porém, ainda bem, parece que a natureza não é muito favorável à reprodução de tal deformidade…
Parece!
Boa sugestão, Ramiro. Não li o Reich ainda, mas agora vou pô-lo na lista.
Abraço.
Danzig ou Gdansk, de 1186 a 1806 esteve sob o domínio do Sacro Império Romano-Germânico. Com a dissolução deste império em 1806 por Napoleão Bonaparte, a Pomerânia tornou-se parte da Prússia e depois da Alemanha e finalmente com a derrota alemã na II Guerra Mundial parte dela agregada a Polônia. A população alemã da Pomerânea oriental foi expulsa e a área foi repovoada primariamente com poloneses e ucranianos.