O Acidente de Minha Filha & Festa de Aniversário de Tiago Casagrande

Publicado em 31 de março de 2005

Minha filha Bárbara ama os cavalos. Há quadros de cavalos em seu quarto, há revistas sobre cavalos na bancada onde estuda, há reclamações indignadas quando vê cavalos maltratados em carroças, há manifestações eufóricas quando vai ou volta da aula de equitação, há cômicos comentários (em minha opinião) sobre a vida particular de cada um dos animais da escola, incluindo os cães. Ela diz que será veterinária. Creio que já se faria um veterinário completo com apenas 20% de sua paixão.

Há dois anos atrás, ela convenceu-me a apoiá-la num de seus maiores sonhos. Desejava sair do balé – de que não gostava – e ir para a equitação. Recebeu a adesão da Claudia, minha atual mulher, que também queria fazer aulas. Shakespeare tem razão ao dizer que “Onde não há prazer, não há proveito”. Depois de conseguirmos a concordância de sua mãe, ela começou as aulas e surpreendeu-nos o imediato aumento de sua concentração para os estudos – antes sempre difíceis – e sua nova forma de organizar a vida. Ela melhorou demais. Nunca se saberá o papel exato que o esporte teve nisto, mas não posso evitar a idéia de causa e efeito. Além disto, o pessoal da escola é muito afetivo e sei que ela adoraria passar seus dias lá, mesmo sem aula.

Pois ontem a Bárbara desconcentrou-se e teve uma queda durante um galope. Eu estava na beira da pista, deitado, lendo o Quixote. Não vi a queda. Quando levantei a cabeça, observei que Gabrielito – o cavalo que ela montava – vinha sozinho e que a Bárbara caminhava atrás, limpando-se da areia. Ela não chorou, apenas referiu-se a uma pequena dor nas costas e preparou-se para reassumir cavalo que, segundo ela, tinha disparado. Pediu ao Sílvio – o dono da escola e professor, grande professor – para apenas andar a passo. Sílvio, experiente nestas coisas, respondeu-lhe que a aula continuava normalmente; ela deveria galopar. Bárbara achou graça e a aula terminou tranqüila, entre risos.

Para a Bárbara é sempre uma vitória enfrentar e superar tal gênero de situação. Depois, conta o ocorrido como se fosse a protagonista de uma grande aventura. E quem há de negar? Mais de uma vez, disse-me que só pessoas corajosas faziam equitação. Então, à noite, ela recebeu uma ligação casual de sua mãe e contou-lhe alegremente o caso.

– Mãe, caí do Gabrielito! Mas não houve nada, só estou com uma dorzinha nas costas.

Como resposta, obteve o seguinte:

– Pergunta para o teu pai se ele não consegue se colocar no meu lugar, pergunta sobre como eu vou me sentir se algo te acontecer, pergunta sobre o que vou dizer a ele.

Minha filha murchou no telefone e desligou. Mas… O que importa não é o que a Bárbara sentiria ou o que todos nós sentiríamos? Ou, por acaso, o que importa é como Ela – um ser dotado de natural e justa precedência divina – se sentiria?

É claro que tenho receio (muito receio, cada vez mais receio) de que algo, um dia, possa ocorrer e não precisaria de nenhum auxílio externo para me culpar. Eu mesmo trataria disto, não me faltaria vontade de morrer e talvez o fizesse. Mas não seria criminoso impedi-la de fazer o que gosta? Qual é o percentual de vítimas de equitação? É muito diferente do percentual de quem sai à noite e é baleado? E a auto-estima recém adquirida pela excelente amazona Bárbara, de dez anos de idade? Não conta? E como ficaria a oposição que, hoje, ela consegue fazer a uma mãe de personalidade totalmente diferente da sua e que não aprendeu nem a andar de bicicleta por preferir viver segura e plastificada? Só porque sua mãe vive num laboratório, preferindo evitar o contato com a realidade e as experiências mais dolorosas, não quer dizer que os outros não possam desejar uma vida real.

Sei lá. Fico tão incomodado com estas coisas que me perco. Prometo a mim mesmo estancar o giro da pimenteira sobre o que sobrou de minha relação, mas não consigo.

Ontem, aquele que é verdadeiramente o maior blogueiro do mundo (desculpa, Rafael Galvão), escreveu isto em seu decálogo:

10. Toda blogagem se dará em paz e exercitará a liberdade de expressão inerente a qualquer democracia. A blogagem estará a salvo de perseguição política, religiosa ou doutrinária de qualquer caráter. O blogueiro será livre para dizer o que lhe venha à telha, desde que, obviamente, não cometa com a linguagem crimes de calúnia ou plágio.

Estou salvo. Vamos então a algo feliz.

(Back to Last Thursday)

É simples fazer uma festa legal. Basta que haja um número suficiente de pessoas legais num ambiente legal e elas logo começam a demonstrar sua legalidade. Funciona sempre. A festa de aniversário do Tiago Casagrande foi assim. Apesar da espetacular entrevista que fiz com ele em 20 de janeiro – não deixo por menos -, ainda não o conhecia pessoalmente. Conheci o Tiago, o Gejfin, a Francesca, a Tatjana, o Rafa e muitos outros que o álcool impede de lembrar. Todos ali tinham 20 anos a menos do que eu e 10 a menos do que a Claudia, mas pessoas legais costumam conversar de igual para igual com crianças e velhos e em um minuto estávamos adaptados. O local – o Bongô, bar da Cidade Baixa de Porto Alegre – era perfeito. As cervejas sempre vieram rápidas e dentro da CNTPpC (Condições Normais de Temperatura e Pressão para Cervejas; isto é, geladíssimas). O preço era adequado. A cozinha era tão boa que voltamos no dia seguinte para conferi-la melhor. A decoração, cheia de capas de discos e de partituras de rock coladas às paredes, fez com que o grupo familiar do segundo dia passasse a desejar que o lavabo da casa que estamos construindo tivesse páginas importantes de grandes livros coladas às suas paredes. O cara poderia fazer suas necessidades lendo o trecho em que Sancho Pança chama pela primeira vez Dom Quixote de O Cavaleiro da Triste Figura ou a Parábola do Grande Inquisidor (Os Irmãos Karamázovi, Dostoiévski) ou o oitavo (discussão sobre o Opus 111 de Beethoven) ou o vigésimo-quinto (Adrian Leverkühn e o demônio) capítulos do Doutor Fausto de Thomas Mann ou uma partitura da Oferenda Musical de Bach… Já pensaram? Porém, pecado mortal, tergiverso. Voltemos à festa.

Em meio à conversa, Tiago disse que sou um excelente leitor, pois tinha-o desnudado (é uma metáfora, bem entendido) em sua entrevista, através de questionamentos que o fizeram perguntar a seu analista se ele, por acaso, era transparente. Bondade e elogio dele, é claro. Muito mais que bom leitor, sempre fui tido por excelente observador. Vi, por exemplo, o olhar comprido e nostálgico que ele lançava a certa moça em nossa mesa. A nostalgia é, em minha opinião, algo que manifesta-se não só como saudade do que passou, mas também como saudade do que virá, ou não. Vi também, deliciado, que a amizade que o une ao Gejfin é daquelas coisas que só casamentos ou nascimentos de filhos farão diminuir em freqüência, nunca em intensidade. Vi também que gostaria cultivar amizade com estes dois; são pessoas generosas, inteligentes, tagarelas, agradáveis, que valem a pena. Agradeço ao vasto mundo por fazer existir tão perto pessoas deste calibre.

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