Após a Guerra Fria, George Orwell começa a ser reavaliado

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Publicado originalmente em 25 de junho no Sul21

Há exatos 108 anos, nascia na cidade de Motihari, Bengala, região da Índia, o escritor e jornalista George Orwell (1903-1950), pseudônimo de Eric Arthur Blair. Seu pai era um funcionário da administração do império britânico. No anos seguinte, o menino Eric já estava vivendo na Inglaterra, onde estudou, apenas retornanado ao exterior em 1922, para assumir um posto na Polícia Imperial Indiana em Burma (ou Birmânia, atualmente chamada Myanmar). Em 1927, transferido para outra localidade de Burma, contraiu dengue e retornou à Inglaterra. Imitando seu ídolo Jack London, Blair começou a frequentar as favelas de Londres. Depois, segundo suas próprias palavras, passou a viver como um nativo de seu próprio país, isto é, tornou-se um mendigo.

A influência de Orwell na cultura ocidental popular e política é notável. Até hoje, quando o Brasil assiste a um programa chamado Big Brother, poucos dão-se conta de que estão citando implicitamente o onipresente Grande Irmão do romance 1984. Também o neologismo “orweliano” é utilizado em muitas línguas para significar algo contrário à liberdade. E, no Brasil, sua novela alegórica Animal`s Farm (A Revolução dos Bichos) serviu de base para Chico Buarque escrever sua “novela pecuária” Fazenda Modelo, de 1974. Sua popularidade é imensa, tanto que, somados, 1984 e A Revolução dos Bichos venderam mais cópias do que os dois livros mais vendidos de qualquer outro escritor do século XX.

A popularidade inglesa de Orwell começou antes da produção de suas obras mais conhecidas. Começou com o lançamento, em 1936, do romance Keep the aspidistra flying (no Brasil chamado incrivelmente de Mantenha o Sistema na primeira e melhor tradução e Moinhos de Vento na segunda). O livro conta a história de um grande personagem-símbolo, Gordon Comstock, um publicitário que abandona sua carreira para lutar contra o dinheiro. Na direção inversa do senso comum, Gordon procura viver a cada dia com menos dinheiro, chegando a evitar ganhá-lo. Só que ele logo conclui que o dinheiro participa de todos os aspectos e parece preencher todos os espaços da existência humana. Não adianta ser belo, inteligente, sensível ou artístico se não tiver dinheiro. O livro, escrito por um jovem e indignado Orwell, é visceral. Nenhuma surpresa para quem vivera como mendigo.

Em 1938, veio outro excelente livro, Homage to Catalonia (Lutando na Espanha no Brasil). Trata-se do relato de Orwell sobre sua participação numa milícia de tendência trotskista na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos republicanos contra Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler. Acabou por levar um tiro no pescoço. Da forma mais improvável, uma bala atravessou o órgão, saindo por trás, danificando apenas cordas vocais. Desde aquele momento, sua voz ficou sensivelmente mais aguda.

Socialista mas desencantado com o stalinismo, dedicou seus últimos anos de vida a denunciá-lo. Publicado em 1945, com mesma impressionante repercussão que teria logo depois 1984, A Revolução dos Bichos serviu para acirrar o debate ideológico em torno do comunismo real. Com sua pequena novela alegórica, Orwell acabou por dividir o mundo intelectual. Como era típico da Guerra Fria, havia os que achavam que o autor estava traindo a esquerda, o socialismo e o comunismo e, do outro lado, os pró-EUA, que tratavam de divulgar o livro como grande obra. O intento de Orwell era o de atacar a política stalinista que, segundo sua ótica, teria traído os princípios da revolução russa de 1917. O uso da obra por pessoas, entidades e governos de direita sempre foi combatida pelo autor, sem sucesso. Nos anos 70, no Brasil, o livrinho era leitura obrigatória nas escolas brasileiras.

Quatro anos depois, Orwell lançou um segundo romance que também tinha como mote o stalinismo, só que agora levado ao paroxismo. Num futuro distante, 1984, o cidadão Winston Smith decide rebelar-se contra um regime que tudo domina. Todos são governados por alguém denominado Grande Irmão, o “Big Brother”. Preso e torturado com requinte de maldades — Winston tinha fobia de ratos e, na prisão era obrigado a compartilhar uma gaiola com eles — , ele cede e, em pouco tempo, é considerado apto dentro de um programa de recondicionamento mental. Em outras palavras, de uma lavagem cerebral. Desta forma, Winston torna-se um cidadão exemplar. Trata-se, em suma, de um romance de terror. Esta segunda agressão ao stalinismo foi o final de um longo drama moral e ideológico, marcando em definitivo seu rompimento com os comunistas.

Orwell morreu em Londres, de tuberculose, aos 46 anos de idade. Em seu túmulo, há um epitálio bem simples: “Aqui jaz Eric Arthur Blair, nascido em 25 de Junho de 1903, falecido em 21 de Janeiro de 1950”. Não há qualquer referência a seu célebre pseudônimo.

Agora, longe do clima dos anos 40 e 50, sua obra começa a ser reavaliada na Inglaterra. Diversas publicações debruçaram-se sobre seus livros recentemente. Sua obra-prima volta a ser Mantenha o Sistema. A Revolução dos Bichos torna-se uma brilhante alegoria contra qualquer tipo de ditadura e seus relatos sobre Myanmar — do livro Dias na Birmânia — e a Guerra Civil Espanhola voltam a ser modelos de bom jornalismo. Orwell ainda é famoso por 1984, mas isto mude logo.

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12 comments / Add your comment below

  1. Esse cara tem um livro interessante sobre viver na pior nas ruas de Londres ou sei lá aonde, e ainda entre uns operários de porto ou carvoeiros. São livros de “reality reporter”; o maluco se engajava nos piores empregos, morava nos piores lugares, zanzava pelas ruas como mendigo só para conhecer a penúria real dos despossuídos, e depois narrá-las com toda proficiência. Não escondia, no entanto, certa carga de asco e alguns preconceitos contra as classes subalternas.

    O romance Birmanês é um primor sobre a inadequação humana face à cultura, qualquer uma, mas principalmente em meio a conflitos étnicos e colonialistas.

    Ele disse um troço interessante sobre a esquerda, algo assim como “quem é de esquerda quer sempre que a direita esteja no poder, e dê minimamente certo; se a direita der errado e a esquerda for chamada para resolver as coisas, baterá um pânico pela sua incapacidade atávica de fazê-lo”. Não é exatamente isso mas é por aí – e é mesmo!

    1. Qual será este primeiro romance? Não parece ser o Keep the aspidistra.

      Dias na Birmânia é maravilhoso.

      E a frase final, putz, tem toda a razão, apesar de que estamos tentando desdizê-la.

        1. fecho contigo.
          Estamos tentando?
          Bom , sempre vi os dois livros do Orwell mais famosos como um libelo contra o totalitarismo (par mim ditaduras são outra coisa, nem melhor nem pior, ams outra coisa) além do natural desencanto com as revoluções.
          E por aí eu penso também.

  2. Lembro de não ter gostado do Birmânia na época em que (li muitos clássicos na adolescência e deveria reler todos), mas ao longo da minha vida sempre me pego pensando nele. Vejo pessoas do clube inglês em vários lugares, vejo os olhos da mulher simples brilharem de vaidade com a possiblidade de ser tbm uma “inglesa”, vejo manchas que envergonham em toda a parte e gosto muito quando vejo um castigo simbólico de quem faz de tudo e acha que não vai receber retorno.

  3. Eu confesso que fico um pouco incomodado com a veneração por A Revolução dos Bichos, a única obra de Orwell que conheço; na minha percepção, esta obra não ultrapassa o nível de uma alegoria (e um tanto moralista), o que a coloca no baú das empoeiradas relíquias sociais, sem brilho artístico, e com lugar certo no altar das mofadas obras de “importância histórica”. Não tolero um livro que dá lições de moral a cada situação. Nesse sentido, Admirável Mundo Novo é uma Revolução dos Bichos piorada, bem mais moralista e didática, embora Huxley me pareça mais capaz no manejo das palavras.
    São os únicos dois clássicos da literatura que achei francamente ruins – não entram aqui os que nem me prestei a engrenar na leitura, como Grandes Esperanças do Dickens.
    Apesar dos pesares, permanece intacto o impacto das obras de Orwell no Ocidente, sem dúvida.

  4. Ah, A Revolução dos Bichos se tornou leitura escolar obrigatória pelo mais genuíno mérito, foi de fato uma colheita conforme a semeadura. É o tipo de literatura a qual a escola se apegava (se apega?) em desespero, tentando justificar a relevância argumentativa da inutilidade da arte.

    1. Não acho que Revolução dos Bichos tenha essa fama imerecida. Hoje, depois do fracasso dos regimes comunistas, é muito fácil ver nela uma alegoria moralista. George Orwell a escreveu no começo do comunismo, eu diria que as críticas que ele fez foram proféticas. A sua aparente simplicidade é que a tornou tão popular – digo aparente porque o simples de ler sempre é o que deu mais trabalho de escrever. É uma obra enxuta, que passa a mensagem rapidamente e apesar de curta consegue levantar muitos pontos.

      E também gosto muito de Admirável Mundo Novo. Também me parece que a utopia pessimista era inédita na época em que foi lançado. Ao contrário de 1984, que coloca o regime totalitário externo ao indivíduo, Admirável consegue tocar na questão do poder infiltrado (tem um termo melhor, mas ele me escapa), repetido e amado pelo indivíduo, que vê nele algo bom. Uma visão que acredito que esteja cada vez mais próxima do que estamos vivendo.

      Enfim, não me sinto confortável nessa posição, de discordar de alguém em termos literários. Cadê o Marcos Nunes e o Charlles Campos, porra?

      1. Gostei demais de 1984 quando o li aos 17 ou 18 anos. Passei meses deslumbrado, e a peça que ainda me sobra na memória é o globo com uma paisagem de neve em miniatura que o protagonista adquire. Devo lê-lo novamente, embora naquele tempo me desfiz do livro (tinha que promover o abusado sistema de trocar dois por um que vigora nos sebos para sobreviver minha necessidade de leitura). Não li nada mais de Orwell, e alimentei uma raiva pelo Dias na Birmânia pois com esse livro um amigo me esnobava que eu deveria parar de ler Stephen King e ler coisas “que falavam sobre o mundo real”. Mas a cia das letras está publicando uma série de livros de Orwell, tanto o livro mencionado pelo Marcos quanto um de ensaio, “Como Morrem os Pobres”. São tantos os livros e tão curta a vida!

      2. …mas eu concordo com o Lucas quando ele reclama de livros repletos de lições em cada parágrafo; a Revolução dos Bichos, pelo seu formato fabular, leva de inevitável, mas Admirável Mundo Novo, a se servir de Shakespeare na boca do Selvagem, leva de compêndio das melhores frases feitas da história, o que é ao mesmo tempo bom e ruim. Livros escritos na certeza de sua importância – quando os autores tinham medida do valor de publicar um livro – e da inteligência – quando os autores perdiam a medida do valor de “inteligência” aplicada na produção de livros – de quem os escreveu mas, à maneira deles, bons livros.

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