Minha mãe está internada na CTI (UTI) do Hospital Moinhos de Vento. Está com insuficiência respiratória aos quase 84 anos. Entubada, com respirador artificial, o prognóstico do médico e a cara de minha irmã — que também é médica — não são das coisas mais animadoras. Para completar, o horário noturno de visitação é o pior possível: das 20 às 21 horas. Então, o resultado é que ontem saí do hospital às 20h40.
O concerto da OSPA que ocorria quase no mesmo horário não era nada trivial. Era um programa de só uma obra, mas esta é das coisas que mais amo neste mundo e das quais tenho umas dez gravações: o notável Um Réquiem Alemão, de Johannes Brahms, aquele mesmo que é chamado pelos tolos de O Réquiem Ateu, como se falar pouco de deus o tornasse ateu. (Ateu sou eu, Brahms não era). Só que, como disse, eram 20h40, o concerto começava às 20h30 e eu estava longe do local onde ele já iniciara.
Comecei a dirigir para casa pensando que talvez eu não quisesse ir por superstição ou quisesse ir para quebrá-la. Afinal, este Réquiem existe por um só motivo: a morte da mãe do compositor em fevereiro de 1865. O Réquiem de Brahms, escrito entre 1865 e 1868, tem várias curiosidades: é composto de sete movimentos, que juntos resultam em algo entre 65 a 75 minutos, tornando-o a mais longa composição de Brahms. Há mais: Um Réquiem Alemão é música sacra, mas não é litúrgica e, ao contrário de uma tradição musical de séculos, não é cantado em latim e sim em língua alemã, de onde vem seu título Ein deutsches Requiem ou Um Réquiem Alemão. Pois aquela bosta que me caracteriza de projetar um problema onde ele não está, naquele dilema desesperado entre ir ou não ir a um concerto em andamento acabou por furar um bloqueio longamente preparado e meu pragmatismo começou a desabar lentamente.
Enquanto os carros e as pessoas na rua perdiam seus contornos e algo quente descia pelo meu rosto, resolvi comer alguma coisa. Com a mulher viajando, a vizinha namorando e a Babi na mãe dela, estava condenado a comer mal se fosse para casa. E da forma mais imbecil possível comecei a procurar um lugar e a juntar na cabeça as informações que sabia para escrever um texto sobre o concerto não assistido. Sabem vocês que a primeira referência ao Réquiem está em uma carta de 1865 que Brahms escreveu para Clara Schumann, viúva de Robert? Escreveu que pretendia desenvolver uma peça a ser “uma espécie de Réquiem alemão”. Depois, Brahms teria dito ao diretor de música na Catedral de Bremen, que teria de bom grado chamado o trabalho de Um Réquiem Humano. Mais adiante, vocês verão que este sujeito de Bremen era um cagão pior do que eu.
Embora as Missas de Réquiem na liturgia católica comecem com orações pelos mortos, o de Brahms centra-se na vida, começando com o texto “Bem-aventurados são aqueles que suportam a dor, porque serão consolados”. O tema do conforto aos que ficam repete-se em todos os movimentos seguintes, exceto o final, e era exatamente isso o que furara meu bloqueio. Simplesmente não deveria ter pensado. Acho que consigo passar longos dias só agindo. Ao menos tenho esta impressão.
Em seu Réquiem, Brahms omitiu propositalmente qualquer dogma cristão. Até pelo fato da ideia de deus ser visto sempre como fonte de consolo, a simpatia pelo humano persiste por todo o tempo, o que não significa dizer que o Réquiem seja ateu, apesar de sua contenção religiosa, longe daquele hábito de rasgar-se musicalmente pelo criador. De qualquer forma, a enigmática escolha dos textos fica para os musicólogos decifrarem. Quando o diretor da Catedral de Bremen expressou sua preocupação com isso, Brahms recusou-se a adicionar o movimento que lhe fora sugerido: “A morte redentora do Senhor, etc.” (João 3 : 16). E, por incrível que pareça, em Bremen, o citado diretor obrou finalizar o Réquiem por uma ária do Messias de Handel, — ??? — “I know that my redeemer liveth”. Tudo para satisfazer o clero. Um total abuso.
Sem encontrar um local para comer e pensando pouco, acabei voltando para o hospital, indo a um restaurante que há ali. Caro. Já tinha acabado o horário de entrar na CTI. Comi muito lentamente, refazendo várias vezes o texto sobre Brahms, imaginando que a OSPA já estaria finalizando o concerto. Sei que quando a música exige, a OSPA cresce. Certamente deveria ter atravessado a cidade furando todos sinais para que visse ao menos um pedaço.
Meus pensamentos giravam sobre como o Réquiem fora inicialmente detestado. Wagner mandou bala contra ele, mas temos que lhe dar o mérito da coerência e Wagner: ele erra quase sempre e sempre com farta documentação. Na verdade, estava apenas puto com o título “Alemão”. Nada mais “Alemão” do que ele, o que Brahms estava pensando? A reavaliação do Réquiem veio através de Schoenberg e seu brilhante ensaio Brahms the progressive. Então, a história da percepção a Brahms descreveu um círculo completo: a partir da década de 1860, seu trabalho passou a ser visto como “moderno” e “difícil”. As depreciações do inimigo Wagner o tornaram “clássico” e “‘acadêmico” em 1880. E, em meados do século XX, o homem voltou a ser moderno e denso. Agora, é eterno.
Fui embora do restaurante e do hospital de novo pensando na Dra. Maria Luiza. E em mim — pois assim como o homem de Bremen cometera um abuso, era um total abuso uma pessoa tentar agir como se não fosse um mamífero, fingindo preocupar-se apenas com o operacional. E fui finalmente para casa, onde fiquei sozinho.
~o~
Abaixo, o Réquiem de Brahms:
Belo texto.
belíssimo post. Um réquiem aos vivos e à sua mãe, melhoras. abç
Deu para sentir tua dor daqui. Um abraço apertado.
Lindo texto, Milton.
Momentos como esse me deixam com uma perplexidade travada, como se o mundo se colocasse diante de meus olhos pela primeira vez sob determinado e infeliz ponto-de-vista, daí a boca semi-aberta, o fluxo de consciência somente de imagens, como em um sonho impossível de discernir.
Milton,
minha solidariedade.
Sempre lembro que ela aniversaria no mesmo dia que eu.
Hoje acordei lembrando dos duros dias que passei na UTI pra visitar o meu irmão, e nem sabia porque me imaginava contando isso pra você. É um desses períodos da vida que não tem muito consolo, só se pode viver e sofrer um dia de cada vez. Espero que lhe seja o mais suave possível, dentro das circunstâncias.
– Olá Milton, torcemos pelo restabelecimento de tua mãe!
– Mas comentando sobre o Requiem de Brahms, começar com as bem-aventuranças, ou seja, com o evangelho e com a mensagem da “boa nova” Cristã, desvincula o texto do réquiem de toda aquela tradição “da culpa e de castigo”, da noção de “pecado”, e do distanciamento entre Deus e o homem.
-“Esta é precisamente a boa-nova”, segundo Nietszche, ou seja, a supressão, na tradição judáica, destas noções (n° 33 do Anticristo).
– Seguindo com Nietszche, ” a vida do Salvador não foi se não esta prática… Não tinha mais necessidade de fórmulas, de rito para suas relações com Deus. Rompeu com toda a doutrina do velho-testamento da “expiação”, do “arrependimento”, da “oração do perdão”; pois para ele a prática da vida é que faz com que alguém se sinta “divino”,”bem-aventurado”,”evangélico” e a todo instante “filho de Deus”.
– O que leva a Deus, é unicamente a prática evangélica, que se confunde com a idéia de Deus.
– O evangelho portanto, aboliu as noções de “pecado” de “perdão dos pecados”, de “fé”, e de “salvação pela fé”. Toda esta doutrina foi negada na boa-nova.
– O “reino dos céus” é um estado do coração – não algo que vem “acima da terra” ou após a morte”.
N° 35, do Anticristo, “Esse anunciador da boa-nova morreu como viveu e ensinou – certamente não para “salvar os homens”, mas para ensinar como se deve viver. É a prática, a possibilidade e liberdade de praticar, que ele legou à humanidade.
N° 36, segundo Nietzsche, Nós somos os primeiros, nós espíritos livres, a estar a altura de compreender uma coisa que dezenove séculos compreenderam mal -refiro-me à probidade, tornada instinto e paixão, que declara guerra à “santa mentira”, muito mais do que a qualquer outra uma mentira… a partir da antítese do evangelho foi construída a Igreja…
N° 37, o Anticristo, “Nossa época que se orgulha de seu senso histórico: como, então se permitiu dar crédito a essa inépcia que quer o cristianismo de ter sido inaugurado pela grosseira fábula do fazedor de milagres e do Salvador – e que todo o espiritual e o simbólico não se constituem senão um desenvolvimento mais tardio? A história do cristianismo é a história da compreensão errônea, progressivamente sempre mais grosseira de um simbolismo original.
– À medida que o cristianismo se difundia entre as massas mais vastas, mais rudes, cada vez mais estranhas às condições em que havia surgido, se tornava mais premente vulgarizar, barbarizar o cristianismo – absorveu os ensinamentos e os rituais de todos os cultos subterrâneos do império romano e sorveu as inépcias de todo o tipo de razão doentia. O destino fatal do cristianismo se liga à necessidade de que sua própria fé se torne tão doentia, baixa e vulgar como eram doentias, baixas e vulgares as necessidades que devia satisfazer.
– A igreja, é a barbarie doentia que finalmente cresce para chegar ao poder – a Igreja, essa forma de ódio mortal contra a probidade, toda a grandeza da alma, toda a disciplina do espírito, toda a humanidade espontânea e bondosa.
– Os valores cristãos – os valores nobres: somos os primeiros, nós espíritos livres, a ter restaurado a maior antítese histórica em questão de valores!
Nietszche, neste livro, faz a crítica da igreja, mas não dos valores e da mensagem do envangelho. Em alguns momentos parece destilar ódio e indignação demasiada para parecer lúcido e com disciplina de pensamento.
– Me pareceu interessante escrever este texto, com as citações mordazes e condundentes do filósofo, porque me parece que Brahms procurou associar a música do réquiem a um pensamento religioso que leve a bondade, ao humanismo, a um misticismo íntimo e reflexivo.
– Ao contrário de outros autores que, por linguagem, estilo ou temperamento, como Verdi, e que também se dizia não religioso, se deixava seduzir pelas violência e pelas dramaticidades apocalíptica e sanguinolentas.
– Wagner criticou Brahms porque não podia ignorá-lo.
– Aprecio a música de Wagner, mas me desagrada a idéia de um fim em si mesma. As teorias estéticas e políticas do autor, as vezes bastante confusas e perigosas. A ceita wagneriana resultante da capacidade de sedução do autor, da idéia da obra de arte total e de que nada mais poderia ser criado depois dela, deixando impotentes as futuras gerações. A pretensão de inventar o futuro o eternizava, e tirava toda a possibilidade de se criar e de reinventar a arte após a sua vinda.
Achei instigante, quando li alguns trechos do Anticristo, o dilema de Nietszche com Deus, e entre o evangelho e a Igreja. E o teu comentário sobre o texto do Réquiem de Brahms, me fez associar estas coisas e refletir sobre as diferentes formas que a religiosidade pode assumir, e como lidamos com os valores, com os sentimentos, com a dor, com Deus ou sem Deus.
Abraço
A visão de Nietzsche do Cristianismo, pra ser tomada como referência, não é bem uma visão ortodoxa, pelo contrário.
Milton,
Um abração bem apertado e solidário pelo momento. Te trago o meu desejo sincero de que tudo o que tiver que acontecer o seja da maneira mais suave, menos dolorosa e menos traumática possível (seja para uma recuperação ou não).
O texto foi tocante. Não apenas por causa do teu talento e do sentimento particular que te envolveu no ato da feitura desta brevíssima obra literária mas, sim, porque ele envolve coisas diferentes que não ficaram desconexas nem sem sentido.
E, para este recente amigo de breves encontros, restou o aprendizado de mais uma aula de informação sobre música clássica e cultura. 🙂
[]’s,
Hélio
Bem, isso não ajuda em nada, mas a Ospa tocou o Deutsches Requiem aqui na província de Novo Hamburgo, creio que no início deste ano, tendo nossa catedral São Luís como sala de concerto, e um pelotão de coristas que mal cabia no altar sagrado. Foi monótono, e parecia que todos torciam para que acabasse logo, eu inclusive. Gosto bem mais do conto Deutsches Requiem, que está no Aleph de Borges.
“Duas paixões, agora quase esquecidas, permitiram-me enfrentar com denodo e até com felicidade muitos anos infaustos: a música e a metafísica. Não posso mencionar todos os meus benfeitores, mas há dois nomes que não me resigno a omitir: o de Brahms e o de Schopenhauer. […] Quem se detiver, maravilhado, trêmulo de ternura e gratidão, ante qualquer parte da obra desses homens felizes, saiba que também eu me detive aí, eu, o abominável”.
E por aí vai…
Sem querer me comparar (ou melhor, querendo sim), Brahms, meu compositor preferido, era como eu: nem ateu, nem religioso. Mas isso não é um assunto para se discutir.
Quando ouvi seu Réquiem pela primeira vez, chorei. Isso basta. Excelente teu texto. Desejo melhoras para tua mãe, se elas forem possíveis. Se não forem, desejo as palavras do Um Réquiem Alemão. Abraços!
tenho q dizer q tudo isso é mto bonito
Deu pau na minha net hoje, e só retornei agora. Havia lido seu texto mais cedo, mas me reservara para comentar mais tarde. Não tenho muito para dizer. Quis apenas deixar aqui essas palavras que valem só pelo que está além delas.
Abraço.
Milton,
ler seu texto é como ver você e escutá-lo a falar quase mansamente, mais contido que manso, mais tenso que calmo, mais emotivo que controlado. E pungente.
Um abraço.
Cláudio.
Milton, que belas palavras, que bela música. não tenho a menor vontade de entrar em questões de foro teológico nesse momento. eu só consigo desejar saúde para sua mãe. abraços de paz.
Achei Incrivel o texto! meus parabens por este excelente trabalho, Achei Excelente tambem o modelo do seu site