Melancolia, de Lars von Trier

Vi duas vezes Melancolia, de Lars von Trier. A primeira foi logo na pré-estreia, na primeira sessão do filme em Porto Alegre. Eu não podia deixar de fazer isso. Lars von Trier, Emir Kusturica, Peter Greenaway, Abbas Kiarostami, Roman Polanski e talvez Alexander Sokurov ainda mantêm viva aquela curiosidade que no passado tinha cada lançamento de Bergman, Truffaut, Tarkovski ou Antonioni. Destes, dos modernos, apenas von Trier, Kiarostami e Polanski têm vida comercial em cinema. Os outros estão em DVD e olhe lá.

Ontem, ao sair do cinema, depois de ver o filme pela segunda vez, minha mulher pôs em palavras minha opinião. Ela disse que achara Melancolia mais simples e inferior a Anticristo. Estou de acordo. Mas a produção cinematográfica de nosso tempo é tão lastimável que não me surpreendo com as loas que tecem à Melancolia como obra-prima e candidato a “filme do ano”.

A ação do filme centra-se menos no fim do mundo — o planeta chamado Melancolia aproxima-se da Terra e os cientistas são cétidos sobre se Melancolia vai passar ou bater…  — , mas na relação entre as irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg). O início é muito bonito plasticamente — momento em que lembramos da deslumbrante abertura de Anticristo. São dez minutos com a música de Wagner (Tristão e Isolda) que terminam com o maior dos spoilers: o choque entre Melancolia e a Terra. Ou seja, já de saída somos informados do provável final. Quem vê o filme pela segunda vez nota claramente a simbologia da abertura. Justine, vestida de noiva, tenta avançar mas está amarrada pelas pernas. Claire, charfurdando, leva o filho no colo para não se sabe onde, nem ela. Justine constrói com o sobrinho a “proteção” para o fim do mundo. Novamente Justine, de vestido de casamento, é levada pelas águas. Os planetas chocam-se.

Como ocorre com tantos bons filmes (lembrar de voltar a este assunto), Melancolia está dividido em duas partes. Estas têm os nomes das irmãs. Na primeira, Justine casa-se numa cerimônia de opereta. Poucas vezes vi uma depressão ser tão bem caracterizada. Justine não quer casar, não parece interessada, está de saco cheio de tudo, da vida, do chefe, do futuro marido e parece apenas dar importância ao pai brincalhão (John Hurt) e à irmã. Neste trecho do filme há muito que observar. É notável como retorna ali, perfeitamente reconhecível, o cineasta que criou o Dogma 95. A câmera está na mão de alguém nervoso, os cortes ocorrem com frequência e em momentos pouco habituais, as crises são resumidas por von Trier em “apresentação da situação” e “consequência”. Neste modo cinematográfico de mostrar os fatos, as falas nunca são longas. E como rende!

A narrativa aproxima-se do clássico na segunda parte. É quando Claire, que ama a vida, desespera-se. Justine, pelo contrário, parece conformada e ciente de tudo o que ocorrerá. Porém, seu bom senso e inteligência é complementado por desconcertante passividade, a mesma utilizada para entrar na fria de sua festa de casamento. Ela sabe de seu destino. E sabe que nada pode fazer a respeito. Cética, fatalista e paralisada, faz uma adivinhação surpreendente e, transformada em oráculo (Respondendo a meu filho Bernardo: acho que o número de feijões adivinhado apenas quer dizer “eu sei tudo”), revela para a irmã a verdade fatal: “a humanidade é má, a Terra não merece existir, não há deus, nem vida em outro planeta, esqueça”. Quando Claire balbucia uma reclamação sobre o futuro de Leo, seu filho, Justine não responde.

À medida que von Trier envelhece, fica cada vez mais claras suas influências: Tarkovski e Strindberg. Se Anticristo é dedicado a Andrei Tarkovski e é tão próximo a O Espelho (1975), Melancolia parece vir de Solaris (1972). Lá também a ficção científica foi utilizada para cogitar e interrogar o humano e a humanidade. Como nos filmes do russo, o olhar dos personagens para o céu e o para que não entendem reflete um mergulho em suas interioridades. Muitos, como o marido de Claire (Kiefer Sutherland), não suportam conviver com ela. É Tarkovski e não é; trata-se é uma continuidade. Uma vez, com entrevistadores mais inteligentes que os de Cannes, Trier disse algo mais ou menos assim: “Tarkovski é um deus real para mim. Quando eu vi O Espelho, Stalker e Andrei Rublev, mesmo num televisor pequeno, fiquei em êxtase. Se você quiser falar sobre religião, eu te respondo que minha relação religiosa é com Tarkovski. Ele viu o meu primeiro filme e o odiou… Mas eu me sinto muito próximo a ele”. O deus de Trier é punitivo…

Não estou com pressa de terminar hoje. Ontem, publicamos no Sul21 uma entrevista que fiz com o escritor Charles Kiefer e vejam só. Na entrevista também havia uma questão de troca identidade e revelação da verdade do leito de morte da mãe. Quando a mãe de Trier morreu, ela lhe contou que seu pai não era o judeu Trier, mas Fritz Michael Hartmann, de família católica alemã. Vários de seus novos parentes eram renomados músicos, etc. Após quatro encontros nada felizes, o alemão recusou-se seguir mantendo contato com o filho. Isso não explicaria a entrevista de Cannes, quando ele se disse “nazista” e não judeu? E como fazer para não olhar para a melancolia e Melancolia, quando ela aparece como uma enorma esfera pronta a nos aniquilar?

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  1. Gostei muito de Dogville e esse filme que sustenta a substância artística de Lars von Trier para mim. Assisti ao O Anticristo com o bom assombro que filmes de primeiro incognoscíveis provocam (como 2001, por exemplo), mas tenho por certo que, ao contrário de 2001, não me prestarei a assistí-lo novamente. Há uma série de filmes que subtraem nossa compreensão imediata e nos ativa outros sentidos, e que só temos a impressão de um entendimento mais pleno dias após deixarmos o cinema. (Foi assim que entendi que 2001 era uma saga sobre o desenvolvimento moral do homem, e não um filme de ficção científica.)

    Mas acho que os símbolos e as referências de von Trier são muito forçados, estão mais à superfície do que a trama e acabam por incorrer no erro grave de perderem a relevância das informações veladas. É como se, nas fábulas, a rapoza levasse uma placa no pescoço com a frase: “desprezo as maçãs por não poder alcançá-las.” Assim, a cada cena de O Anticristo (não assisti Melancholia), há uma poluição de linguagem mítica de um universo psicanalítico muitas vezes simplista demais: pênis ejaculando sangue, pinhas caindo eternamente sobre o telhado, pesos de concreto soldados nos ossos do tornozelo, bosques dantescos com árvores distorcidas, a esquizofrenia do casal isolado num universo telúrico semelhante ao inferno. Quando o diretor afirma que sua obra funciona na interpretação exaustiva das referências nela impregnadas, a coisa fica ao deus dará como as temporadas finas de Lost em que o tiro para todo lado dava ares de paródia involuntária.

    Por isso que, retroativamente, vejo que me empolguei com o Anticristo mas que agora o acho um filme falho, ingênuo, pouco criativo. Von Trier usa para impressionar o velho truque de uma abertura megatômica com todos os recursos de videoclipes, uma cena isolada que, no final das contas, é a única que vale no longuíssimo filme restante (assim como no fracasso de Um Hotel de Um MIlhão de Dólares, não sei de qual diretor, a única cena espetacular e inesquecível é a do suicídio inicial).

    Achei sim sua declaração sobre Hitler bastante leviana e infelizmente importante para a interpretação de sua obra. Trier não é um gênio, não pode ser perdoado com a mesma balança que se usa com Bergman ou Kubrick. Ficar mais que duas horas submetido à interpretação esgotante de uma cabala que não foi produzida por um profeta hebreu autenticado pelo tempo, nem por um gênio, e nem por um artista capaz de sutilizar sua mensagem na boa narração de uma história, me soa como um tempo perdido.

  2. Um exemplo de mensagem simbólica pura e efetiva (tanto que a levo como uma das mais belas do cinema) é a do pavão abrindo as asas na fonte da praça do pequeno povoado ocupado pelos nazistas, em Amarcord. Não há nenhuma cena tão finamente construída em Trier. Ele precisa usar do recurso da destruição total da Terra para passar o que Felini conseguiu plenamente de sua solidão, impotência e beleza diante ao mal absoluto. Essa cena imortal de Fellini se presta a evidenciar o quanto é leviano a declaração de admiração a Hitler.

    E em termos de contar uma boa história, não creio que estejamos num período de crise. Só no ano passado, assisti a uma boa levada de filmes que botam trier no chinelo: O discurso do rei, o segredo dos seus olhos, rede social,…

    1. Eu concordo bastante sobre O anticristo. não sei pra quê tanto símbolo, me faltam os hiperlinks. Dogville eu tenho em casa, acho sensacional. Eu acho q entendo o q o Charlles quer dizer. Tomem o Labirinto do Fauno. Há bastante espaço para interpretações, símbolos, etc, mas a história q está sendo contada pode ser ouvida sempre… talvez o anticristo seja apenas inalcançável pra mim, mas tbm não sei se o trier tava ligando pra isso. não é questão de querer um filme fechadinho, mas aí fica parecendo mais um quadro que um filme.
      [qto à polêmica de cannes, me pareceu, num julgamento rápido, mais um cansaço do trier em relação às perguntas clichês da reportagem do q qq outra coisa. ele tá pouco ligando mesmo. só fico com um pé atrás pensando “será q ele acha q descobriu a verdade?”, pq o tom fica parecendo esse]

  3. Certamente, não podemos discordar mais. Começando pelo final, Acho O discurso do rei, O segredo dos seus olhos e Rede Social filmes solidamente irrelevantes e esquecíveis.

    Concordo que o símbolo da estruição da Terra é algo “claro demais”, mas ele gera todo o plot e acaba por ser eficiente. Há também um lençol de conceitos e símbolos passando por baixo da trama aparente.

    Não vejo inferioridade de Trier em relação a Fellini. Nenhuma inferioridade. Principalmente nos filmes anteriores, como Anticristo. Vídeo clip, nossa! Se toda música + imagem é clipe, melhor acabar com o gênero…

    1. Gostei muito desses três filmes. Cumpre o que o cinema propõe de maneira mais que exemplar. Não sei se são grandes filmes (tendo a pensar que O Segredo dos Teus Olhos seja um marco, por uma série de fatores, inclusive o menos compreendido deles: a brincadeira com as dezenas de clichês). Sem precisar entrar na análise de seus valores artísticos, consegue algo que falta muito em Trier: o deleite de histórias muito bem contadas.

      Afinal, o que Trier está a dizer, inconscientemente, é: para os interessados, vale mais ler um pesadíssimo e hermético tratado de psicanálise e simbologia de sonhos do que ver os meus filmes.

    1. Bá, é mesmo. Eu li este artigo sábado e sabia que tinha iniciado da mesma forma. Agora vejo que TERMINEI quase igual. PQP.

      O meio não tem nada a ver, espero.

  4. Não vi o tal Melancolia, que certamente terei que ver e de antemão já sei que não gostarei, pois todos os chiliques de filme de pseudoarte já estão exemplificados nos trailers pévios e, pior, nos comentários que já li sobre os filmes, criticazinhas de jornais e afins. É um falso grande artista, oportunista e pernóstico, mas com bom domínio de linguagem cinematográfica, o quanto basta para enganar um monte de gente. Ni neste fim de semana um filme brasileiro de 1952 ou por aí, “Presença de Anita”, que trata dos mesmos temas existenciais sob viés psicanalítico, mas com maior grau de ingenuidade, mas que, considerando a época em que foi feito e as carências de produção usual no cinema brasileiro de então, sem esquecer as interdições da censura desde então e até há pouco tempo, quase merece ser chamado de obra-prima. Dos filmes atuais e em cartaz, não há sequer UM que mereça ser visto mais do que como um passatempo ou uma aporrinhação (não precisam destacar o filminho do Allen, a merda de sempre).

  5. Como eu ainda não vi o Melancolia, então até agora o Trier só acertou em cheio uma vezinha só: com o Dogville. Cinema precisa de marketing, mas como diz o Tutty Vasques, o marqueteiro é, antes de tudo, uma criatura que perde o senso do ridículo quanto mais ganha poder.
    Dançando no Escuro é marketing total, e Cannes caiu direitinho na jogada. Quando eu assisti, me parecia uma novela do SBT com música de Luciano Berio.
    O Discurso do Rei é bom, O segredo dos seus olhos é muito melhor e A Rede Social é daqueles filmes que os críticos voltarão depois de uns anos pra dizer que ele é um retrato da jovem geração X ou Y (sexo sem amor, amizade sem contato,…). Algo da relevância de A primeira noite de um homem, Loucuras de verão (George Lucas) e sexo, mentiras e videotape. Não necessariamente obras-primas, mas todos com apontando para as aspirações e vazios dos jovens de sua época.
    PS: Ingmar Bergman contou que ficou extasiado quando viu Andrei Rublev, do Tarkovski. E olha que ele assistiu sem legendas.

  6. Charlles,

    eu acho que você está certo em relação a “Anticristo”. Eu tinha lido (infelizmente) muitas críticas sobre o filme, e estava preparado já para “ter estômago”. Mas, depois da belíssima cena inicial (virou lugar comum, né?), nada no filme me assustou mais que um documentário sobre o mundo animal já tenha causado (hienas devorando uma presa ainda viva, por exemplo), aquela terrível sensação de que o bem e o mal não existem na Natureza, e que a nossa condenação é justamente constatar que assim é. Quanto à “Melancolia”, se a música de abertura for Prelúdio e Morte de Amor, já que vi que voltarei ao início várias vezes. Ainda: “Dogville” é um filme belíssimo.

  7. Adorei seu artigo…

    É o segundo filme de Trier q assisto, o primeiro foi Dogville, Dancando tenho mas nunca consegui assisti-lo… enfim.. não sou cinéfilo, amo o cinema e toda a sua plástica, assisto tudo que posso, e sobre “Melancolia” achei que ele passou esse sentimento através de seu visual, começando pela câmera solta, um casamento num tom farsesco revelado pelos rápidos diálogos da primeira parte, a exibição de algo que parecia nunca existir… e já na segunda parte, uma pessoa q parecia cuidar melhor de toda essa situação, que mostrou na primeira parte ser a mais “centrada”, é bem mais perturbada que a própria irmã dentro de seu misticismo, mostrando a tona o que a melancolia e a depressão podem causar a um ser humano.

    Atrás de mim no cinema, sentou um rapaz que antes do filme começar (e em vários momentos durante) contou toda a vida de Lars, e claro, era impossível não ouví-lo, havia nessa pessoa um anseio de mostrar que era um fã de carteirinha.. mas o q me chamou a atenção, foi quando ele falou q “Lars cria seus roteiros e grava baseado no período em que está passando sua vida particular, e que esse último, Lars não estava muito bem”; após terminar o filme, pensei que Lars tivesse se suicidado…

    Mas deixo aqui que gostei muito do filme, a trilha sonora é maravilhosa, personagens muito interessantes e próximos de nossa realidade (acho q menos o Chateu rsrrsr..), indiquei a amigos..

    Abcs… e obrigado pela oportunidade de participar…..

    ALE

  8. Lars Von Trier é ótimo em prólogos, tanto pela utilização de belas imagens quanto pela escolha das músicas. Na abertura de Melancholia, Kirsten Dunst parece se transformar em uma das pinturas de Mark Ryden, tamanha a plasticidade das imagens.
    O ponto que me chama atenção e que é bastante visível, principalmente, em Melancholia e em O Anticristo é a divisão entre razão e emoção, bem definida através do caráter das personagens, sendo a primeira (como costumeiramente é feito) atribuída aos homens e a segunda às mulheres. O esposo, em O Anticristo, é um psiquiatra que tenta, mais que superar a morte do filho, consolar a esposa, de forma racional. A esposa, por sua vez, tem sua personalidade associada à natureza, ao erótico, ao corporal/carnal. Em Melancholia, vejo o cunhado de Justine como o seu contraponto, ao invés de sua irmã Claire. Ironicamente, percebo que Lars Von Trier dá o mesmo destino para a razão em ambos os filmes: o suicídio.

  9. Melancolia é ridiculo, lars von trier repetitivo com sua camera na mão super nauzeante e o filme ainda tem uma x man!
    sinceramente eu não poderia sair mais decepcionada de uma sala de cinema!

  10. Li tanta coisa diversa sobre Melancholia que já não sei muito bem o que esperar – ah sim, que a humanidade não presta e é má (provavelmente esse será o epitáfio de Von Trier, caso queira ser enterrado).
    Não gostei de Anticristo. O excesso de simbolismos destruiu o filme – tanta coisa que às vezes parecia filme C de terror. Quase fui expulsa da sessão, porque a partir de um momento não consegui mais prender o riso. Ri. Ri sim… ri mais que em filme de comédia. Podem me apedrejar, mas saibam que, no momento da raposa, a maior parte do público do cinema lotado também riu.
    O único filme de Lars que me cativou foi Dogville (que, hoje, já nem aprecio como dantes). Depois disso, só queda.

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