O velho Alfred Hitchcock em seu 13 de agosto

Considerando que agosto é o mês do desgosto e que o número 13 é o numero 13, a data de nascimento de Alfred Hitchcock é a mais adequada possível. O único problema é que nem sempre é possível cair numa sexta-feira. Paradoxalmente, o londrino Hitchcock nunca teve azar. Além da existência longa e altamente produtiva, é dos poucos cineastas que podem se orgulhar de terem obtido imenso reconhecimento, aliado a tonitruante sucesso de público.

Hitchcock, ao menos quando falava, era amigo das simplificações. Dizia que seus filmes dividiam-se em dois grupos: os whodunits e os MacGuffins. Dificilmente poderia ser mais exato.

O whodunit (ou “Who done it?” ou “Quem fez isso?”) é o gênero de filmes onde ao final se sabe quem foi o autor de algum ato ilícito ou, digamos, avassalador. O quebra-cabeças que nos leva ao autor é o principal ponto de interesse. Aos espectadores são fornecidos indícios, mas o final deve surpreender. Janela Indiscreta e Psicose são exemplos de whodunits.

Já o MacGuffin é um pouco mais complicado de explicar. O MacGuffin é aquilo que todos procuram, o que deve ser encontrado. É o elemento da trama que move todos os personagens. O aspecto definidor do um filme do gênero MacGuffin é que os personagens estão (pelo menos inicialmente) dispostos a qualquer sacrifício, independentemente do que seja, para alcançá-lo. São normalmente thrillers com mortes, lutas e correria. O MacGuffin pode ser apenas dinheiro, ou uma agenda, ou a obtenção de um testamento ou de algo que seja uma ameaça potencial. Normalmente o MacGuffin é o foco central da primeira parte do filme, depois diminui sua importância em razão daa camadas de ficção que lhe sobrepõem e da rivalidade entre os personagens. Mas costuma retornar ao final.

Cortina Rasgada é o maior exemplo de MacGuffin, todos estão atrás da fórmula secreta. Em Interlúdio, há o urânio que os personagens principais devem encontrar antes que chegue às mãos nazistas. Segredos de estado de vários tipos servem como MacGuffins em filmes de espionagem, especialmente em O homem que sabia demais, Os 39 degraus e A Dama Oculta.

Quanto à criação dos filmes, Hitchcock tinha outras coisas a ensinar. Por exemplo, ele quase sempre se baseava em obras literárias menores. Ele tratava de melhorá-las, vencendo a comparação. Hitch, como era conhecido, sempre criticou uma de suas atrizes preferidas, Ingrid Bergman, por seu desejo de fazer filmes com grande temas (Joana d`Arc) ou com roteiros baseados em grandes obras (Por quem os sinos dobram). Ela queria imortalizar-se desta forma enquanto Hitch lhe advertia que tais filmes seriam vencidos ou pela história ou pelo livro associado. Tinha razão.

Ultraperfeccionista, costumava adaptar as más obras originais a seus critérios de qualidade. Fazia questão de absoluta verossimilhança. Quando Lars Torwald entra no apartamento do fotógrafo vivido por James Stewart em Janela Indiscreta, este não porta um revólver nem qualquer outro tipo de arma para defender-se que não seja o flash com o qual procura cegar o agressor. Afinal, poucos fotógrafos carregam muito mais do que seu equipamento. Mas na obra original, o fotógrafo John “Scottie” Ferguson era jornalista. Se a obra fosse conhecida, o diretor talvez talvez não pudesse subvertê-la.

Hitchcock era tão perfeccionista que por anos alternou os poucos atores considerava bons e que, principalmente, adivinhavam seus desejos. Como eram muito diferentes, havia os filmes para Cary Grant e os para James Stewart. Sedução, humor e façanhas físicas? Grant. Ironias, simpatia e inteligência? Stewart. As mulheres eram preferenciamente loiras, mas o mestre soube reconhecer em Ingrid Bergman uma das mulheres mais belas do cinema. Se não teve coragem de pedir a Bergman que pintasse o cabelo de loiro, pediu a outras. Hitchcock insistia que as loiras eram mais “simbólicas como heroínas”, além de serem “melhores como vítimas”. A mais perfeita de todas o traiu de forma mais radical do que Bergman em seu amor ao gradioso: a musa fria e inatingível Grace Kelly, ao tornar-se pricesa de Mônaco, deixou o cinema.

Todas as loiras pós Janela Indiscreta parecem aos espectadores tentativas de fazer retornar às telas a Princesa Grace, assim como as anteriores parecem uma busca de Kelly. Mas todas elas são distantes deusas de gelo sob cabelos cor de brasa.

Em Um corpo que cai (Vertigo), James Stewart manda Kim Novak pintar seu cabelo de loiro. Em O Inquilino (The Lodger), filme mudo de 1926, há um serial killer que persegue loiras. Outras notáveis mulheres loiras são Tippi Hedren em Os Pássaros e Marnie, Dany Robin em Topázio, Eva Marie Saint em Intriga Internacional, Doris Day em O homem que sabia demais, Kim Novak em Um corpo que cai, Marlene Dietrich em Pavor nos Bastidores (1950), Julie Andrews em Cortina Rasgada, Janet Leigh em Psicose e a perfeita Grace Kelly de Janela Indiscreta e Ladrão de Casaca.

Este extraordinário artesão de filmes de suspense era também habilíssimo marqueteiro. Costumava fazer aparições súbitas em seus filmes. Estes momentos eram tão aguardados pelos fãs que, em Psicose, teve que aparecer logo no início para não prejudicar o suspense do filme com seu aparecimento, fato que provocava risadas nas sessões de cinema. Também tratou de mostrar na TV sua linguagem diversa da grande maioria das séries de sua época. Numa série antológica que não dispunha de personagens e situações fixas, temos todo o tipo de crimes com uma novidade: numa época em que o herói precisava ser um bom moço, Alfred Hitchcock deu preferência a inocentes não tão simpáticos ou corretos e a mocinhos dubitativos e suspeitos. Mesmo nesta série, Hitchcock não utilizava textos escritos especialmente. Havia uma equipe que fazia a varredura do mundo da baixa literatura em busca de histórias para serem adaptadas. Foi assim que, num dia muito especial, encontraram uma história na qual a protagonista é assassinada durante o banho.

São apenas 45 segundos, mas neles há 78 cortes. A cena cerne de Psicose demorou uma semana para ser filmada. Foi construído um chuveiro com dois metros de diâmetro para que a câmera captasse cada jato. O filme foi realizado em preto e branco para que o vermelho do sangue sobre o branco da banheira não ficasse tão chocante e a cena foi colocada logo na primeira metade do filme para que causasse estranheza. Afinal, naquela época, a atriz mais conhecida e cara do elenco não costumava ser morta logo de cara. Era contra as regras.

O estilo de Hitchcock variava muito. O que não variava eram sua extrema minúcia e apuro técnico. Quem pensar que os cortes ao estilo de videoclipe do assassinato de Psicose eram seu habitual, engana-se. Em Festim Diabólico era simulado um único e longuíssmo plano-sequência sem cortes, ao estilo do Sokúrov de Arca Russa (na verdade, Festim tinha oito imperceptíveis cortes).

Hitchcock soube como poucos que o cinema não era teatro nem literatura e muito menos a junção de ambos. Desde a época do cinema mudo, soube que tinha linguagem muito própria e que tinha de utilizar outro arsenal de armas. Como o silêncio e a reversão de expectativas, por exemplo, ou o humor inesperado. Quando alguém contrapunha outra opinião, o velho Hitch começava uma longa argumentação que iniciava sempre pelo mesmo bordão: “Considerando-se que o cinema é uma arte estritamente visual…“.

Parte-se do pátio adormecido, depois se desliza para o rosto suado de James Stewart, passa-se para sua perna engessada, depois para uma mesa onde se vê a máquina fotográfica quebrada e uma pilha de revistas e, na parede, veem-se fotos de carros de corrida saindo da pista. Nesse único primeiro movimento de câmera, fica-se sabendo onde estamos, quem é o personagem, qual é sua profissão e o que lhe aconteceu.

François Truffaut, sobre a primeira cena de Janela Indiscreta

Sim, sem dúvida, uma arte estritamente visual.

5 comments / Add your comment below

  1. PORQUE EM 1989 NÃO TERMINOU O SOCIALISMO, MAS COMEÇOU A VERDADEIRA DECADÊNCIA DEFINITIVA DO CAPITALISMO, que gerou esse mato sem cachorro em que estamos, esse pseudocapital gerado sem trabalho por canalhas, especuladores e banqueiros e, portanto, essa colossal quantidade de papéis e seres, sem qualquer valor, então é possível escrever isso, a seguir, nesse início desse XXI…

    A COISA E O CASAMENTO
    by Ramiro Conceição

    Uma coisa amorfa, pensante, à deriva, sobre a cadeira da sala, sou.

    – Amor, tudo bem?

    – Tá… Tá tudo bem… Só estou a pensar…

    – Amor, sua voz tá diferente – uma estalactite gosmenta começa a fluir da cadeira ao chão…

    – Amor, é algum concreto poema pós-moderno, algum treino pra pedir aumento ou alguma nova fantasia sexual, fiquei curiosa?

    – Não…

    – Mas você está tão quieto – em ondulatórios movimentos uma minhoca endividada, de 100 kg, flui em pulos qual pipoca à lavanderia do apartamento…

    – Amor, você vai consertar o vazamento?

    – Nãââoooo… Voooou daaaar ummmma oooolhadeeeelaaa nasss rrroupasss dooooo varrrrrraaaaal – de repente, começo a compreender a práxis marxista e também a curvatura do espaço-tempo de Einstein; sou atraído de maneira inexorável ao ralo adjacente à máquina de lavar; tento gritar, mas cheguei ao impossível…

    – Amor, as roupas estão secas? – escorro pelo sistema de esgoto; e dentro de um buraco negro estou a imaginar, na décima dimensão… – Amor, você pode levar o lixo?

  2. Será que, de tanto copiarem Hitch, os seus filmes perderam muito de seu impacto? Felizes os que viram seus filmes logo após o lançamento. Que grande autor foi ele! Nos filmes de Hitch, li em algum lugar, nós somos sempre cúmplices ou testemunhas, nunca um observador isento.Concordo. Fico pensando em quanto ele contribuiu para o cinema.
    Criou os movimentos curtos de câmera que foram usados em momentos de tensão emocional.Janela indiscreta é um de meus preferidos. Afinal, os amantes do cinema são voyeurs, a nossa janela indiscreta.

  3. Gostei muito do texto, mas discordo de algumas definições. Na verdade, Hitchcock fez pouquíssimos whodunits. Ele explicou, em suas maiores entrevistas (a Truffaut e a Bogdanovitch) por que não gostava desse estilo de filme: a partir do momento em que descobria o assassino (ou o autor de um crime), o telespectador perdia o interesse nele, e então o suspense se tornava impossível. Acredito que nem mesmo Janela Indiscreta seja um whodonit, porque, para sê-lo, é preciso que os suspeitos tenham sido apresentados e que se possa desconfiar de outros, além do próprio culpado. No caso do filme, James Stewart já suspeita diretamente do verdadeiro autor de um crime. Hitchcock está mais preocupado em retratar Stewart como uma espécie de espectador de cinema do que em traçar uma história intrigante de mistério.
    Acredito que os únicos whodonits que Hitchcock fez foram O Inquilino, Assassinato, A Dama Oculta e Psicose. Talvez Sabotagem. Acho que os outros não são. Na maior parte, você já sabe quem é o culpado desde o começo.
    Quanto ao McGuffin, ele era mais uma técnica de narrativa do que um gênero, ou estilo, de filme de suspense. A principal coisa que acho que não foi dita sobre ele é a seguinte: quando um McGuffin é usado, não há necessidade para o espectador saber de que se trata. Ele é um leitmotiv importante para os personagens, mas não para o espectador. Isso dava a Hitchcock a oportunidade de exercitar a sua segunda maior paixão, depois do suspense: a ironia. Muitos espectadores se contorciam de vontade de saber o que era o McGuffin, mas ele nunca revelava.
    O diretor usou McGuffins em muitos de seus filmes. Alguns são Cortina Rasgada, Intriga Internacional, Os 39 Degraus, Vertigo (Milton, também não acho esse filme assim tão legal).
    Acho que para definir grande parte dos filmes do Hitchcock, há um método melhor: o dos homens acusados por crimes que não cometeram. Isso é um verdadeiro clichê hoje em dia, mas é necessário lembrar que o diretor, se não o criou, foi quem o popularizou. Os 39 Degraus, Pacto Sinistro, O Sabotador, A Tortura do Silêncio – são muitos os filmes com esse enredo.
    Outra fama que o diretor angariou injustamente era de que ele era um craque do medo. Bom, mais ou menos. Se você fosse encaixar seus filmes no gênero ‘terror’, acho que só dois entrariam: Psicose e, talvez, Os Pássaros. Hitchcock era, antes, um bamba no cinema da apreensão, do timing, talvez da angústia. Sobre o medo, outros militaram melhor do que ele, principalmente a partir dos anos 1960: Terrence Fisher, Roman Polanski, Mario Bava, John Carpenter, Jacques Tourneur.

  4. Um Corpo que Cai é o meu filme preferido. Pelas muitas camadas de interpretação, pela música hinótica do Bernard Herrmann, pela esperteza do fotógrafo Robert Burks ao nos dar a sensação de vertigem etc. Para o velho Hitch, cair de um telhado era menos perigoso que cair de paixão.

    Há várias histórias (algumas apócrifas) que envolvem Hitchcock. Numa delas, ele teria dito que a duração de um filme deve ser proporcional a necessidade de um homem ir ao banheiro. Em outra, ele disse que quando alguém não entendeu um filme, um dos dois é burro, ou o diretor ou o espectador. Ao descartar a adaptação de livros famosos, ele falou que só os livros ruins podem virar um grande filme.
    Ele sempre ganhava o debate com seu humor e simplicidade de argumentos. Mas numa ocasião, ele teve que concordar com seu opositor. Quando foi filmar Lifeboat (1944), que se passava em alto-mar, ele recusou o uso de trilha sonora mandando dizer ao compositor: “Pergunte ao sr. Raksin de onde vem música num barco à deriva no mar” Raksin mandou a resposta: “Pergunte ao sr. Hitchcock de onde vêm as câmeras”. O filme teve trilha sonora.

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