Toda a literatura americana moderna se origina de um livro escrito por Mark Twain, chamado Huckleberry Finn (…). Não havia nada antes. Não houve nada tão bom desde então.
Ernest Hemingway
(Havia Moby Dick, prezado Hemingway, mas tudo bem. Adiante!)
As pessoas que tentarem encontrar uma razão para esta narrativa serão processadas; as pessoas que tentarem encontrar uma moral serão banidas; as pessoas que tentarem encontrar um enredo serão fuziladas.
Mark Twain, na abertura de Huck Finn
A nova edição do livro, em tradução de Rosaura Eichenberg, é uma joia que torna coisa do passado aquela edição que li anos atrás, quando adolescente, feita de forma muito rebuscada e “literária” por Monteiro Lobato. Nunca contestei a afirmativa ouvida e lida por anos de que Huck Finn seria o romance fundador da literatura americana, mas voltava meu pensamento para outros autores, como meu querido Melville, que escrevera Moby Dick 33 anos antes de Huck Finn, de 1884. Os dois romances são muito diferentes e incomparáveis — até por suas intenções. Moby Dick é todo o mundo, enquanto Huck é uma brilhante, brilhantíssima e realista história de aventuras juvenis. Afirmo a meus sete leitores que o romance de Mark Twain subiu muito em meu conceito após esta leitura e isto se deve às boas soluções encontradas pela tradutora. Tudo porque o narrador é o personagem principal e este fala/escreve sempre errado, como a criança semi-alfabetizada que é. Pior, durante todo o livro ele se relaciona com o negro escravo (e analfabeto) Jim, que fala ainda mais errado. Então, como o autor raramente interrompe seus diálogos para esclarecer quem diz o quê, a inteligência da tradução está em deixar sinais claros através do gênero de erros cometidos. Deve ter sido trabalhoso, mas ficou excelente. A tradutora nos ensina rapidamente a sintaxe de cada um e a leitura logo ganha fluidez. Um belo trabalho de tradução.
Há uma querela envolvendo o livro. Este seria racista pela utilização de certas palavras, como nigger, por Twain. Por Twain? Ora, aqui já temos uma primeira inverdade ficccional, pois quem a usa é Huck, não Twain. O que os moralistas não notaram é que Huck ama Jim, quer vê-lo livre e faz tudo para isso, no que é confusamente auxiliado por Tom Sawyer ao final do livro. Ou seja, minhas irritações com o “politicamente correto” também são fruto de seu desprezo pela mais mínima complexidade.
OK, sem spoilers: como quase todo mundo sabe, Huck Finn era um menino que vivia com duas “tias” numa cidade ao largo do Mississipi. Porém, seu pai, um alcoólatra, queria Huck de volta para usá-lo como serviçal e para tomar surras sistemáticas. O pai acaba por sequestrá-lo, mas ele foge, encontrando Jim na fuga. Jim morava na casa da Srta. Watson, uma das tais tias, com Huck. Ele passam a viajar pelo Mississipi numa balsa em busca de aventuras, de prazer e de liberdade para ambos.
O romance é muito significativo do ponto de vista da formação dos EUA. Huck foge com seu amigo Jim em busca dos estados americanos onde a escravidão já havia sido abolida. No entanto, por total ignorância geográfica, vão para o sul. Ambos vivem uma vida nômade, picaresca, absolutamente sem estratégias a longo prazo que não sejam os delírios de Jim. Pelo caminho, encontram uma farta, divertida e às vezes terrível galeria de personagens. É notável a inexistência de autoridades legais nos EUA daquela época. A lei é feita pelas próprias pessoas, a criminalidade grassa e a cena dos fazendeiros inimigos está muito próxima do que se veria na máfia depois. A segurança (segurança?) é realizada pelas próprias pessoas e suas armas.
Mesmo com Huck mentindo, roubando e enganando desbragadamente, o grande debate moral do livro deflagra-se unicamente em seu cérebro: deveria ele realmente ajudar Jim em sua fuga? A amizade vale infringir a lei? A amizade vale ir para o inferno? O debate é tão franco que Huck pensa todo o gênero de barbaridades racistas. Não toma atitudes que não seja a da solidariedade, mas duvida. Isto também assusta alguma correção moralista sem que esta reflita que trata-se de um menino conjeturando. Tanto que o livro recentemente recebeu uma versão americana limpa das impurezas dos nigger e de centos pensamentos… O leitor apenas perde.
Olha, li feliz. Tremendo livro. Pode ser lido como um infanto-juvenil, mas é muito mais do que isso. E é como se a grande obra de Twain estivesse sendo publicada pela primeira vez em nosso país.
Que boa notícia, tradução nova e fiel, vou correr comprar porque esse é um dos livros da minha vida e Huck foi meu herói da pré-adolescência.
Tenho que ler.
A propósito, tem também O Corvo, do Poe, que é, acredito, de 45.
Abraço.
Mayquel
Muito bom saber da nova tradução. Vou presentear meu filho e, assim, ter uma boa desculpa pra reler. O que mais gostei no post foi o pequeno lapso (foi um lapso?) filme/livro, porque o romance é tão vívido e com tantas cores, texturas e provocações visuais que bem pode ser dito assim.
:¬))
Que baita ato falho!
e agora, lapso corrigido, meu comentário fica enigmático 🙂
Estava assim antes do Efeito Luciana:
Mesmo com Huck mentindo, roubando e enganando desbragadamente, o grande debate moral do FILME deflagra-se unicamente em seu cérebro: (…)
Melhor expilcar.
Ahh que maravilha. Uma tradução para reler!!!
Excelente!!
Que lindo. Me apaixonei pelo Huck Finn da primeira vez. Vou de novo. Obrigada pela resenha!
Mais um pra minha lista!
Bela surpresa! Esse livro estava desaparecido das livrarias brasileiras há décadas. Um crime.
É interessante que isso dá muita corda para debate, no mesmo sentido do discurso clássico sobre quem foi mais influente, se Dostoievski ou Tolstoi.
Moby Dick talvez não foi mais influente que Huck Finn. Saul Bellow, Philip Roth, Hemingway, Steinbeck, Salinger, Dos Passos, são realmente filhos diretos de Finn, cada um tendo escrito livros de formação inspirados em maior ou menor grau nessa obra-prima de Twain. Steinbeck tem Vinhas da Ira, com personagens picarescos e narrativa de saga de aventuras; Bellow chegou a fazer referência até no título ao Huck, com o seu não menos maravilhoso Aventuras de Augie March; Philip Roth tem suas aventuras sexuais de intelectual citadino, mas que bebe do humor anárquico de Twain, como em Complexo de Portnoy. Salinger é óbvio. Hemingway construiu o Nick Adams como personagem twainiano pós guerra. E assim vai.
Até o único desses escritores que pendeu mais para o lado de Moby Dick deve sobremaneira ao Huck Finn: Faulkner, com seus negros segregados, e seus rapazinhos brancos que perpetram fuga com os ex-escravos atrás de algum Éden idílico, como é o caso de The Reivers.
Em algum lugar de meu cérebro perderam-se as referências que faria a Bellow, Faulkner, Steinbeck e Pynchon.
Realmente, os dois livros formam vertentes, mas acho que Bellow fica está ora num, ora noutro campo.
Abraço.
Ia falar em Jack London tb.
Nunca li Mark Twain…
Barbada. Tem em pocket.
Li o Huck Fynn nos meus inocentes doze anos de idade e adorei, porém não entendi muito bem. Alguns anos depois reli, e gostei ainda mais. Que bom que saiu uma nova tradução, mais decente que a do Monteiro Lobato.
Milton, vim te conhecer por indicação da Borboleta Luciana. Eu gostei muito da nova tradução de Huck!Havia anos que tinha lido e ao reler agora, simplesmente adorei. Mark Twain ao saber que algumas bibliotecas americanas iriam tirar As Aventuras de Huckleberry Finn das prateleiras juvenis disse: “Até que enfim! Nunca escrevi esse livro para jovens leitores.” Ele jamais perdeu a piada. Quanto a Melville não amo tanto assim.
abs
Jussara
Boa resenha, nhô Ribeiro.
Acho todo esse alvoroço sobre o livro de Mark Twain ser racista totalmente imbecil.
Quando pequeno, nunca li Twain, mas agora com quase 20 anos, gostei demais e até comprei o Tom Sawyer.
Visitem meu site resenharexperientia.wordpress.com, aceito críticas, gente. Logo irei publicar uma resenha desse romance que continua cativando muita gente.
Comentário bem atrasado, que nem sei se será lido.
Li “As Aventuras de Tom Sawyer” quando tinha doze anos e gostei muito. Depois é que fui descobrir que todo mundo só fala no tal de Huck Finn. Estou brigando com o original em inglês agora, está sendo uma boa experiência.
E então, Milton, você não teria nada a falar sobre o Tom?
Tentei ler essa obra na edição da Martin Claret, cuja diagramação, todavia, amesquinhou o livro.
Encetei segunda tentativa com a belíssima tradução da Zahar, mas esta é bizarra, na medida em que tenta abrasileirar o dialeto usado pelo autor.
Pelo que depreendo, a tradução de Monteiro Lobato, condenada por alguns, me parece a melhor, conquanto eu não conheça a da editora LPM.