Só existe uma receita: ter o maior cuidado na hora de cozinhar.
HENRY JAMES
Esta citação abre Como Funciona a Ficção (232 páginas, Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann), de James Wood, e é uma frase muito humilde e realista da parte do autor, pois no final quem decidirá o que será usado na ficção serão as decisões do autor e de seu editor aliadas à apreensão do leitor, que dirá afinal se funcionou. São coisas realmente muito complicadas de se colocar num manual, pois há toda uma realidade complexa e inapreensível: o ouvido, a música, a qualidade das analogias, o uso dos detalhes, a criação de personagens, os diálogos, o bom uso do discurso livre indireto, o foco, a capacidade de fugir do convencional, etc. Ou quem sabe poderíamos chamar todos este itens simplesmente de bom gosto?
Wood sai avisando logo de cara:
Neste livro, tento responder algumas das perguntas fundamentais sobre a arte de ficção. (…) espero que seja um livro que faz perguntas teóricas e dá respostas práticas – ou, em outras palavras, que faz as perguntas do crítico e dá as respostas do escritor.
Nem tanto, Mr. Wood. As respostas vêm por exemplos, é mostrado o que funciona e tais demonstrações certamente são irrepetíveis — pois qualquer ingrediente alterado tem o condão de mudar inteiramente o sabor e se não fosse alterado teríamos casos de plágio… Desta forma, acho que é demais dizer que dá respostas práticas. (Fico pensando nas oficinas literárias. Como se aprende a fazer ficção? Com algumas instruções sai alguma coisa, mas é possível “formar o ouvido” lendo poesia, como sugere Wood? Ou seria mais eficiente ouvir Bach ou observar os trabalhos gráficos de Goya? Como se forma a sensibilidade, cara-pálida? Ah, não me perguntem. Acho que os “professores” das oficinas apenas podem dar uma melhorada, verificar que o aluno está pronto ou mandá-lo guardar seu dinheiro).
Apesar de ser organizado por assunto, o livro funciona por acumulação, tendo citações reutilizadas. Conhecer a maioria dos livros citados é bom, mas não é fundamental para a compreensão do todo. A primeira parte, “Narrando” trata basicamente do artifício do “discurso ou estilo indireto livre”, onde características dos personagens grudam num texto escrito em 3ª pessoa e quem passa a falar não é mais o autor. Os exemplos vem de Joyce, principalmente dos contos de Dublinenses, onde o irlandês usa e abusa do recurso. É um bom capítulo. Depois, grande parte dos argumentos derivam principalmente de Flaubert, mas também de James, Woolf, Dickens, Dostoiévski, Tolstói, Bellow, Saramago, Philip Roth e Muriel Spark. Há observações excelentes sobre o flâneur, os personagens, os detalhes, a linguagem e o melhor, o último, sobre verdade, convenção e realismo.
Leio estes livros sobre ficção por puro prazer. É como se sentasse com um amigo muito culto e gentil para trocarmos ideias num café. Não tenho a expectativa de aprender. No máximo, a discussão auxilia a organizar os pensamentos, o que já é muito e faz certamente parte de um aprendizado. Organizar o que se sabe É aprender, certamente, e é bom falar sobre literatura e lembrar passagens de livros. Mas que ninguém leia este gênero de livro ou frequente oficinas na expectativa de que os horizontes se abram. São momentos enriquecedores e agradáveis. Se serão fecundos é outra história.
Leia mais e melhor: Aprendendo como funciona a ficção
P.S. — Há toda uma discussão sobre se Wood é conservador ou não. Não me pareceu sê-lo. O que é correto dizer é que ele parte via de regra do ícone e que cultiva grande amor pelo realismo. As pessoas fazem confusão entre realismo e naturalismo… E, bem, para ser compreendido há que dar exemplos de conhecimento comum, correto? Além do mais, vários autores recentes e muito diferentes entre si são citados. Esqueçam.
Li seu texto, reli o meu e fiquei pensando… Ao que parece, em termos de “mercado”, gente como Woods, você ou eu, Milton, somos bastante antiquados, pensamos literatura como arte e não conseguimos vê-la reduzida à macetes. Há coisas nesse mundo tão focado em vendas que fazem arrepiar minhas escamas dinossauricas.
Realmente, não consigo reduzi-la a macetes. Aliás, comprei o Anna Kariênina da Cosac. Li quando adolescente e sei que tá cheio de macetes ali…
E que tal reduzir a programas de computador? É sério. Apavorante, mas é sério.
Quanto a Anna Kariênina da Cosac é uma das coisas que vou buscar em PoA. Também li na adolescência, quero reler com outros olhos.
Atenção, Nikelen: tive que ENCOMENDAR meu Anna Kariênina.
Todo guia de como fazer, toda cartilha, todo manual para a arte ou para vida, é coisa de imbecis. Os gênios fazem o que lhes vêm, por inspiração e/ou por premeditação. Nunca por macetes. Por isso são gênios. Os que copiam os gênios é que tornam a “criação” algo como “macetes”.
Tá com cara de aula de carpintaria.Todo grande escritor domina esta técnica
Mas se sabe que não é o bastante.
Vc deve ter aproveitado pouco o conteúdo deste livro.Seus escritos são
impecáveis
Que tal se arriscar num romance,seu Milton?
Bora, Milton. Segue a sugestão do emilio e escreve um romance sobre a morte de Alma Welt. Minha proposta de consultoria técnica gratuita e anônima está de pé.
Muito obrigado, Emilio e Jorge.
Na verdade, eu tenho um romance quase escrito, um livro e contos ao qual só falta dar um nome e três outros romances planejados. Um deles é o que o Jorge fala acima.
Abraços.
Como funciona a ficção do amor
por nanosegundo…
ELÍPTICO
by Ramiro Conceição
Que instante é esse
em que o beijo comprido,
maduro, bonito, com alegria,
alumia o obscuro?
Com matemática, com fantasia,
estou a aprender uma astronomia
que explica o porquê que, elíptico,
o meu olhar gira em torno do seu.
Então me beija, amor, enquanto é
tempo dos efêmeros crisântemos,
pois o resto é vazio, longo e lento.
SUBLIME DO SER
by Ramiro Conceição
Quero aquele que sei ser;
não o quê me fizeram crer.
Nascer, madurar e morrer
– eis o sublime do ser:
cada qual com a sua altura
digna da sua envergadura.
Não são assim os montes
e também os horizontes?
SERES DO SER
by Ramiro Conceição
Além das flores, quem és?
– Sou as cores.
Além das cores, quem foste?
– Fui amores.
Além de amores, quem serás?
– Serei o que fizeste e fazes.
Além das flores, quem eras?
– Era as cores.
Além das cores, quem foras?
– Fora amores.
Além de amores, quem serias?
– Seria o que fizeras e fazias.
Além das flores, quem sejas?
– Seja as cores.
Além das cores, quem fosses?
– Fosse amores.
Além de amores, quem fores?
– For o que fizesses e faças:
além das flores sê
os seres, sendo, sido,
além dos pecados idos.