Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): X – Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Li Madame Bovary apenas uma vez e acho que não preciso de outra para colocar o livro em minha antologia. Se o ser humano é uma coisa eternamente insatisfeita, aqui temos o microcosmo da infelicidade feminina e da desilusão romântica. Não vou contar em detalhes a história do livro, mas esta foi tão imitada e recontada que não guarda mais nenhuma novidade. É o romance que fundou o realismo em 1857 e, assim como a cabeça do Quixote estava cheia de romances de cavalaria, a de Emma Bovary estava lotada de romances sentimentais. Emma casa-se com o médico Charles Bovary, insípido e apaixonado por ela. O tédio insere-se de tal forma na relação que ela passa a detestar o marido. A progressão do tédio e sua transformação em desinteresse e depois ódio são contadas por um autor absolutamente impecável e no perfeito domínio de seus meios. Nada parece estar fora do lugar, nenhuma palavra. Dividido em três partes, como um concerto, demonstra como Emma permanece insatisfeita mesmo após o nascimento da filha e de seus apenas prometedores adultérios.

Na época em que foi publicado, Madame Bovary causou escândalo e foi julgado por obscenidade. Quando perguntaram a Flaubert quem era a protagonista que tinha sido descrita com tamanha perfeição e riqueza de detalhes, o autor respondeu ao tribunal com a célebre frase que diz tudo: “Madame Bovary c`est moi!”.

E era. Flaubert passou mais de uma década observando, apurando, polindo, reescrevendo e inaugurando o realismo na literatura. Flaubert foi absolvido no ridículo processo, mas não foi perdoado pelos puritanos, que não conseguiam admitir o tratamento cru dado ao tema do adultério e pelas críticas implícitas ao clero e à burguesia, ambos desprezados por Flaubert. Mas esqueçam o fundador do realismo, o processo e tudo o que cerca Bovary. O livro é antes de tudo um texto admirável, construído com arrebatador virtuosismo; um texto trabalhadíssimo onde não se notam sinais do suor do autor. Tudo flui, tudo ganha seu devido ritmo e todo detalhe jogado ali é significante e contribui para a narrativa. Talvez Madame Bovary seja a maior das aulas práticas de narração.

James Wood escreveu em Como funciona a ficção que “Tudo começa e tudo termina com Flaubert”. Discordo. A literatura moderna recebe notável impulso com Flaubert, mas já começara com Stendhal. E não termina no autor de Bovary, como diz a frase de efeito de Wood. Porém, para usar uma palavra que está na moda, Madame Bovary é um romance verdadeiramente incontornável.

Como funciona a ficção, de James Wood

Só existe uma receita: ter o maior cuidado na hora de cozinhar.
HENRY JAMES

Esta citação abre Como Funciona a Ficção (232 páginas, Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann), de James Wood, e é uma frase muito humilde e realista da parte do autor, pois no final quem decidirá o que será usado na  ficção serão as decisões do autor e de seu editor aliadas à apreensão do leitor, que dirá afinal se funcionou. São coisas realmente muito complicadas de se colocar num manual, pois há toda uma realidade complexa e inapreensível: o ouvido, a música, a qualidade das analogias, o uso dos detalhes, a criação de personagens, os diálogos, o bom uso do discurso livre indireto, o foco, a capacidade de fugir do convencional, etc. Ou quem sabe poderíamos chamar todos este itens simplesmente de bom gosto?

Wood sai avisando logo de cara:

Neste livro, tento responder algumas das perguntas fundamentais sobre a arte de ficção. (…) espero que seja um livro que faz perguntas teóricas e dá respostas práticas – ou, em outras palavras, que faz as perguntas do crítico e dá as respostas do escritor.

Nem tanto, Mr. Wood. As respostas vêm por exemplos, é mostrado o que funciona e tais demonstrações certamente são irrepetíveis — pois qualquer ingrediente alterado tem o condão de mudar inteiramente o sabor e se não fosse alterado teríamos casos de plágio… Desta forma, acho que é demais dizer que dá respostas práticas. (Fico pensando nas oficinas literárias. Como se aprende a fazer ficção? Com algumas instruções sai alguma coisa, mas é possível “formar o ouvido” lendo poesia, como sugere Wood? Ou seria mais eficiente ouvir Bach ou observar os trabalhos gráficos de Goya? Como se forma a sensibilidade, cara-pálida? Ah, não me perguntem. Acho que os “professores” das oficinas apenas podem dar uma melhorada, verificar que o aluno está pronto ou mandá-lo guardar seu dinheiro).

Apesar de ser organizado por assunto, o livro funciona por acumulação, tendo citações reutilizadas. Conhecer a maioria dos livros citados é bom, mas não é fundamental para a compreensão do todo. A primeira parte, “Narrando” trata basicamente do artifício do “discurso ou estilo indireto livre”, onde características dos personagens grudam num texto escrito em 3ª pessoa e quem passa a falar não é mais o autor. Os exemplos vem de Joyce, principalmente dos contos de Dublinenses, onde o irlandês usa e abusa do recurso. É um bom capítulo. Depois, grande parte dos argumentos derivam principalmente de Flaubert, mas também de James, Woolf, Dickens, Dostoiévski, Tolstói, Bellow, Saramago, Philip Roth e Muriel Spark. Há observações excelentes sobre o flâneur, os personagens, os detalhes, a linguagem e o melhor, o último, sobre verdade, convenção e realismo.

Leio estes livros sobre ficção por puro prazer. É como se sentasse com um amigo muito culto e gentil para trocarmos ideias num café. Não tenho a expectativa de aprender. No máximo, a discussão auxilia a organizar os pensamentos, o que já é muito e faz certamente parte de um aprendizado. Organizar o que se sabe É aprender, certamente, e é bom falar sobre literatura e lembrar passagens de livros.  Mas que ninguém leia este gênero de livro ou frequente oficinas na expectativa de que os horizontes se abram. São momentos enriquecedores e agradáveis. Se serão fecundos é outra história.

Leia mais e melhor: Aprendendo como funciona a ficção

P.S. — Há toda uma discussão sobre se Wood é conservador ou não. Não me pareceu sê-lo. O que é correto dizer é que ele parte via de regra do ícone e que cultiva grande amor pelo realismo. As pessoas fazem confusão entre realismo e naturalismo… E, bem, para ser compreendido há que dar exemplos de conhecimento comum, correto? Além do mais, vários autores recentes e muito diferentes entre si são citados. Esqueçam.

O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk

Meu amigo Ricardo Branco conta uma história mais ou menos assim: um dia um leigo pediu para que Albert Einstein lhe explicasse a Teoria da Relatividade. Einstein detalhou-a e o cara não entendeu nada, pedindo nova explicação. Tudo repetiu-se com o cientista facilitando um pouco as coisas, mas o sujeito não entendia. Na terceira ou quarta explicação, o leigo finalmente entendeu, mas então Einstein respondeu: “Bem, mas acho que simplifiquei tanto que o que disse não descreve mais a Teoria da Relatividade”.

Fiquei com esta historinha na cabeça enquanto lia este livro de Pamuk. Quem lê romances há quase quarenta anos sabe que é uma arte complicada, quem consegue enxergar as falhas e discutir os erros e o leque de opções que eles apresentam, acaba por valorizar a arte contida no gênero literário mais popular e que literalmente engole as outras formas literárias por onde passa. Neste O romancista ingênuo e o sentimental (Cia. das Letras, 146 páginas), Pamuk simplifica tanto, é tão brilhante e claro em suas analogias que, durante a leitura, ficava feliz, mas pensando se ele não estava agindo como o Einstein da historinha do Branco.

Olha, eu acho que não. Achei o livro brilhante mesmo. Hesitei muito (dois dias…) para escrever esta curta resenha por pura insegurança. Estava esperando uma segunda opinião. E ontem li algumas listas de melhores livros de 2011. Como sempre faço, fui ler os nomes dos votantes e dei de cara com o de José Castello. Pô, esse eu respeito. Melhor livro estrangeiro de 2011? O ensaio O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk, seguido de outros livros de Flusser, Barthes, Macedonio Fernández e Tolstói.

Ok, então! O livro consiste de seis palestras sobre o romance proferidas por Pamuk na Universidade de Harvard. O ritmo é o da conversa, o mesmo utilizado no clássico Aspectos do Romance, de E. M. Forster. A Carol Bensimon, que não leu ainda este livro do Pamuk, me perguntou se eu já tinha lido o Como Funciona a Ficção (How Fiction Works) do genial James Wood. Não, não li. Mancada, tenho que comprar.

Pamuk fala sobre a série de questões que angustiam quem escreve um romance. Planejar ou não? Como esconder o verdadeiro centro (assunto ou discurso) do romance? É mesmo deselegante mostrá-lo claramente? Como um romance cresce e se transforma? (Exemplo: o verdadeiro camaleão Moby Dick — inicia como a vida do mar, vai para a obsessão e termina como metáfora do mundo inteiro). Como utilizar a memória ou a experiência do leitor? E a trama? E o tempo? E as descrições? Claro que não ensina nada e que ninguém vai tornar-se escritor após a leitura, mas reflete sobre os problemas de forma organizada e inteligente. Se quisesse provocar, diria que funciona melhor do que qualquer oficina literária, às quais também não ensinam ninguém sobre como tornar-se escritor e que raramente tem um Pamuk como instrutor…

Indico fortemente a leitura. Mas o livro torna-se ainda melhor se o leitor conhecer Tolstói (principalmente Anna Kariênina, mas também Guerra e Paz), Dostoiévski, Melville, Borges e Calvino. Muito são citados, mas estes são os principais. O estranho título do livro refere-se ao ensaio de Schiller que fala sobre os escritores ingenuamente inconscientes e os sentimentalmente reflexivos.