De Millôr Fernandes (1923-2012), em seu livro Poemas (1999)


Chico morreram. Millôr morremos. Simples assim.

Guga Alayon

Poema para grande orquestra parada – um silêncio bem alto

Você já amou uma mulher brilhante.
Você já amou uma mulher formosa.
Você já amou uma mulher
Silenciosa?
Que fala pouco.
E bem,
E baixo,
Que não eleva a voz por raiva
Nem má educação,
Que anda com seus pés de seda
Num mundo de algodão.
Que não bate, fecha a porta,
Como quem fecha o casaco
De um filho
(Ou abre um coração)?
Que quando fala, se aproxima
Ao alcance da mão
Pra que a voz não se transforme em grito?
E que absorve o mundo
Sem re-percussão
Num olhar de preguiça
Num colchão de cortiça
Como um mata-borrão?

Mas um dia ela sai
Levando o seu silêncio
De pingüim andando solitário em
sua Antártica
(ou Antártida),
No eterno
Gelo sobre gelo
No infinito
Branco sobre branco
E dos cantos e recantos
Onde habitou calada
– entre oniausente –
Brotam aos poucos,
Os ruídos
Pisados,
Colocados embaixo do tapete
Guardados na despensa
Na gaveta mais funda
De uma vida em comum.
Os trincos falam,
A cafeteira chia,
A espreguiçadora range,
O telefone toca,
As louças tinem,
O relógio bate,
O cão ladra,
O rádio mia,
Toda a casa ressoa, reverbera
e brada
E a orquestra em pleno do teu
dia-a-dia
Ataca a algaravia
Fabril
Escondida no lençol de silêncio
Com que ela partiu.

6 comments / Add your comment below

  1. Eu aceito o que você disse sobre o Chico. Agora ESSE não há como relativizar. Millõr é um gênio absoluto. (Não colocarei exclamação por ser um fato óbvio).

    Há alguns meses venho esperando por essa notícia. Aliás, desde quando ele parou de escrever para a Veja_ e, em decorrência, eu parei de comprar essa revista. Existe uma classe de octogenários que me mantêm as orelhas em pé e o nível da angústia da perda em alerta. A qualquer momento espero a notícia da morte de um certo escritor colombiano.

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