O programa de ontem da Ospa oferecia duas obras bem diferentes, um aquecimento com o subwagneriano Franz Schmidt (o Intermezzo da ópera Notre Dame) e um portento de Gustav Mahler, a Sinfonia n°4.
O tal Intermezzo era bem curtinho. Brumas wagnerianas adentraram o palco da Reitoria. Porém, logo foram desfeitas pelas cordas tentando tocar em uníssono. Não funcionou nada bem, mas perdeu-se pouco: o Intermezzo é um daqueles longos clímaces (plural de clímax, por favor?) que parecem desaguar em algum local muito longínquo, bem longe do Bonfim e de suas famílias judias. Mas vamos ao que interessa.
A Ospa estava preparada era para Mahler. A quarta sinfonia é uma pequena e leve composição quando comparada com suas irmãs. É uma sinfonia distinta das outras do compositor, assim como o são a sarcástica 9ª na obra de Shostakovich ou a haydniana 8ª na de Beethoven. Os temas da 4ª fluem com facilidade e humor. Porém, a orquestra não tem vida fácil. A orquestração é via de regra rarefeita; a música é levada por sub-grupos solistas que se revezam em diferentes combinações. Não é apenas música de primeira qualidade, é uma coisa interessante de ser assistida ao vivo, pois as melodias que começam aqui são continuadas ali; depois, são feitas variações timbrísticas acolá e finalizadas algures. A plateia perce que está num jogo de tênis, virando a cabeça a cada momento. É que, nesta sinfonia, Mahler fugiu dos grandes efeitos de massa, escolhendo combinações de câmara e o contraponto como fator de equilíbrio da obra. Os músicos estavam todos muito concentrados, sem os habituais saracoteios daqueles que regem e motivam a si mesmos. E o resultado foi maravilhoso.
Há muito a destacar. Começo pelo spalla Emerson Kretschmer e pelo concertino Omar Aguirre. Foram perfeitos em seus muitos solos. As intervenções do trompista Alexandre Ostrovski e da oboísta Viktória Tatour foram absolutamente impecáveis — sempre são! — , assim como as dos clarinetistas Augusto Maurer e Diego de Souza e as dos flautistas Klaus Volkmann, Leonardo Winter e de mais um do qual também não sei o nome. Impressionante a forma como os violoncelos cantaram no terceiro movimento sob o domínio da precoce aposentada Inge Volkman, que fazia… Sua última apresentação com a Ospa? Ah, brincadeira, né?
(Intermezzo: Querida Inge. Parabéns. Mas não pare de trabalhar. Mantenha projetos e siga tocando cello. A aposentadoria pode ser uma coisa terrível e digo isso por vários exemplos familiares. Mantenha-se ativa, até porque é um crime deixar tanto talento de pijamas ou chinelinhas em casa. Nada de ficar vendo TV e acompanhando séries americanas. Isso emburrece, certo? Fim do intermezzo).
Porém, meus amigos, nada foi comparável à regência compreensiva do imenso Kiyotaka Teraoka e, principalmente à delicadeza, à presença e ao canto do soprano Sara Kobayashi. Céus, aquilo foi espantoso desde a entrada — uma aparição saída dentre os violinos. Além de ser uma moça belíssima, Sara tem excelente voz e sabia que estava cantando A Vida Celeste palavra por palavra. Foi um momento arrepiante e inesquecível. É muito difícil fazer o simples que o lied parece exigir e tenho certeza que todos os que estiveram lá levaram bem gravada em seus olhos a imagem e a voz de Sara Kobayashi cantando o final da 4ª. Foi o máximo.
Sem dúvida, uma grande noite.
Milton,
Só para esclarecer, ontem o spalla foi o Emerson Kretchmer e o Omar estava como concertino. Ambos são spallas da orquestra e revezam na função, acho que por isso confundiste.
Infelizmente não pude participar do concerto ontem, mas foi muito bom ler teu comentário!
Ao contrário do Milton, não tenho experiência suficiente para fazer comentários que saiam do gostei não gostei, mas mesmo assim quero contar a minha visão do concerto.
Eu nunca tinha escutado Mahler antes. Não por falta de interesse, mas pelo tamanho das obras. Eu tenho dificuldade para me concentrar durante tanto tempo, e dizia para mim mesmo que Mahler era algo que eu precisava assistir ao vivo. Fiquei contente quando vi a programação para ontem, e me dirigi ansioso para a UFRGS.
Confesso que fiquei assustado com a afirmação do Milton de que a 4a de Mahler é pequena e leve perto das outras. Eu achei uma obra grande e difícil. Gostei muito do primeiro movimento, com o jogo entre os vários grupos da orquestra e a música se desenvolvendo sem pressa. Depois acabei me cansando, e passei partes dos movimentos dois e três distraído com o divertido movimento do cabelo de Teraoka. Estava olhando para os cellos e contrabaixos quando Sara Kobayashi surgiu ao lado do maestro. Eu digo “surgiu” porque realmente não a vi entrando. Fiquei bastante desconfortável por não entender uma palavra do que ela cantava (o programa deveria ter a letra da música e a tradução) e fiquei surpreso com as intervenções agressivas da orquestra na música delicada conduzida pela cantora.
Feynman disse que achava estranho e até fazia piadas com os artistas quando eles diziam “obra X é melhor do que obra Y” mas não conseguiam justificar com critérios objetivos. Mais tarde ele se interessou por pintura e numa exposição pensou “quadro X é muito melhor do que quadro Y” para só depois descobrir que o quadro X tinha sido pintado por um artista respeitado e o quadro Y por um ajudante de pouca expressão. Eu posso não ter conseguido usufruir de tudo que a 4a de Mahler oferecia, mas peguei o suficiente para sentir que é muito, mas muito melhor do que aquele Rach da semana passada.
Acho que foi bom, para um primeiro Mahler, estou esperando os próximos. Agora só em novembro…
Em tempo, o Schmidt entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Que bom que era curtinho.
Na verdade, Cláudio, eu apenas conheço o conteúdo por ter lido capas de disco. Trata-se de um poema bastante ingênuo, o que justifica totalmente o ar de “encantamento” da cantora.
A sétima, que a Ospa tocará em novembro, é uma sinfonia enorme: são 90 minutos, cinco movimentos, os pares são duas Canções Noturnas. Não é uma sinfonia extraordinária, mas se achaste a quarta pesada e difícil, prepare-se. Mas, sabe?, acho normalíssima tua opinião. Não pense que meu primeiro Mahler foi engolido como algodão doce, acho até que chamei o Hugo…
Que relato preciso, ponderado e valioso ! Oxalá todo “ouvinte casual” (na falta de uma expressão melhor) que se aproximasse de nossos concertos pudesse formular uma apreciação assim, em nome da aproximação entre o que fazemos e maiores audiências.
“Meu primeiro Mahler” é sem dúvida uma categoria discursiva desejável; “quase chamei o hugo”, já um clássico da mesma. Tudo isso em favor da tese de Adorno de que só se gosta do que se conhece (=do que se apreende a gostar um dia) e da pedagogia da assimilação parcial de Adrian Leverkun, aka Thomas Mann.
Torne sempre a frequentar nossos concertos, Cláudio – e também o blog do Milton. Em nome da audição inteligente. Seu texto também é muito divertido.
Ouvi a 4a sinfonia de Mahler pela Orquestra Sinfônica de Santo André e um detalhe me deixou curioso: a soprano, em vez de entrar logo no início ou no intervalo entre os atos, apareceu no palco num momento específico do terceiro movimento – aliás, o próprio maestro informou antes da apresentação que isso aconteceria e que, obviamente, não era para aplaudir!
Segundo ele, a entrada dela era a representação de alguma coisa – esqueci mesmo.
http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=IwFVNZE2Fak#t=105s (a soprano entrou mais ou menos em 2:10, no clímax do movimento).
Fiquei, no entanto, intrigado, já que não achei nenhum vídeo no Youtube em que isso acontece nem nenhuma indicação em artigos sobre a sinfonia.
Apesar disso, devo admitir que o efeito foi MUITO emocionante.
Abraços.
Grande Milton Ribeiro
Parabéns pela sua crônica, e dou parabéns também por tudo de bom que essa orquestra nos proporcionou. Destaco “sem os habituais saracoteios daqueles que regem e motivam a si mesmos. E o resultado foi maravilhoso”.”É que quando somos regidos por um Maestro como este, não precisamos de saracoteios e muito menos de nos motivar, tem ele ali a frente cumprindo esta Missão de motivar a todos, o Maestro! Usando suas palavras, quando o Músico precisa motivar a si mesmo; so sitando o Chico pra explicar…
“Mas o que eu quero lhe dizer a coisa aqui tá preta”.
O resultado foi maravilhoso e este não poderia estar relacionado a saracoteios! E não estou brigando, eu doo a Alma para fazer música com um maestro que vê e ouve tudo, motiva e respeita a todos nas condições adversas de se trabalhar e de faz de conta, em que nos encontramos!
obs: O governo faz de conta que nos paga nós deveriamos fazer de conta que tocamos!
Grande abraço