Bloomsday, ou o longo caminho do Ulisses de Joyce até seu público

Hoje é domingo, mas se não fosse seria feriado em Dublin. Mas  há comemorações do Bloomsday em muitíssimos lugares do mundo. Uma rápida consulta ao Google comprova que haverá festas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, uma enorme em Brasília com a presença de Augusto de Campos, em Natal, outra tradicional em Santa Maria (RS) — já com dezenove anos — , entre outras. Se em Dublin o feriado existe para que as pessoas possam relembrar os acontecimentos vividos pelos personagens de Ulisses, de James Joyce, pelas dezenove ruas da cidade citadas no livro, em outras locais os admiradores do romance promovem leituras, debates, análises ou apenas diversão.

Tudo indica que o Bloomsday seja o único feriado em todo o mundo dedicado a um livro, excetuando-se a Bíblia.

Joyce e a corajosa editora Sylvia Beach, responsável pela primeira edição de Ulisses

Há alguma controvérsia sobre quando começou a ser comemorado. Alguns especialistas indicam que teria sido em 1925, apenas três anos após o lançamento do livro, outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de James Joyce, mas a hipótese mais aceita aponta para o ano de 1954, na data do quinquagésimo aniversário do 16 de junho de 1904. Hoje o Bloomsday está inserido no calendário cultural em muitos países.  É uma festa que pode acontecer em qualquer lugar onde se leia ou se discuta James Joyce e o Ulisses. E a comemoração deste ano foi especial por marcar os 90 anos da obra e os 130 de seu autor.

A ação de Ulisses dá-se num só dia. O motivo da escolha da data deve-se a um acontecimento pessoal na vida de Joyce. Em 16 de junho de 1904, sua futura companheira, Nora Barnacle, na época uma jovem virgem de vinte anos, teve receio de completar aquela que seria sua primeira relação sexual e masturbou Joyce “com os olhos de uma santa”, como o autor  relatou em uma carta.

E o nome Bloomsday? Ora, a (pouca) ação (exterior) de Ulisses é centrada no personagem Leopold Bloom. Joyce narra minuciosamente um dia da vida de Bloom — um agente publicitário de Dublin, na verdade um anti-herói baseado no Ulisses da Odisseia de Homero. Bloom é casado com Molly Bloom, sua infiel Penélope, antítese da original, e seu amigo Stephen Dedalus, que representa o filho de Ulisses, Telêmaco, é o alter ego de Joyce. Dedalus não é filho de Bloom como Telêmaco era de Ulisses, mas este gostaria que fosse. Esta é apenas um dos irônicos e poéticos paralelos entre as duas obras.

Não parece, mas é uma provocação. Marilyn Monroe lê o final de Ulisses. Justo o “pornográfico” monólogo de Molly Bloom

A história do livro, aquilo que ocorre nas aproximadamente 18 horas do Bloomsday, é simples e humano. Pedimos o auxílio de Idelber Avelar para resumir os acontecimentos: “No dia 16 de junho de 1904, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia no rio; Leopold Bloom, vendedor, atormentado por uma possível traição de Molly, sua mulher, toma café da manhã, recebe uma carta de amor endereçada ao seu alter ego, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando duas garotas, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim, Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim da história”.

Mas o que faz de Ulisses um livro genial? Certamente não é sua história tão prosaica. O que garante a  imortalidade do romance é sua forma. Dentro de um ritmo verbal absolutamente alucinado, que eventualmente inclui a criação de novas formas ortográficas e sintáticas, o romance inaugura e leva ao limite o monólogo interior, o fluxo de consciência. Neste ponto devemos abrir duas camadas de leitura e interpretação.

Primeiramente, a do grande público: Ulisses não precisa ser encarado como um enorme quebra-cabeças literário. Pode ser lido como um livro extremamente bem humorado, engraçado e ousado. Há muito de novidades em Ulisses, romance incrustado no início do século XX e que se projeta sobre nós. Ele foi escrito numa época na qual já havia Freud, convencendo o mundo de que o desejo sexual era a energia motivacional primária da vida humana. Então, além do bom humor, há o fato de ser um pouco escandaloso ao falar em sexo de uma forma clara e inédita para a época, o que até hoje surpreende a alguns. Também a postura não machista de Bloom, há mais de cem anos atrás, rende boas discussões em Bloomdays. Principalmente, ao negar-se à vingança em resposta à infidelidade de Molly:

Assassinato nunca, visto que dois erros não tornam um certo.

A obra foi levada a julgamento e declarada obscena e pornográfica. Ulisses foi censurado nos EUA e no Reino Unido por pouco mais de uma década. Em 1933, a editora Random House (EUA), tentou importar uma edição francesa, mas as cópias foram apreendidas pela alfândega quando o navio foi descarregado. Porém, em 6 de dezembro de 1933, foi liberado pelo juiz John M. Woolsey, que julgou que o livro poderia ser lido pelos americanos… A qualidade da prosa ousada e poética de Joyce deixavam o senso comum dos anos 20 do século passado sem saber o que pensar:

Cada um que entra (na cama) se imagina ser o primeiro a entrar enquanto que ele é sempre o último termo de uma série precedente mesmo se ele for o primeiro de uma série subsequente, cada um se imaginando ser o primeiro, último, único e sozinho, enquanto não é o primeiro, último, único e sozinho, enquanto não é nem o primeiro nem o último nem o único nem sozinho numa série originada então e repetida ao infinito.

A outra forma de ler Ulisses á a erudita: Joyce foi um dos escritores mais cultos de sua época, falava vinte línguas e tinha sólida cultura clássica. Cada um dos 18 capítulos do romance corresponde a, aproximadamente, uma hora de ação. Cada um deles estabelece um diálogo cheio de ironia com um episódio da Odisseia, de Homero. Em cada um deles está inserido um sistema detalhado de referências a um ramo do conhecimento humano. Mais: cada um simboliza uma parte do corpo humano e, para finalizar, dentro de cada capítulo há intermináveis séries de enigmas, desde simples jogos de palavras, até trocadilhos, onomatopeias, arcaísmos, estrangeirismos e novas palavras. Todo este trabalho de linguagem — e a cuidadosa estrutura onde está inserido — serve notavelmente para apoiar a grande invenção de Ulisses: o monólogo interior.

É óbvio que entender tudo isso é extremamente trabalhoso e inalcançável a quem não conhece Homero ou não tem uma cultura comparável a de Joyce. A obra talvez seja melhor fruída se tivermos no cérebro ou à mão, na forma de notas de rodapé, parte do notável arcabouço de referências joyceano, mas a falta dele não anula nem diminui dramaticamente a grandeza de Ulisses, tanto que as novas traduções têm omitido as explicações. Melhor assim, opina este comentarista.

Em comum aos dois estilos de leitura há a profunda humanidade e a apurada riqueza psicológica de um romance que tem ressonâncias não apenas para irlandeses ou literatos. Este ecumenismo no interesse pelo livro ainda não teve o condão de desmistificar Ulisses do mito de sua extrema dificuldade e impenetrabilidade, fazendo com que muitos se aproximem dele como se estivessem diante de um livro destinados antes às estantes e à academia do que  ao leitor comum.

As diversas edições da obra têm entre 850 e 1200 páginas. Para ser mais exato — pois o livro foi é mundialmente estudado e os mais incríveis estudos estatísticos e estruturais estão  disponíveis — , são aproximadamente 265.000 palavras, com um léxico de 30.030 palavras (incluindo nomes próprios). Apesar de imenso, nada indica que este livro que atrai controvérsia e acusações de obscenidade desde o lançamento e que hoje é modelo de uso perfeito de diversas técnicas narrativas — o fluxo de consciência, a paródia, a alusão, o uso inteligente do trocadilho — , será movido de sua posição central no panteão modernista. A pedra antes rejeitada tornou-se fundamental.

Para finalizar, uma ironia desferida por Joyce em entrevista após o lançamento de Ulisses:

A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.

Se não é para tanto, não podemos negar a boa tentativa de Joyce.

5 comments / Add your comment below

  1. Com o “panta rei”
    do tempo, percebi
    que devia a Joyce
    algumas coisas poéticas.
    Uma delas, por certo, foi
    isso…:
    .
    .
    MODA
    by Ramiro Conceição
    .
    .
    TODAMODAÉBOSTA
    BOSTATODAMODAÉ
    ÉMODATODABOSTA
    MODATODABOSTAÉ
    TODABOSTAÉMODA
    TODAMODABOSTAÉ
    ÉMODABOSTATODA
    TODABOSTAMODAÉ
    ÉTODABOSTAMODA
    BOSTAMODATODAÉ
    ÉBOSTATODAMODA
    MODABOSTATODAÉ

  2. Sim, o Sul 21 tem que rever suas diretrizes, cortar fora aquela coluna afrontosa do Dirceu, se quiser sobreviver. Tem que abrir os olhos e começar a fazer auto-crítica. A Carta Capital já está fazendo, como prova esse texto da Cynara Menezes:

    http://socialistamorena.cartacapital.com.br/os-20-centavos-e-a-indignacao-da-esquerda-com-o-abandono-de-bandeiras/

    Ou vocês são pelas melhoras do Brasil, pelo povo e pela verdade, ou continuam sendo mero panfleto partidário. Leio todos os jornais e sou leitor do Sul 21, por isso tenho direito de criticar. Por que não postei esse comentário no Sul 21? Postei, mas censuraram.

    1. Eu acho que eles poderiam dar ao menos vazão a alguma perplexidade, como a de qualquer leitor diante do calhamaço de Joyce que, na pretensão de ler o livro entre idas e vindas do ônibus de sua cidade dormitório até o centro da cidade, vê a viatura em chamas e percebe que o melhor a fazer é usar o volume sobre o rosto para assim defendê-lo das balas de borracha.

Deixe uma resposta