No Charles Dickens Museum, há uma citação do autor reproduzida numa das paredes em letras garrafais:
Entradas anuais: 20 libras, gastos do ano: 19,60; resultado: felicidade. Entrada anual: 20 libras; gastos do ano: 20,60; resultado: miséria.
Considero de insuportável pieguice vários livros de Dickens, mas nunca a obra-prima do humor Pickwick Papers, o adorável David Copperfield e este Grandes Esperanças, a meu ver seu melhor romance. É importante dizer que a tradução de Paulo Henriques Britto, cuja capa da Penguin Companhia está ao lado, é disparada a melhor. Então, evitem procurar o livro em edições antigas, até porque o preço está abaixo de quarenta reais, excelente valor para um volume de 704 páginas.
Como muitos romances do autor inglês — e basta visitar o Museu Dickens em Londres para comprovar — , a questão econômica é central. (Não vou contar a história, tá?). Philip Pirrip ou Pip é um órfão que é criado pela irmã que o atormenta e o marido, o bondoso ferreiro Joe Gargery. Ele vivem numa pequena aldeia no interior. A vida de Pip se altera quando um benfeitor misterioso o faz herdeiro de uma grande fortuna, o que o faz conceber a primeira fornada de “grandes esperanças”. A partir do fato, lentamente vão se alterando não apenas o comportamento das pessoas em relação ao personagem como o próprio Pip passa a rejeitar suas origens.
A segunda parte ocorre em Londres, onde Pip será educado e conhecerá a bela e inatingível Estella (outra “grande esperança”), filha de criação da abastada solteirona Miss Havisham, aquela que seria sua mais provável benfeitora. Bem nascida, Estella o faz sentir inferior por puro e atualíssimo preconceito de classe. Ou seja, Pip sai da aldeia, mas a aldeia não sai de Pip. Aqui, o romance se tornará quase flâneur, apresentando uma incrível e excêntrica série de personagens — uma das especialidades do autor. Interessantíssima em tipos humanos, este longo trecho talvez seja a melhor prosa de toda a obra do inglês. No final, Pip descobre seu benfeitor, o que lhe acarretará imenso problema moral.
Dickens foi extremamente popular, mas não tão simples quanto a maioria imagina. É um falso ingênuo cuja família costumava frequentar as prisões em razão de dívidas — sim, havia isso na Inglaterra. Sua abordagem da infância e da pobreza não era indignada, mas muito consciente e dolorida. A defesa da igualdade está sempre implícita. Quando Bernard Shaw comparou Marx e Dickens e quando lemos sobre o profundo apreço de Hobsbawm pelo autor, damos-nos conta do Dickens político. Só que sua tribuna era outra. Para entender a importância que ele teve, é fundamental saber que seus textos eram multiuso. Ele não se tornou o mais popular autor do século XIX casualmente: tinha extremo conhecimento de seu público e dava especial atenção às formas de divulgação de seus trabalhos. A primeira forma adotada por Dickens era testar seus textos lendo-os em voz alta. Isto era fundamental por dois motivos: primeiro pelas constantes leituras públicas que o autor fazia e que lhe deram celebridade, e também porque sabia que a postura seria repetida em reuniões familiares, hábito comum numa época de poucos alfabetizados.
Não é, certamente, um escritor sofisticado, mas é um narrador poderoso e de importância fundamental que, em Grandes Esperanças conta uma história cheia de reviravoltas e profundamente humana.
Está na lista das minhas releituras. O humor inseparável do drama é coisa de mestre, não? Gosto de quase tudo nesse romance, mas a cena do teatro talvez seja a minha preferida.
Rapaz, e eu não li este. Adorei David Coperfield, Pickwick, e gostaria muito, muitíssimo, de ler os outros livros dele que são raridades inigualáveis por aqui. Lembro que você mesmo falou do quanto Dickens é injustiçado no Brasil. Morro de vontade de ler o Loja de Antiguidades, em português, com um chocolate quente e em uma poltrona macia.
Acho que é um clichê preguiçoso e não revisto esse de dizer que Dickens é piegas. Convencionou-se falar isso e morreu o discurso.
Bem, eu o acho piegas e assumo a responsa…
Parafraseando uma música do Cocoricó que rola todos os dias aqui em casa e não me sai da cabeça: Se o Milton falou, tá falado. :-))
Comprado. não ando podendo comprar nada, mas me dei de presente. valeu pelo incentivo. acho que vou adorar.
É de fato um livro interessante e superior aos demais do autor, apesar dos truques literários bobos, com reviravoltas que ensinaram as oficinas de roteiristas de Hollywood a manter o interesse na trama. Mas há vigor humano aqui, como, aliás, há em outros livros de Dickens, como em Casa Soturna (acho que mudaram o título desyte em tradução recente, mas não tenho certeza; em Portugal tem outro e divertido título) que, inegável dizer, foi de fato um artista, apesar de submetido a convenções comerciais necessárias à sua sobrevivência como literato. A aventura da independência (logo, da miséria) não era e não é para todos, vista a impossibilidade de considerar os certamente milhares de autores tão bons ou muito melhores de Dickens que morreram anônimos que perseveraram na dignidade artística, e se consagraram à invisibilidade, o que pode ser muito digno, mas não deixa de ser uma tristeza para aqueles que, como nós, nunca os leram e nunca os lerão. Paciência; o culto é dos tolos.
Precisas palavras, Marco!
Casa Soturna. Taí um dos que desejo ler.
Por falar em piegas, ninguém mais piegas que Shakespeare, não?
Dickens é um dos “artistas perfeitos” do Javier Marías.
Marcos.
Piegas, não: sentimental…
Oh, senhor – que acabaste de voltar após séculos, e dois comentários abaixo -, por favor, cura esse ser, esse veterinário goiano, que está a salivar uma baba longa, muito longa………., sobre os versos de Shakespeare.
Milton, você vai adorar isso:
🙂
O melhor livro do Dickens é ‘Um Conto de duas Cidades’.
Milton, eu tenho a tradução do José Eduardo Moretzsohn, republicada recentemente pela Abril Coleções, a diferença dela pra da Penguin é muito grande?
Não conheço, mas eu compraria a da Penguin. Sofro MESMO com más traduções.
Esse foi um dos que Milton indicou aqui e gostei muito. Li essa edição da Penguin mesmo. Não me incomodei com os truques literários citados pelo Marcos, gostei tanto que comprei o Pickwick papers da editora Globo que encontrei na Fnac. Mas ainda não li.
Oi Milton,
só consegui ler o livro no recesso de final de ano. e, adorei. peguei e não desgrudei mais. o que mais me chamou a atenção foi a mudança na linguagem utilizada pelo narrador: no início, parece mesmo fala de criança, uma criança sofrida, porém, observadora, interessada nas coisas dos adultos. Depois, a fala muda, passa a ser a de um adolescente orgulhoso de ter a chance que tem, como se fosse diferente e superior aos outros. mais para o final, um adulto que compreende os erros q cometeu e tenta desculpar-se com os outros e a ele mesmo.
só um reparo à sua memória do livro: Pip não encontra Estella em Londres. Ele a conhece, e já se apaixona por ela, ainda criança, quando é obrigado a ir “brincar” na mansão da Havisham.
novamente, obrigada pela indicação.
🙂
Milton, você pretende continuar com essa série que se encontra inacabada ou deu por encerrada?
Pretendo continuar. Porém, para tanto, tenho que reorganizar minha biblioteca, esculhambada por uma separação absurdamente violenta em que me deixaram fora de casa… E olha que a traição foi da outra parte… Então continuará, só não sei quando.
Bom saber, espero que você consiga se restabelecer logo e boa sorte.