Porcarias, de Marie Darrieussecq

A capa de Porcarias
A capa de Porcarias

No original francês, é Truismes; em Portugal, é Estranhos Perfumes; em inglês, Pig Tales; e no Brasil recebeu o bom título de Porcarias.

Porcarias, livro de Marie Darrieussecq que ganhei de presente de minha filha, é apresentado como uma parábola. Parábola é uma “narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior”.

Um pouco mais nojento do que seus modelos clássicos — A Metamorfose, de Kafka, e A Revolução dos Bichos, de Orwell –, Porcarias é uma narrativa fluida e grudenta como poucas.

Sem entrar em detalhes, o livro conta a história de uma vendedora de perfumes que se deixa levar um tanto passivamente pela vida e que acaba por deixar que seus instintos primitivos a dominem, fazendo com que vá se transformando lenta e literalmente numa porca. O final é fantástico e triunfante: o que era crise deixou de ser, pois agora ela é uma porca completa.

O que o livro tem de sensacional é a narrativa crua e eficiente da solidão, da não-aceitação, da angústia e da inadaptação de alguém que vai perdendo a auto-estima até resolver que o estilo de vida da selva é o mais mais adequado para si. Dizendo isso fica clara a parábola, mas há mais. Porcarias é um bonito e cômico ataque tanto ao politicamente correto como ao culto da vida sã e dos corpos sarados.

Lá em 1997, a Folha de São Paulo entrevistou Marie Darrieussecq. É muito interessante.

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A mulher que virou leitoa

Por Maria Ignez Mena Barreto

A história de uma vendedora de perfumes que se transforma em leitoa é o grande acontecimento literário do ano na França. “Truismes” (Truísmos) é o primeiro romance de Marie Darrieussecq, 27, nascida em Bayonne, País Basco, ex-aluna de uma das instituições acadêmicas mais prestigiosas da França, a École Normale Supérieure, e professora da Universidade de Lille.

Com 204 mil exemplares vendidos na França, “Truismes” seduz o meio editorial internacional: os direitos já foram vendidos para os Estados Unidos (New Press), Alemanha (Hanser), Itália (Guanda), entre outros. No Brasil, será lançado no próximo mês pela Companhia das Letras.

Para coroar o êxito, o diretor Jean-Luc Godard já adquiriu os direitos de adaptação para o cinema e deve escrever o roteiro a quatro mãos com a jovem autora.

Com um título que brinca com a consonância de “true” (verdade, em inglês) e “truie” (leitoa, em francês), “Truismes” conta a história de uma vendedora que, para enriquecer seu patrão, dá aos clientes um tratamento especial em discretas cabines clandestinas. Sob o efeito dos cosméticos que ela recebe em agradecimento a cada balanço, seu corpo começa a sofrer uma lenta modificação: ela percebe seu peso aumentar, sua carne se tornar firme e rosa, seus pêlos endurecerem. A carreira de vendedora-modelo degringola com o surgimento de sintomas menos compatíveis com o comércio sexual: comportamentos alimentares estranhos, atitudes corporais tão inconvenientes quanto um cio suíno incontrolável e caprichoso. Oscilando entre sua aparência suína e humana, a heroína passa por guerras, epidemias, vai parar em um asilo de loucos e dali escapa para se meter num imbroglio de políticos fascistas.

Para falar sobre o romance e o trabalho de adaptação para o cinema, no qual trabalha com Godard, Darrieussecq recebeu a Folha em seu apartamento em Paris.

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Folha – “Truismes” é seu primeiro romance publicado, mas não o primeiro que você escreve…

Marie Darrieussecq – Eu escrevo desde os seis anos, sempre escrevi histórias. Aos seis anos, evidentemente, eu escrevia contos, coisas assim. Com 15, comecei a querer fazer coisas mais elaboradas. “Truismes” é o sexto romance que termino, no qual eu pus um ponto final. Os outros são exercícios, não estão suficientemente maduros para a publicação. “Truismes” é o primeiro que atinge este nível.

Folha – Mas você já recebeu um prêmio literário…

Darrieussecq – Sim, um prêmio por uma novela, quando eu tinha 19 anos, o Prix du Jeune Écrivain (Prêmio do Jovem Escritor). Este prêmio me deu uma certa legitimidade, foi a partir daí que eu comecei a dizer que eu escrevia. Antes, eu não ousava, acho extremamente pretensioso escrever.

Folha – E um belo dia você enviou um manuscrito a um editor…

Darrieussecq – Foi formidável. Fui aceita por quatro editores. Com um primeiro livro, isso acontece uma vez em mil.

Folha – E por que você escolheu a P.O.L., a editora menor e menos conhecida do grande público?

Darrieussecq – Porque, para mim, ela encarna um espírito de independência que não encontro, necessariamente, nos outros editores. O trabalho dela é muito singular, ela edita as coisas de que gosta antes de se perguntar se o livro vai ser vendido ou não. E isto me agrada. Além disto, P.O.L. era a de menor estrutura, eu logo tive um bom contato humano com as pessoas que trabalham lá.

Folha – É verdade que você escreveu “Truismes” em três semanas?

Darrieussecq – Sim, é verdade. Sempre que escrevo, acontece a mesma coisa. Eu tenho uma ideia, que me vem de não sei onde, e começo a sonhar com ela. Eu comecei a sonhar com essa história de uma mulher que se transformava em leitoa. Eu não sabia absolutamente aonde essa história ia me levar, que significado ela tinha. Sonhei com esta ideia durante três meses. Depois, vieram as greves de dezembro de 1995 na França. A confusão em que Paris se transformou não me incomodava em nada, ao contrário. Eu fiquei completamente eufórica, passeando pelas ruas, indo de manifestação em manifestação, numa atmosfera excitante, inimaginável. Logo depois das greves, me veio a voz do personagem, e, quando tenho a voz, tenho tudo, a forma do livro, o estilo. A partir do momento em que encontrei o registro dessa voz, eu me lancei. A redação propriamente dita levou, de fato, seis semanas. Mas, antes, teve esse período de pelo menos três meses de maturação.

Folha – Você não tinha, então, um projeto, uma ideia clara sobre o que ia escrever?

Darrieussecq – Sabia que ia seguir uma transformação. Que haveria uma série de sintomas que eu deveria descrever. Eu não sabia exatamente quais, eles foram surgindo à medida em que fui escrevendo. E sabia que a história terminaria em uma floresta. Era tudo o que sabia. O resto foi aventura. Eu me colocava em uma situação e me perguntava: como ela vai sair dessa? o que eu faria em seu lugar? Esse, aliás, é, para mim, o prazer de escrever. Eu morro de tédio se souber com antecedência o que vai acontecer.

Folha – “Truismes” é a história de um personagem singular ou um perfil da mulher contemporânea?

Darrieussecq – Não, “Truismes” é a história de uma mulher específica. Não cabe a mim interpretá-la, transformá-la em símbolo do que quer que seja. Eu proponho uma história, cabe ao leitor atribuir a ela um sentido. Eu recebo uma quantidade estupenda de cartas. Os leitores vêem no livro coisas que me surpreendem.

Folha – Por exemplo…

Darrieussecq – Eu fiquei surpresa com a resposta em massa das mulheres. O número de mulheres que se dizem transformadas pela maneira como o corpo feminino é abordado no livro. E de maneira positiva. Eu tinha muito medo que houvesse um mal-entendido, que as mulheres reagissem de maneira negativa antes mesmo de ler o livro: uma história de mulher que se transforma em leitoa, isso é misoginia, coisa e tal. E não, as mulheres compreendem que não tem nada de misógino nessa história, ao contrário. “Truismes” é uma abordagem positiva, carnal, sensual do corpo feminino. E, o que para mim é formidável, as mulheres se reconhecem nela.

Folha – E o aspecto político…

Darrieussecq – O aspecto político são truísmos, evidências, a superfície do livro. Todo discurso antifascista é uma banalidade hoje em dia, não é este o aspecto que mais me interessa. Falou-se muito desse aspecto político nos jornais. “Truismes” seria o primeiro romance anti-Le Pen. Com certeza, tem disto também. Para mim, no entanto, foi mais a idéia de que, por meio desta voz pouco consciente dela mesma, passam truísmos, falsas verdades, destas verdades que as pessoas têm e sobre as quais elas não pensam.

Folha – Como está a adaptação de “Truismes” para o cinema? A idéia foi de Godard?

Darrieussecq – Godard comprou os direitos de adaptação para o cinema em setembro, ou seja, logo após a publicação, antes mesmo que o livro fizesse sucesso. Godard não quer falar sobre a adaptação por razões de produção que eu mesma desconheço. Mas faz um certo tempo que nós nos encontramos para pensar juntos. Por enquanto, ainda é um projeto. Os contratos já foram assinados, mas eu não sei quando o filme vai ser feito, nem como… No começo, Godard esperava terminá-lo no final do ano, mas me parece difícil, pois já estamos em fevereiro…

Folha – Você vai escrever o filme junto com ele?

Darrieussecq – Sim, é o que está previsto. Nos nossos encontros, conversamos muito, o que é extremamente agradável. É genial conhecer um cara como o Godard.

Folha – Você gosta do cinema que ele faz?

Darrieussecq – Com certeza, eu não poderia esperar coisa melhor. Pelo menos eu sei que com ele o filme vai ser no mínimo inteligente. O perigo de uma adaptação de “Truismes” para o cinema é a vulgaridade. Com ele, tenho certeza, isso será evitado.

Folha – “Truismes” é um livro que conversa com outros livros, a gente sente a leitora por trás da escritora. Como é que se dá este processo no ato da escrita?

Darrieussecq – Evidentemente, eu adoro ler, leio muito. Mas, para escrever, é preciso alcançar uma espécie de vazio em relação à literatura já existente. É preciso encontrar essa voz, que é necessariamente única, ou, senão, ela é morta, simples cópia. É preciso varrer, limpar o terreno, sobretudo não pensar em nenhum outro livro. As pessoas me falaram muito de Kafka, por causa da metamorfose do personagem, mas eu não pensei nem um segundo em Kafka. E felizmente, pois isso teria bloqueado todo o processo. Mas às vezes a coisa não é tão simples, eu posso estar particularmente impregnada pela voz de um outro escritor. Isso aconteceu comigo em relação a Marguerite Duras. Duras é uma voz que chama o pastiche de maneira irresistível. Ela, especificamente, interferiu na minha escrita, eu tive que me desvencilhar. Escrever é, para mim, um trabalho solitário, uma experiência que me atravessa. Com certeza, existem influências, mas elas não são conscientes. Eu não saberia dizer de que modo minha produção se inscreve na história da literatura.

Folha – Sua formação teórica não dificulta esse processo?

Darrieussecq – Na minha cabeça, meus estudos e a minha prática literária são duas coisas separadas. Meus estudos literários começaram quando eu tinha 20 anos. Aos 20 anos, comecei a me colocar problemas de ordem teórica em relação à literatura, não antes. Nunca houve entre essas duas atividades uma passarela. Meus estudos nunca me bloquearam, mas também nunca me inspiram, em um sentido como em outro.

Folha – Ao ler os artigos que você escreveu para a revista “Poétique” e para o “Le Monde”, a gente espera de alguém que faz uma defesa entusiasta de um gênero literário como a autoficção que seja tentado a praticá-lo. Você prepara uma tese sobre esse assunto?

Darrieussecq – Sim, sobre a autobiografia contemporânea e sobre a noção de autoficção que a ela está associada. “Truismes” não tem nada a ver com a autoficção, não entra nessa categoria. “Truismes” não é uma autoficção por diferentes razões: ausência de identidade entre a autora e a narradora-personagem, ou seja, a autora, Marie Darrieussecq, não apresenta o texto como sendo a história da sua vida; conto fantástico, que rompe com a obrigação de verossimilhança. À parte esses critérios estritamente genéricos, um aspecto ainda mais visceral distingue “Truismes” da autoficção contemporânea: a ausência de toda e qualquer atividade reflexiva na maneira como o personagem conta a sua história. Ao contrário do que acontece nos textos autobiográficos, sejam eles autoficção ou não, que encontram a sua justificativa nessa busca de um sentido, nesse exercício de auto-interpretação de uma consciência tentando se apreender, em “Truismes” a heroína é levada pelos acontecimentos, sem conseguir estabelecer nenhuma distância entre ela e o que lhe acontece. Sim, essa é a base, o fundamento do livro. Ela não tem consciência do que lhe acontece, pelo menos no começo. É essa opacidade que dá particularidade a essa voz. Ou seja, ela conta os fatos sem interpretá-los, como ela os vive. Mas o leitor compreende, o leitor é meu cúmplice por trás da consciência da personagem. A ideia era essa: encontrar uma voz cega, que pudesse se dirigir ao leitor e que fosse ao mesmo tempo a voz de uma mulher.

Folha – Essa voz traz, aliás, ecos de “Justine”, do Marquês de Sade…

Darrieussecq – Sim, sim. Eu não li Sade, mas as pessoas me falaram desta coincidência. De fato, “Justine” parece funcionar da mesma forma.

Folha – Como você vive o fato de se falar mais do fenômeno que do livro mesmo?

Darrieussecq – No começo, falou-se muito do livro, depois, quando o evento se ampliou, começou-se a falar do fenômeno. É um movimento natural, que não me incomoda. Quanto ao fenômeno, devo dizer que estou muito contente. É surpreendente, para um primeiro romance, ter tantos leitores, eu nunca poderia ter previsto, nem meu editor, aliás. Antes do Natal, foi supercansativo, a única coisa que eu fazia era responder a entrevistas. O sucesso é um presente a mais, que eu não esperava, mas não é fundamental. De qualquer maneira, com sucesso ou sem, quero escrever a vida inteira.

Folha – Com relação a seus projetos, o fato de ter tido tanto sucesso é estimulante ou inibidor?

Darrieussecq – As duas coisas. Eu não sei como fazem os outros, mas, quando escrevo, não penso no mundo exterior. Eu entro na história que estou contando. Começo a pensar depois, quando releio. Sei que corro o risco de ser criticada no próximo romance, essa é a lógica da crítica. Mas não tenho medo.

Folha – Você teve uma experiência com o mundo político quando entrevistou o primeiro-ministro francês, Alain Juppé, para a revista “Elle”…

Darrieussecq – Isso foi um erro. Eu cometi o erro de acreditar que era possível entrevistar Alain Juppé para a “Elle”. A entrevista foi cortada, edulcorada, transformada em uma apologia de Juppé, o que para mim foi um horror absoluto. Ela deveria ser publicada em 15 de janeiro, a publicação foi antecipada para 22 de dezembro. Eu estava na Argentina e não pude nem sequer verificar o texto. Eu não sabia que Juppé estava lançando um livro, eles me enganaram, me manipularam. Eu fui muito ingênua em acreditar que poderia fazer uma entrevista honesta. Ao lado disto, participo neste momento, junto com uma centena de escritores, de uma campanha contra a lei Debré. Esta é a minha verdadeira posição.

Folha – “Truismes” vai ser publicado em português. Que acha da ideia de ser lida no Brasil?

Darrieussecq – Ela me encanta. Sem dúvida, “Truismes” é um livro europeu, é o primeiro livro em “euro”, como foi dito… Eu não faço a menor ideia de como o livro será lido no Brasil. Eu escrevo em um lugar e em uma época dados, isso é inevitável. Mas têm neste livro alguns aspectos, a questão do corpo feminino, por exemplo, que, acredito, podem tocar muita gente, independentemente do seu caráter europeu.

9 comments / Add your comment below

  1. Putzgrilo, não é que acordei hoje de manhã matutando um pensamento similar ao livro, sobre a coisificação das pessoas e relacionamentos, hoje em dia, anteontem um amigo e eu conversávamos e observávamos as pessoas que passavam, quando passa uma garota muito bonita, ele me pergunta “de quanto seria o investimento”, ao que eu replico à ele, mas bah che, esse tipo de pergunta é o suprasumo da coisificação das pessoas, já deixou de ser objeto de interêsse, passou a ser um interêsse econõmico.
    Prá onde estamos nos encaminhando? Seres parasitários?
    abs
    Marcelo

  2. “Oscilando entre sua aparência suína e humana, a heroína passa por guerras, epidemias, vai parar em um asilo de loucos e dali escapa para se meter num imbroglio de políticos fascistas.”
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    Conheço uma velha porca que mora lá, às margens do Tietê, em São Paulo… VEJA, que coincidência!… Dizem as boas línguas de Brasília que um belo espeto está a ser preparado a quente para ser introduzido no itaúúú da animália… É, tudo indica que haverá grunhidos e ranger de dentes…

    1. Ah, esse XXI é maravilhoso pela tecnologia entre nossos dedos… Por exemplo, caro leitor, por favor, vá ao Google Earth e digite rio Tietê e/ou rio Pinheiros… Suuuurrrpreeesaaa!!… Às margens dos ditos sujos, a chafurdar na lama, com quem nos deparamos? Ora, com a Abril… e com a Globo, respectivamente… É uma beleeezaaa

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