Onde começa e termina a ideologia (um divertido esboço, ao menos para mim)

Para descobrirmos a ideologia de uma pessoa, basta saber como ela trata seu dinheiro.

IVAN OSÓRIO (1)

Para identificarmos um mau caráter, basta observar como ele trata as crianças. Se ele as despreza ou humilha, não é incontestável, mas o cara tem boas possibilidades de ser um deles.

N. F. (1)

Caso 1. Meu primo J.R. é engenheiro e não sei se é de esquerda, centro ou direita. Ele gosta de dormir, mas tem que chegar ao trabalho às 8h da manhã. Então, calculou a forma mais otimizada de fazê-lo. Sabe como deve fazer para dar o menor número de passos dentro de sua casa e o algoritmo ideal para não precisar entrar duas vezes no banheiro. Sabe igualmente as melhores ruas para trafegar e que, acordando às 7h10, pode ficar 3 minutos rolando na cama. Nem mais, nem menos. É organizado, confiável, correto, bem humorado. Parece viver feliz. Ele é inteiro. (2)

Caso 2. Meu amigo A. é matemático e comuna. Ele gosta do trabalho de sua empregada, a Nenê, que vai a sua casa há trinta anos, três vezes por semana. Eu soube que um dia A. chegou em casa fora do horário habitual e Nenê estava lá, sentada, olhando pela janela. Não era dia de faxina e ele perguntou o que ela estava fazendo. Ela respondeu constrangida que estava com problemas em casa e achou que podia passar alguns momentos de tranquilidade no apartamento dele. Ele arranjou uma desculpa, pegou qualquer coisa sobre a mesa e disse-lhe que ficasse à vontade. A propósito, ele é inteiro. (2)

Caso 3. Meu amigo T. é ecologista e pensa ser um liberal de esquerda. Gosta de criar belas metáforas e analogias para ornamentar seus discursos, mas nem todos as entendem. Sabe como criá-las utilizando suas idéias. São bonitas. Quando estava por se separar, pensou se não seria ecológico para sua alma tentar fazer renascer o amor entre ele e sua mulher. Deu certo. É adorado por ela. Hoje estão juntos. Sob outros acordos. Ele é inteiro. (2)

Caso 4. Minha amiga P. é violinista, budista e de direita. Ela gosta de Bach e tatuou aqueles dois esses que furam o tampo frontal dos violinos e violoncelos, ladeando as cordas. Ela os têm ladeando sua espinha dorsal, pouco abaixo da nuca, como se ela toda fosse um violino. Ficou sexy, sabe? Que som terá? Como budista, ela tenta aprimorar-se e evoluir em tudo. Em dez anos, tornou-se excelente musicista e a mulher mais agradável, interessada e gentil que conheço. É impressionante como nos sentimos bem com ela por perto. Ela é inteira. (2)

marx

Caso 5. Minha amiga X. é a socióloga e intelectual de esquerda mais culta que conheço. Gosta de pontificar brilhantemente durante horas, mas não tem tempo para tornar-se militante de nada, só do instituto de beleza. Sabe como poucos amassar adversários em discussões. Era casada com meu amigo I. que é de centro. Quando se separaram, ele entrou em depressão, parou de trabalhar e perdeu muito dinheiro. Orientada pelo pai, ela fez com que ele assinasse a passagem de todos os bens para ela, além de ter negociado um acordo que, a rigor, o arruinaria. Ela é… Os cacos do espelho espalharam-se pelo mundo. (3)

Caso 6. Minha amiga A. é blogueira, provavelmente historiadora, de esquerda e relaciona-se com o mundo através da ironia. Gosta de ridicularizar aquilo que acha vulgar. Escreve posts semelhantes às notícias de Caras ao lado de outros com interessantes análises políticas. Sabe ser engraçada e parece inteligente, mas L. sempre desconfiou de quem zomba e conhece tanto sobre a vulgaridade alheia. L. fez um comentário no estilo de A., tendo como mote um erro cometido por ela. Ela teve um chilique ao ver-se alvejada. Deletou o post inteiro. Ofendeu-se e ofendeu. Ela é… Os cacos do espelho espalharam-se pelo mundo. (3)

Caso 7. X. é petista e quer ajudar todo mundo. Mas ocorreram problemas em seu terceiro ou quarto casamento e ela não apenas trocou as chaves de casa, deixando seu ex-marido na rua, como mentiu a amigos sobre ele. Ele usava o dinheiro dela, queria roubar sua casa numa partilha, detestou-a pelo fato de ela não poder ter filhos, era desinteressado sexualmente, etc. Ela também repete o padrão de odiar a ex-mulher do atual marido e de tentar cooptar os filhos no ex-casal para sua área de influência. Ela é… Os cacos do espelho espalharam-se pelo mundo. (3)

Pergunto: Onde começa a ideologia? Ela vem do íntimo e sobe para a vida social ou é o contrário? Por que nem sempre ela invade o comportamento? Como alguém pode isolar as ideias que professa de sua práxis íntima? E o contrário faz alguém feliz?

(1) Afirmações reais de amigos reais, falsa e idealmente ouvidas à noite, em torno de uma mesa, com boa bebida, comida idem.

(2) Pessoa inteira: do jargão psi. Trata-se de uma pessoa centrada, mas não auto-centrada ou em faixa própria. Alguém que possui uma trajetória com um conceito, com uma essência que o apóia. Pessoa de ética inabalável, não casuísta. Simplificando, o “inteiro” é o mesmo em qualquer circunstância, não diz uma coisa e faz outra, nem tem duas caras.

(3) Em A Rainha da Neve (1845), de Hans Christian Andersen (1805-1875), o diabo fabrica um espelho que exagera os menores defeitos dos objetos refletidos. Ao elevá-lo ao céu, com o objetivo de lá refletir os anjos, o espelho escapa das mãos do demônio, partindo-se em milhões de pedaços. Estes penetram nos olhos e nos corações dos homens, que passam a ver apenas o mal e a fealdade a seu redor. Neste conto, há a frase Os cacos do espelho espalharam-se pelo mundo.

14 comments / Add your comment below

  1. Milton, como tudo que escreves este post esta muito bom. Soberbo. Dá para pensar. Estou aqui meditando sobre os INTEIROS, e sobre as IDEOLOGIAS sem atestado. Estou no item : post abaixo, com minha favorita na cabeça.Vamos ganhar com Ava Gardner, sem dúvida!

    Eduardo Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Milton, agora não lembro quem foi o boêmio que tbem deu uma dica interessante: “para observar o caráter de um homem, observe como ele trata o garçom.” deve ter sido alguém do Pasquim. faz sentido.

    Serbão Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Milton, aquela parte que fala sobre “Inteiros” me deixou intrigado. Será que passaríamos no teste? E é verdade: os cacos do espelho espalharam-se pelo mundo. O diabo é poderoso sim. Abraço grande

    valter ferraz Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Totalmente off topic: estive em Budapeste e me lembrei de você. (Nao, nao se preocupe, nao vou mandar canecas nem camisetas de presente com esses dizeres)…A estória é que fomos passear por lá, e como nao falamos uma única palavra em húngaro, donos de um mapa miseravelmente mal impresso, nos perdemos. Até que encontramos a Rua Béla Bartok, e nos localizamos. Pensei em você na mesma hora. Bem, talvez vc nao se lembre de mim, sou a Dona do Blog – o abandonado,- fica aí um abraco, e o pedido de continuacao do “Monólogo Amoroso” que eu acompanho com prazer (será que perdi alguma parte?). por fim , desconsidere a falta de acentuacao.. PS.: Será possível dar mais pistas de quem é A., a blogueira? (será que perdi alguma parteII)

    Felicia Luisa Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Tô meio sem paciência. Trabalhando ganhando pouco, passando muito problemas… ninguém vira bichinho de pelúcia. Pronto, desabafei. Pra mim o moral da história de seu belo texto é: (em versão “mano paulista”): – Cada um é cada um. o_0 T§

    que as vozes na mente do … Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    O fato bruto, que alguns levam muitos anos para aprender e outros sacam quase que instantaneamente, é que a canalhice não tem ideologia. Excelente post.

    hermenauta Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Milton, há muito aprendi a separar o fato de alguém expressar o que penso de haver identificação entre nós; pela dissociação entre o que se pensa, o que se diz e o que se faz. Não é por acaso que tenho como primeira citação (permanente) do Agreste, a frase, extraída de um poema de Agostinho Neto: “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós”.

    Manoel Carlos Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Caro Milton, você pode ajudar-me a espalhar os cacos do meu espelho pelo mundo? Sou um pretenso-neo-escritor de meia idade que está querendo editar uma Trilogia da Libertinagem para relatar 40 anos de vida gay. Está difícil: criei um blog para mostrar os cacos do meu espelho a mais de 30 editoras brasileiras e portuguesas. O resultado é uma via-crucis de decepções. Você, que é um escritor editado, poderia dar-me algumas dicas para chamar a atenção das editoras? Como posso espalhar meus cacos Vida a fora na forma de livro? Fragmentado em zilhões de imagens trituradas, agradeço sua atenção. http://www.zoonig.blogger.com.br

    zoonig Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Milton, Muito bom Um abraço, Marcos

    Marcos Matamoros Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Eduardo, é um post nascido de elementos aparentemente díspares. A questão da verdadeira ideologia, a observação das discrepâncias entre discurso e atos sempre preocupou. Já vi coisas incríveis. Serbon, pois é. O tratamento de “subalternos” é sempre muito revelador. Fizeste-me pensar (sei lá por quê) que deveria ter escrito uma historinha sobre trabalho voluntário. Valter, o diabo é maioria. Fácil. Felícia! Achei que teu blog tinha acabado e talvez tenha te tirado dos links… Bem, teu blog está abandonado mesmo! Como a acusação não é tão desqualificante, poderia te dizer quem é a A. por e-mail. O Monólogo teve continuidade, mas ainda não terminou. Em meu micro, está na página 66. Quando puder, te mando os links. E fico super-orgulhoso de ser lembrado através do genial Béla Bartók.É dos compositores – e dos seres humanos – que mais admiro. E amo, sou devoto (…), essas coisas. Társis, como sei a qual problema te referes e temos muitos pontos de contato, te compreendo. Cara, vou te contar o que farei amanhã no começo da tarde – talvez fiques perplexo: terei que abrir um espaço para ensinar matemática para minha filha. Estou alguns passos adiante, porém a Babi tem 12 anos (sete anos a mais que a Sophia?). O pior… é que a situação não é muito melhor. Ter que deixar de trabalhar para me encontrar rapidamente após o almoço num clube a fim de explicar-lhe o pi… Sim, o 3,14! É aventuresco, é poético, mas, muito antes de qualquer romantismo, é muito foda, meu amigo. Hermê e Manoel Carlos. Certamente vocês não podem avaliar o quanto seus comentários valem para mim. Vocês são seres políticos, eu não. Vivo com a cabeça nas nuvens, descendo muito raramente para dizer bobagens. Porém, talvez esteja melhorando na expressão de minhas dúvidas e indignações. Acho ontologicamente repugnantes algumas pessoas. Repugnante é a palavra exata. Hermê, canalhice é outra palavra exata. Manoel, bela lembrança a da citação que já tinha lido tantas vezes em teu blog. Zoonig, você não deve ter lido o post com muita atenção. Os cacos a que me refiro refletem o mal e a fealdade. Não creio que queiras fazer analogias entre a tua sexualidade e meus cacos, certo? Marcos, por que vou tão pouco a teu blog? Fui agora e o post sobre Bento XVI é ma-ra-vi-lho-so. Vocês devem ler. Provocação inteligente é com a Torre de Marfim.

    Milton Ribeiro Onde começa e termina a i… Apr 12 2007

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    Moral da história: todas pessoas têm contradições. Umas suportáveis, outras não.E elas não atingem apenas as ideologias, penso. Depende de cada um de nós suportá-las ou não. Para uns pode ser insuportável uma mulher que trabalha, tem um bom salário, arruinar o ex-marido no acordo de divórcio , para outros pode ser insuportável a vulgaridade de alguém que se diz “fino”, para outros ainda a mentira, a falsidade, de quem jura dizer apenas a verdade, para outros o egoísmo de alguém que diz preocupar-se com os outros. Umas pessoas se contradizem mais outras menos.Escolhemos as pessoas cujas contradições são por nós toleráveis, cada um de nós fará escolhas diferentes, ainda que haja muitas em comum. ( era essa a moral da sua história? ) : ) Beijos a vc e Cláudia, Silvia PS: aquela expressão do jargão psi eu não conhecia … : )

    Silvia Chueire Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Gostei da definição de pessoa inteira. Temos cacos demais espalhados pelo mundo… Beijo, querido.

    Tchela Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Milton, que lindo texto. Sim há pessoas inteiras à direita e à esquerda, e canalhas partidos por todos os lados. A pessoa mais inteira que conheço no mundo é meu avô. Que sai todas as manhãs a pé para comprar pãezinhos na padaria, conversa com todos, a porta semrpe aberta e um chá sempre servido a quem vier procurar ajuda, conselhos e boa conversa; que viu o século vinte fazer-se e desfazer-se e permaneceu inteiro e apaixonado pelo mundo, pelas artes, pela literatura, sempre (achei que vc ia gostar de ouvir tudo isso…). E no judaísmo místico há uma história da criação do mundo que é bonita, memso para quem é ateu de pai e mãe como eu. 🙂 Diz que o mundo estava num vaso de barro, todo ali dentro, e que a luz de deus era instável e tão forte que o vaso acabou partindo-se. E esse vaso quebrado deu origem ao nosso universo e mundo. E cabe aos homens restaurar os cacos partidos, procurar juntá-los, reconstruir o tal do pote ( Tikkun Olam) para fazer com que o universo seja mais uma vez inteiro. A ver. beijo, Lu.

    lulu Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Pessoal, fiquei arrepiado com o comentário da Lulu. Quem é o avô dela? É Boris Schnaiderman, 90 anos (?), escritor, tradutor, ensaísta e crítico literário. Devemos – TODOS – a ele, o melhor da literatura russa em traduções feitas diretamente do original. Também foi quem criou e organizou o departamento de língua e literatura russa da USP. Aprendi a amar o maior dos escritores – Anton Tchékhov, na minha opinião – em livros traduzidos por Boris. Que texto! E como Boris muda quando traduz Dostoiévski. Que texto diferente! E que texto! Mas não só Bóris vingou na família. Para comprovar, vão ao blog da Lulu ( http://lulu-diariodalulu.blogspot.com/ ) e cliquem em “Lulu na escola”. Leiam a série sobre os direitos do aluno leitor e não leitor. É melhor, mais curto e mais adpatado ao Brasil do que “Como um Romance” de Daniel Pennac. E ela parece ter feito assim no mais, a partir de uma idéia do Biajoni. Esta caixa de comentários está extraordinária.

    Milton Ribeiro Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Sílvia: tomei um susto. Minha terapeuta falava, meus amigos da área falam. Será que um jargão psi gaúcho? Tchelita! Que saudades. Eu sumi, né? É o problema dos blogs que fazem paradas temporárias. A gente deixa de visitar e babaus. Vou reativar as visitas. Beijo, Sílvia; para a Tchela um abraço bem dado, porque sei que adora abraços.

    Milton Ribeiro Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Nossa, gostei demais do comentário da Sílvia! Tinha até escrito algo mas, tá tudo lá e muito mais, no q a Sílvia disse. Ah, num tinha uma coisa assim: “São bons homens aqueles que se dão bem com as crianças e os cachorros.” Realmente ótimo ler tudo isso e a partir de seu hiper-provocador, afiadíssimo texto de bom observador. Abç.

    Sibila Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Sílvia e Sibila. Eu acho que a moral da história era esta mesmo. A semente da idéia deste post foi o Questionário Proust, pergunta “Qual é a pessoa viva que mais despreza?”. Se eu respondesse sem filtros, daria o nome de uma pessoa muito próxima a mim, alguém “cujas contradições me são intoleráveis”, parafraseando a Sílvia. É um provocativo “hate post”, claro. Esta pessoa tem um discurso totalmente divorciado da práxis e é um sucesso social e financeiro. Mas esta já é outra via. Besos.

    Milton Ribeiro Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Sabe aqueles posts que, de tão extraordinários, o leitor fica meio sem palavras ante eles? Pois é….

    Idelber Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Milton, quando menos se espera, voce vem com um post desses… inteiros. Que refletem e fazem refletir. Os elogios recebidos não são vazios e me uno a eles. Acho que a chave da tua reflexão é a distância entre o que é nossa essência e o que são frutos de nossas escolhas mais ou menos conscientes. Nas situações limite, inevitavelmente afloram todas as belas criaturas que guardamos dentro. E ideologia não tem mesmo nada a ver com isso. Eu colocaria um interrogativo a partir dessa premissa: o que leva alguém a abraçar essa ou aquela ideologia, visto que pessoas caracterialmente tão diferentes podem estar no mesmo lado político? Eu de minha parte, tenho que a conselho médico deixar de ser inteiro. Meu nível de colesterol bateu no teto e agora vou ter que me tranformar em parcialmente desnatado. Beijos.

    Flavio Prada Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Milton, sensacional! Os cacos são, na verdade, fragmentos dessa sociedade doente em que vivemos. Personagens dignos de um romance. Quanto ao post anterior. Fico com a Ava, a que deixou Sinatra de quatro. gd ab

    Julio Cesar Corrêa Onde começa e termina a i… Apr 13 2007

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    Eu diria que apesar de certas escolhas, ideológicas ou não, terem vertentes compartilhadas por um grande grupo de pessoas,ou seja, razões que a antropologia, a sociologia, tentam compreender (a escolha de determinada profissão, por exemplo, numa certa época pode ser, do ponto de vista do status, prestigiosa, e anos depois já não o será), haverá sempre algo de absolutamente pessoal em cada escolha que fazemos. Conhecer estas razões pessoais para além do óbvio é possível, porém não simples. Gostei desta sua pergunta, Flávio. Quanto a ser inteiro, acho que não existem pessoas “inteiras”. Gosto que tenhamos certo espaço para a nossa humanidade ( com limites, claro!). Isto é, nenhum de nós deixa de falhar em algum momento. É preciso saber disto, ter compreensão e tolerância. A questão é em que medida determinada contradição (caco?), ou erro é tolerável, afetiva e socialmente – tolerar mas não transigir. Aqui também o que determina a nossa tolerância, em parte é de âmbito pessoal.E em parte regido por leis, por uma ética comum, pelo senso comum, e por aí afora. Valem os exemplos que eu dei no comentário anterior. Em algumas situações, para decidir, precisaremos mais dados. Em outras, nenhuma justificativa nos faria permitir a ruptura de princípios básicos de convivência. Abraços, Silvia

    Silvia Chueire Onde começa e termina a i… Apr 14 2007

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    Santo Agostinho foi o último filósofo a usar a filosofia de forma integrada à própria vida. Logo depois vieram os escolásticos ávidos por provar tudo com argumentos lógicos e tudo se degringolou. A lógica foi um instrumento que bizarramente se transformou em música. Não deveria. Hoje é a coisa mais comum filósofos e cientistas que inventam fatos para provar suas idéias (ou sua lógica própria). A filosofia deixou de ser um retrato da realidade para se tornar serva dos delírios. A ideologia começa quando um bebê chorão qualquer não gosta do que vê no mundo e inventa sua própria utopia. A ideologia é apenas o método satânico de criar paraísos. Ela invadirá o comportamento quando (e se) as regras internas da ideologia se encaixar com a humildade do sujeito, visto que a coerência é também uma questão de submissão. A um capitalista selvagem é mais fácil ser coerente do que a um esquerdista dogmático. Mas o problema aí nem é a direita e a esquerda e sim a selvageria e o dogmatismo. Cem por cento coerente é a pessoa que não tem nenhum código a seguir. Logo, ser incoerente não chega a ser algo grave, uma falha de caráter, significa sim, que você se submete a regras que são superiores a você e a suas circunstâncias. O importante é ser incoerente também com as próprias incoerências, sendo coerente o quanto possível. Um grande abraço.

    César Miranda Onde começa e termina a i… Apr 17 2007

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    Ótimo post, incrivelmente bem escrito, com a dose certa de sarcasmo e imparcialidade. Perfect. Te adoro

    Gabi Onde começa e termina a i… Apr 17 2007

  2. Oi Milton,

    Que jóia hein?

    É muito, muito interessante esse tema da incoerência entre o discurso e prática, opiniões e comportamentos. Incrível como as visões de mundo idealizadas por um sujeito nem sempre conseguem ser legitimadas por seu caráter, ou mesmo por sua maturidade emocional.

    Cara, isso dá um romance… Os personagens vc já tem 🙂

  3. Pequenas observações:

    1) todo budista é de direita; são simpáticos até o momento em que passamos a zombar deles com sua suposta busca pelo Nirvana, aqui traduzida em conforto através do dinheiro e boas relações com o poder, além do refinamento intelectual e quietude hipócrita;

    2) todo esquerdista, ao menos no Brasil, carrega em si um germe assimilacionista, capaz de adaptar-se a qualquer circunstância. Exemplos: depois de preso por Getúlio Vargas, Graciliano Ramos não refutou o emprego público, ofício também de seu colega Carlos Drummond de Andrade, este responsável pelos discursos de direita de seu Ministro da Cultura; Prestes, por pragmatismo, ´fez campanha getulista pós-Estado Novo, irrelevantes que foram sua perseguição, prisão e entrega de sua mylher grávida à Alemanha, destinando-a à morte;

    3) o mundo é composto de ínfimas partículas, a unidade e/ou inteireza é ilusão de ótica, exterior ou interior;

    4) me identifico com todos personagens, como mau projeto de Mário de Andrade.

  4. achei seu blog procurando infos sobre o filme “fatal” no google. e gostei muito do texto que você escreveu comparando o livro ao filme que deu origem a ele, apesar de não concordar com parte de sua análise.

    resolvi continuar lendo o blog. e só tenho uma coisa a dizer: ele é muito bom.

    abraço,
    Luiz Felipe

  5. As vinhetas que descrevem “personagens da vida real” estão ótimas, como pílulas condensadas que podem fazer efeitos enormes. Inteiro ou partido, cada um é incompleto. Não é à toa que a palavra sintoma significa “juntar os cacos” (do grego, sin (união) + tomos (parte, pedaço). Somos mesmo sintomáticos, buscando pedaços ao longo da vida. Em cada um dos tipos acima você realçou determinada característica, uma “partizinha”, um tomo, um caco.
    Gostei muito e lembrei-me das teorias psicológicas desenvolvidas no século passado: cada autor definindo um tipo de personalidade ou catalogando os tipos. Sempre há a possibilidade do inclassificável, aquele que os manuais diagnósticos classificam assim: SOE = sem outra classificação, hehehe
    Fica a questão da ideologia: a gente tem ideologia ou é a ideologia que nos tem?

  6. O post foi muito bonito e não é à toa que tem tantos comentários. Acho que as pessoas inteiras certamente se sentirão honradas pela maneira como que foram descritas. Como não consegui ler tudo o que escreveram, só vou dizer uma colocar uma frase que li no blog da Rosana Hermann:

    Quando você se relaciona com uma pessoa conhece seu temperamento. Quando compete com ela, descobre seu caráter.

  7. Óia, é interessante isso. Se vc prestar atenção o tempo inteiro (e na minha profissão isso é, ou deveria ser, um pré-requisito), vc constata as incongruências nas pessoas mais “acima de qualquer suspeita”. Certa vez tive de fazer 22 sessões de fisioterapia, que, por razões personalíssimas, custavam R$ 9,00 cada. Alguém me sugeriu que utilizasse o SUS, através de contatos também personalíssimos, e não pagasse nada. Contestei: mas como, se eu posso pagar? Isso seria desonesto e com que moral eu poderia dizer que fulano é corrupto? Paguei do meu bolso e não tirei a vaga de um coitado qualquer que teria de esperar mais alguns meses. Não pretendo ser a “Palmatória do Mundo”; sou só chato mesmo e penso que honestidade e ética serve em qualquer situação. Desde que não envolva confessar adultério. 🙂

  8. Isso aqui está sem dúvida entre o que há de melhor que você já publicou aqui.
    Já lia o seu blog nos idos da sua publicação original, mas não conhecia a crônica.
    Vida longa, Milton.
    E mais disso aqui!

  9. Belo post, Milton. A questão do limite da ideologia para mim também sempre foi muito curiosa e admito que fazia tempo que não divagava sobre tal.

    Levando em conta que a ideologia só é aplicável quando realmente compreendida pela pessoa fica as vezes a pensar que existem pessoas que não às tem e acabam-se guiando apenas pelo caráter. Tendo em vista que entendo o caráter muito mais como um resultado da formação da pessoa do que como um sentimento aleatório, os que tem ideologia e um caráter bem formado estão bem armados para os eventos da vida. E aqueles que eventualmente não tem um e outro acabam guiados por quem os consegue convencer.

  10. Para descobrirmos a ética de um Juiz, basta saber como ele trata do dinheiro público.

    Gilmar Mendes, via a decisão 25.888 do Supremo, durante o governo FHC, tornou legal a contração de empresas, pela Petrobras, sem a necessidade do complexo processo de licitação, à época vigente.

    Ora… Ora… Ora… Nada melhor que um dia após outro… Finalmente, está a chegar a hora do Gilmar provar o gosto da Teoria do Domínio do Fato.

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