Ricardo Lísias: “Há dificuldade de aceitação, no Brasil, do aspecto ideológico da arte”

Publicado em 23 de agosto de 2014 no Sul21

Éder Silveira e Milton Ribeiro 

O escritor paulistano Ricardo Lísias (1975) vem construindo uma sólida carreira literária. Estreou em 1999 com um romance, Cobertor de Estrelas; figurou na lista da Granta como um dos mais promissores escritores brasileiros; foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010. O justo reconhecimento literário é contrabalançado pela dualidade amor e ódio, gerada pelas posições assumidas pelo autor.

Apesar da fala mansa, Ricardo gosta de comprar uma boa briga. Ganhou a cena em 2013 com a publicação de Divórcio, sem dúvida um dos livros brasileiros mais debatidos dos últimos tempos. Aqueles que achavam que encontrariam um relato que alimentaria taras voyeurísticas perderam a viagem. O livro faz duras críticas aos mecanismos da grande imprensa, com a sua indústria de fofocas, o uso indiscriminado do off, as tentativas de intimidar os descontentes e a criação de celebridades vazias.

No papo que segue, gravado em Porto Alegre quando de sua passagem pela PUCRS para ministrar um curso sobre escrita criativa, Ricardo fala de literatura, de política e da imprensa cultural. Sem papas na língua.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Isso é uma coisa engraçada. As pessoas me acusam de não representá-las em seus anseios políticos. Ora, eu não sei quem eles são! Por que estão decepcionados?” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21: O romance Divórcio foi um raro sucesso comercial brasileiro, não?

Lísias: Minha editora tem uma contagem online e há mais de 1000 textos de mais de um parágrafo falando sobre Divórcio. Mesmo a grande imprensa, que fez algumas besteiras, deu espaço ao livro. Eu sabia que teria repercussão, mas não imaginei que seria tanta. Há duas semanas, o livro foi citado num programa de TV, o Saia Justa. Os caras têm uma audiência espantosa. A atriz Maria Ribeiro, participante do programa, recomendou o livro. Três minutos depois de ela ter falado, eu já estava recebendo mensagens no celular. No sábado daquela semana, já não havia nenhum exemplar em São Paulo. Fui às livrarias e perguntei sobre Divórcio. A resposta era de que tinham falado dele na TV e que tinham vendido tudo. O alcance desses caras é espantoso.

Sul21: Isso nos faz pensar que se nossa TV tivesse bons programas sobre literatura, como há na Europa, a divulgação da literatura no Brasil seria muito diferente?

Lísias: Ah, certamente ajudaria nas vendas. Maria Ribeiro completou a obra escrevendo o mesmo no Twitter. Disse que não conseguiu largar o livro antes de terminar. E acabou. Simples assim. Essa frase fez esgotar o livro. O resultado é que vão fazer mais uma edição.

Sul21: Indo na direção de tua formação, Beatriz Resende afirmou em uma mesa redonda com o Alcir Pécora que pode sair um escritor de qualquer curso universitário, menos de uma Faculdade de Letras.

Lísias: Fiz graduação em Letras na Unicamp porque gostava de ler. Usei a Faculdade para ler os clássicos. Quando fui fazer mestrado, ainda achava que ia seguir a carreira acadêmica. Continuei estudando, mas no doutorado entrei numa espécie de crise de representatividade. Eu achei que não deveria ser professor de literatura, porque as minhas opções como ficcionista não batiam com qualquer currículo de Letras. Falando no que disse a Beatriz, acho que a origem do autor não interessa, temos que atentar para seu texto. Talvez a fala dela deva ser interpretada mais como uma crítica mais aos cursos de letras do que a seus alunos. Acho que no passado a coisa era mesmo muito ruim. Hoje em dia as Faculdades de Letras tratam a literatura contemporânea com maior leveza e interesse. Para mim, a Faculdade foi bastante importante.

Sul21: Tu te vês mais como escritor ou como professor?

Lísias: Eu dou aula numa Faculdade pequena. Dou aula de Língua Portuguesa, de gramática. Normalmente, só falo em literatura como convidado, na condição de ficcionista. Quem me ouve falar para efeitos de currículo, não me ouve falar em literatura. Quem me ouve falar sobre literatura está lá porque quer. Neste caso, estou inteiramente livre para falar sobre minhas opções literárias, sobre meu projeto literário. O professor e o escritor são dois fatos paralelos.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Não vou lá tomar chá na Academia, não, ainda mais na companhia do Sarney” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21: E que autores são de tua preferência?

Lísias: São os do alto modernismo, tanto o europeu quanto o brasileiro. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Proust, os bons.

Sul21: Eu acompanho tuas postagens no Facebook…

Lísias: Cuidado, muitas vezes eu estou bêbado.

Sul21: Ah, nós também. Ficamos no mesmo patamar. (risos) O que chama a atenção é que quando tu elogias obras, estas são sempre do modernismo. Tu citaste Os Últimos Dias da Humanidade do Kraus, Ulysses de Joyce. São raras as menções à literatura contemporânea, outro dia citaste o Vladímir Sorókin, um cara contemporâneo que flerta com a vanguarda. Quais os contemporâneos que estás lendo?

Lísias: Eu curto muito a literatura marginal. Em São Paulo este movimento é muito forte. Alguns autores são excelentes, discutindo questões prementes e atraentes. Também gosto da Elvira Vigna. Na literatura marginal há muita gente boa que não está ligada às grandes editoras. Eles fazem algo muito cru. O líder é o Ferrez, um bom escritor. Eles falam na violência urbana sem a mediação da classe média. Gosto de outros autores como o Cristóvão Tezza, por exemplo.

Sul21: Na semana passada, foi publicado que tu és um futuro candidato à Academia Brasileira de Letras, junto com outros autores ditos novos. O que achas? Que cadeira tu gostarias de ocupar lá?

Lísias: (risos) Não quero saber dum negócio desses, pô. Ninguém me perguntou nada. Eu chego no hotel ontem, aqui em Porto Alegre e vejo que sou candidato junto, por exemplo, com uma autora de que gosto, que é a Vanessa Bárbara. Tu achas que eu me preocupei? Não quero saber disso, eu quero viver. Não vou lá tomar chá, não, ainda mais na companhia do Sarney. Além disso, candidato no Brasil morre…

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“Se um autor chorar num evento no Brasil, a plateia chora junto e pode virar fenômeno. Se você fizer o mesmo na Argentina, a plateia vai se retirar dizendo que o cara é um chorão” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21: Em vários momentos da tua obra trabalhas com o narrador em primeira pessoa. Como trabalhas com os riscos de confundir o autor Ricardo Lísias com o personagem, às vezes também chamado Ricardo Lísias?

Lísias: O Ricardo Lísias é um personagem ficcional como qualquer outro. A primeira pessoa do singular ou o personagem Lísias não desficcionalizam o romance. O meu romance Divórcio foi tomado inicialmente pela boataria. Isso foi gerado por alguns contos anteriores que escrevi sobre o tema do divórcio. Pessoalmente, eu também vinha de um processo de divórcio traumático. Em São Paulo, houve a expectativa de que eu escreveria um livro sobre o meu divórcio, a fim de lavar roupa suja. A imprensa pensava isso. Mas o que veio foi um livro de ficção, não o que as pessoas esperavam. O grupo mais intelectualizado, a maioria, logo percebeu, mas outro grupo não aceitou que o livro não alimentasse a boataria. Então, incorreram em erros ginasiais de leitura. Um deles foi especialmente ridículo. Eu sou corredor, já corri inclusive a São Silvestre. E há um personagem que está se divorciando e que, para sobreviver, adota a corrida de rua. Muita gente achou que eu, por ser corredor, estava colocando minha experiência no personagem.  Não era bem isso. O treinamento de três meses que o personagem fez para correr a São Silvestre – e que está explicitado no texto — era um completo absurdo, uma coisa que devia revelar a completa ignorância dele sobre o assunto. Era um desvario completo. Mas muitos desses leitores pensaram que aquilo era uma espécie de método para correr a São Silvestre.  Um professor de Educação Física daria risada daquilo. Duas revistas de corrida, surpreendentemente, resenharam o livro. Elas não caíram no conto do treinamento. Os de literatura, sim. O treinamento dele é o de um cara transtornado. Este é um dos exemplos de erros causados pela falta de informação. Desficcionalizar pode gerar monstros. E o pior é que não adianta eu negar. Um grupo da imprensa segue afirmando que é autobiográfico. Eles querem que seja. Nada do que eu faça ou diga ou negue adianta.

Sul21: Aconteceu também com O Céu dos Suicidas, não?

Lísias: Tanto Divórcio quanto O Céu dos Suicidas têm pontos de partida em experiências pessoais e traumáticas. O problema é que isso não significa que o livro é de não-ficção. O Céu dos Suicidas parte do caso de um amigo muito próximo que cometeu suicídio. Porém, no meio do livro, o personagem Ricardo Lísias é sequestrado pelo Hamas. É claro que só pode ser invenção! Divórcio também é ficcional. Acho que esta desficcionalização tem o objetivo de despolitizar o livro, de aliviar as críticas que há no livro sobre o trabalho da imprensa. É um erro tornar tudo pessoal. Minha crítica não é generalizada, é a alguns setores da imprensa, é uma crítica específica. Por exemplo, ontem, li sobre o rapaz que ganhou esta medalha de matemática (Artur Ávila, ganhador da Medalha Fields). Fui tentar saber o que ele fazia, qual era seu trabalho na área. Pois entrevistaram o orientador de sua tese, mas nada do que ele fazia foi explicado. Era só pedir para um professor de matemática escrever 30 linhas explicativas… mas não foi feito isso.

Sul21: Já que exploras bastante o problema do “off”, o que dizer do caso Genoíno?

Lísias: Sim. Li ontem que “pessoas muito próximas ligadas a José Genoíno” afirmaram isso e aquilo. Bem, ele estava preso. Então, tais pessoas são ou o José Dirceu, ou outro companheiro de cela, a mulher, a filha ou os carcereiros. Bem, quem foi? Essa informação é importante. Se o Dirceu traiu o Genoíno para ajudar um grande jornal é fundamental informar. Ou será apenas uma construção do jornalista? Isso é um descalabro que acontece diariamente nos grandes jornais. São “fontes”, “pessoas”, etc. E, juridicamente, o jornalista não precisa dizer a origem, pode ocultar a fonte.  Ou seja, o cara pode destruir a vida de uma pessoa sem dizer a fonte. E fonte anônima tem todo dia no jornal. Divórcio fala nisso.

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“Na verdade, eu trabalho com traumas. Me interessa muito como o trauma é desconsiderado pela sociedade” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21: Tu tens algumas diferenças com a imprensa…

Sul21: A leitura que alguns grupos da imprensa fizeram do meu livro Divórcio confirmam a crítica que o livro faz a eles. O que eu não esperava era que as pessoas fossem cair como patos nas minhas esparrelas. Ingenuidade minha? Talvez… No romance O Céu dos Suicidas, Ricardo Lísias foi campeão Pan-americano de xadrez aos 13 anos. Eu nunca fui campeão de nada, sou um jogador canhestro. A leitura é tão primária que basta você digitar no Google o nome do adversário de Ricardo para notar que tudo aquilo é ficção, mas teve gente que disse que bastava me conhecer para ter certeza que eu fora um ex-campeão de xadrez. Meu adversário é um enxadrista que existe e é muito velho, muito mais do que eu. Depois, com o tempo, o livro cercou-se de um aparato crítico que afastou o besteirol.

Sul21: Tens algum caso pessoal de declarações tuas que foram alteradas?

Lísias: Sim, dei uma entrevista e apareceu uma palavra que eu não tinha dito. Era algo significativo. A entrevista fora por e-mail e apareceu uma palavra que eu não dissera. Falei com o entrevistador. Ele me respondeu que eu deveria entender, que o trabalho no jornal era precário, com horário de entrega, que às vezes dava confusão, etc. Eu insisti na reclamação, disse que muitos profissionais trabalhavam sob pressão e que eu não poderia aceitar como justificativa a precariedade do trabalho do jornalista. A resposta foi de que eu estava atacando a imprensa brasileira, que eu queria calar o trabalho do jornalista… Aí eu respondi que estava bem, OK. Subsiste, em São Paulo, a fama de que eu sou meio mau caráter, já escreveram que eu teria copiado um diário de outra pessoa, etc. Porém, em ficção, jamais retratei uma pessoa viva e nem fui processado. O que escrevo é contra um determinado grupo político que é elite paulistana. Não são pessoas isoladas. Escrevo às vezes contra aquela gente que vive em Paris estando em São Paulo.

Sul21: Tu estavas numa Feira Literária na Argentina e disseste que lá tudo era diferente.

Lísias: Sim, lá a relação com a literatura é totalmente diferente. Por exemplo, se um autor chorar num evento no Brasil, a plateia chora junto e pode virar fenômeno. Se você fizer o mesmo na Argentina, a plateia vai se retirar dizendo que o cara é um chorão. Lá, o pessoal quer discutir e argumentar. Aliás, meus livros são muito bem recebidos na Argentina. Mas é bom dizer que não tenho ressentimento nenhum da forma como são recebidos em lugar nenhum.

Sul21: Tu tens predileção por personagens obsessivos, não?

Lísias: Sim, acho que esta é uma questão contemporânea. Na verdade, eu trabalho com traumas. Me interessa muito como o trauma é desconsiderado pela sociedade. Por exemplo, eu conversei com um segurança do metrô de São Paulo, e perguntei sobre o que eles fariam se um cara sentasse num banco do metrô e chorasse a tarde inteira. A resposta foi a seguinte: se ele não incomodar ninguém e não quebrar nada, se não atacar o patrimônio, a gente não faz nada. Ou seja, ninguém vai lá perguntar se ele precisa de alguma coisa. O desarranjo psíquico está naturalizado.

Sul21: Tu tens um discurso político forte. Discutiste as manifestações de junho, a Copa, etc. Já tiveste leitores que admiravam tua literatura e que manifestaram decepção a respeito de tuas posições mais à esquerda.  Ou seja, as pessoas não desejam saber das posições políticas.

Lísias: Isso é uma coisa engraçada. As pessoas me acusam de não representá-las em seus anseios políticos. Ora, eu não sei quem eles são! Por que estão decepcionados? Isso é causado por dois motivos: as pessoas leem os livros e sentem-se próximas a mim, então se aproximam… E discordam. Também há aqueles que me escrevem coisas que só diriam para seu psicanalista. Acham que estão me repassando material para romances. Há dificuldade de aceitação, no Brasil, do aspecto ideológico da arte. A arte, aqui, ainda é recebida pelo ponto de vista do afeto, da emoção. Não é o que ocorre na Argentina, por exemplo, que tem uma relação mais madura com o fenômeno. Lá, a politização é imediata.

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“Se você for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declara eleitor do PSOL, você deixará de ser convidado. Então, grandes autores brasileiros são hoje chapa branca” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21: No passado, Graciliano e Jorge Amado foram do PCB, Erico, que foi um moderado, enfrentava a ditadura militar, os intelectuais tomavam posições e isto era normal. Hoje, o leitor pede que o autor seja inodoro, há uma certa, por assim dizer, esterilização do autor.

Lísias: Isso é de hoje! É um fenômeno atual. As artes, no Brasil, estão crescendo muito e se profissionalizando. Então, os autores passaram a viver de eventos, de suas participações em eventos. Não há mal nenhum nisso. Porém, quando você se posiciona, acaba por decepcionar 50% e fecha mercado para si mesmo. Se você for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declara eleitor do PSOL, você deixará de ser convidado. Então, grandes autores brasileiros são hoje chapa branca.  O mesmo vale para concursos literários. Há alguns sérios, outros não. Então é melhor ficar em silêncio. A cultura da boquinha não é geral, mas existe. Há uma preocupação em manter boas relações. Na época do Graciliano não havia eventos.

Sul21: Tu e a Vanessa Bárbara foram muito participativos durante as manifestações de junho.

Lísias: Sim, e acho que ela foi mais aguerrida do que eu. Fomos para a rua e escrevemos a respeito.

Sul21: O João Ubaldo dizia que não tinha muitos amigos escritores e que não gostava de falar em literatura. Perguntaram para ele “quando tu encontras um escritor, vocês falam sobre o quê?”. E ele respondeu, “de dinheiro!”. Tu curtes o papo literário?

Lísias: Não, tenho poucos amigos escritores, mas não tenho problemas de falar sobre literatura para um público atento. Gosto da troca de ideias em um evento especializado, apesar de meu círculo mais próximo ser extraliterário. Vou, em média, a um evento por mês. Não tenho preconceito, mas seleciono.

Sul21: E agora?

Lísias: O próximo livro é uma coletânea de contos e depois virá um romance sobre o mundo das artes plásticas. Elas estão envolvidas com uma quantidade de dinheiro que até Deus duvida.
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Publicações de Ricardo Lísias:

·         1999 – Cobertor de estrelas (Rocco)
·         2001 – Capuz (Hedra)
·         2004 – Dos nervos (Hedra)
·         2005 – Duas praças (Globo)
·         2007 – Anna O. e outras novelas (Globo)
·         2009 – O livro dos mandarins (Alfaguara)
·         2012 – O céu dos suicidas (Alfaguara)
·         2013 – Divórcio (Alfaguara)

1 comment / Add your comment below

  1. (Fora de contexto… Ou não!)

    EXTRA! EXTRA! EXTRA!

    A lista da Lava Jato acaba de definir uma nova geometria euclidiana: dado um ponto, a origem, o centro de corrupção, e uma dada distância política qualquer, não se pode construir concretamente uma circunferência corruptora de centro naquela origem e com raio igual à distância dada pela elite corrompida.

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