No dia 7 de fevereiro de 1857, Gustave Flaubert foi absolvido da acusação contra seu livro Madame Bovary, considerado imoral pelas autoridades francesas. Dias antes, Flaubert proferira a célebre resposta à pergunta sobre quem seria Madame Bovary: “Emma Bovary c’est moi” (Emma Bovary sou eu). Acusado de ofensa à moral e à religião, o processo foi movido contra o autor e o editor Laurent Pichat, diretor da revista Revue de Paris, onde a história foi publicada pela primeira vez, em episódios e com cortes. Como costuma acontecer, quanto maior o escândalo, maior o interesse provocado nos leitores, que adquirem a obra, que já era notável, movidos pelo sabor do escândalo.
A Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena absolveu Flaubert, mas certo puritanismo da época condenou o autor. Muitos críticos não perdoaram Flaubert pelo cru realismo dado ao tema do adultério, pela crítica ao clero e à burguesia. Muitos clássicos da literatura foram condenados pelos contemporâneos. Talvez os casos mais famosos sejam os de Ulysses de Joyce e de Lolita de Nabokov, por exemplo, que foram censurados por ofenderem a moral vigente. Seriam pornográficos.
O julgamento era um exagero, mas as acusações a Flaubert eram compreensíveis. Afinal, Madame Bovary escancarava certa realidade social do século XIX, demonstrando a insatisfação de uma mulher, sob diversos aspectos, com seu casamento. De quebra, ridicularizava os romances sentimentais. Emma odiava seu marido, o médico Charles, para o qual mal podia olhar. Via-se encarcerada. Sentia sua vida como vazia e sem graça. Como se não bastasse, tinha aspirações a um refinamento incompatível com o interior da França. Então, passa a manter casos amorosos com homens de “gostos mais refinados”, que tivessem o condão de alcançar suas expectativas.
Não contaremos o final da história, a qual é bastante simples. Mas o que interessa não é o final e sim todos os detalhes da trama. Flaubert era um perfeccionista que sugeria aos candidatos a escritores que observassem uma árvore até que ela não pudesse ser confundida com nenhuma outra para depois descrevê-la. Era o escritor da “palavra certa, precisa” (“le mot juste“) e levou cinco anos para terminar o livro, que não é muito extenso. Pensava que “Uma boa frase em prosa deve ser como um bom verso na poesia, imutável”. Madame Bovary é um livro extraordinário. “O romance perfeito”, segundo Henry James.
Madame Bovary foi praticamente a única obra do autor a alcançar o sucesso. Seu romance Salambô (1862) é entediante como a vida de Emma. A educação sentimental (1869) já é bem melhor. Somente quando já estava doente e com dificuldades financeiras é que outro livro, Três contos ou Três histórias (1877), voltou a mostrar a genialidade de Bovary. Sua reputação cresceu postumamente, reforçada pela publicação do romance inacabado Bouvard e Pécuchet (1881) e pelos notáveis volumes de sua correspondência, onde dá grandes lições de arte literária.
O romance, publicado em outubro de 1856, conta a história de Emma, uma mulher sonhadora pequeno-burguesa, criada no campo, que aprendeu a ver a vida através da literatura sentimental. Bonita e requintada para os padrões provincianos, casa-se com Charles, um médico viúvo do interior tão apaixonado pela esposa quanto chato. Ele não é como os heróis das suas leituras. Nem mesmo o nascimento da filha dá alegria ao indissolúvel casamento ao qual a protagonista se sente presa. Ela espera alguma ação do marido que consiga despertar nela o amor tão sonhado e esperado.
Emma, cada vez mais angustiada e frustrada, busca no adultério uma forma de encontrar a liberdade e a felicidade. Evita um caso com o charmoso Léon por medo e vergonha. Vangloria-se de seu altruísmo e honestidade. Mas com Rodolphe é diferente e a fantasia romântica floresce. Ela se torna amável, mas a situação revela-se efêmera. Envolve-se em mais um caso de final melancólico. Não há arrependimento ou reviravolta no livro, nada de redenção, de final feliz. O romance foi considerado cruel por não apresentar saída.
Além disso, Emma não atrai simpatia, só que a arte de Flaubert faz com que os leitores acompanhem sua trajetória com imensa atenção. Na verdade, ela é ambiciosa e medíocre, incapaz de amar ou de sentir empatia por alguém. Entedia-se facilmente e é impulsiva. O que a faz fascinante talvez seja o choque entre suas aspirações e absoluta incapacidade de ser feliz. É fácil compará-la com outra personagem fascinante e trágica, Anna Kariênina, de Tolstói, porém Emma é muito mais voltada para si, despreocupada com o sofrimento dos outros, vendo o mundo através dos estereótipos românticos nos quais vê a única felicidade possível.
Era um tempo em que as mulheres deveriam ser dependentes do desejo masculino. Porém, em Madame Bovary, Flaubert mostra que o desejo e o prazer sexual têm dois sentidos. Deste modo, o romance era agressivo à moral burguesa do século XIX. Mal o livro começou a ser publicado, o secretário da Revue de Paris fez objeções sobre algumas cenas, que acabaram omitidas. Apesar disso, a censura francesa decidiu suspender a publicação da obra e processar o autor.
O julgamento
Em 16 de janeiro de 1852, Gustave Flaubert escreveu, em uma carta a Louise Colet a respeito de Madame Bovary, o romance que estava redigindo: “O que me parece agradável, o que eu queria fazer, é um livro sobre nada, um livro sem vínculo externo, que se sustentasse por si mesmo, pela força interna de seu estilo, como a poeira se mantém no ar sem que seja sustentada, um livro que quase não tivesse argumento ou, ao menos, cujo argumento fosse quase invisível, se fosse possível. As mais belas obras são as que possuem menos matéria (…). Creio que o futuro da arte está nestes caminhos”.
São palavras estranhas. Ninguém jamais poderá ler Madame Bovary como um “livro sobre nada, um livro sem matéria”, na medida em que há nele um conjunto de preocupações éticas e políticas entre as quais se costuma destacar os efeitos da literatura sentimental nos corações e nas mentes febris das pobres garotas, ou das garotas pobres, provincianas. E também a preocupação sobre a sólida estupidez pequeno-burguesa.
Os argumentos da acusação, de que Madame Bovary seria uma obra ofensiva à moral, aos costumes e à religião, parecem dirigir-se à pessoa de Emma, não ao texto de Flaubert. O Ministério Público, representado pelo advogado Ernest Pinard, acusa a personagem como se ela fosse real. Em primeiro lugar, acusa-a de não ter tentado seriamente amar seu marido; cita o trecho do romance em que a mediocridade doméstica arrasta Emma a fantasias luxuriosas. O advogado diz que o matrimônio provoca desejos adúlteros em Emma e ela, em vez de se arrepender, tem “sede dos lábios” de Léon. Pinard também se escandaliza por Emma não perceber a frivolidade do amor de Rodolphe e do fato de ela se sentir triunfante, mais bela, mais desejável e poderosa depois de se entregar ao amante.
A segunda acusação referia-se à passagem em que Emma, seriamente doente depois da partida de Rodolphe, recebe a comunhão e começa a sair da prostração em que se encontrava, dirigindo-se a Deus com o mesmo ardor com que outrora se dirigia ao amante. O promotor reage: “Voluptuosa um dia, religiosa no dia seguinte, nenhuma mulher, mesmo em outras regiões, mesmo sob os céus da Espanha ou da Itália murmura a Deus as carícias adúlteras que ela endereçava a seu amante”.
A terceira acusação refere-se à recaída no adultério. Pinard refere-se à cena da sedução na carruagem, já suprimida da publicação na revista. Ele admite que a Révue de Paris excluiu aquela cena, ainda assim deixou o leitor penetrar no local onde os amantes se encontram… O promotor cita longamente as cenas dos encontros entre Emma e Léon no hotel em Rouen e termina com o trecho em que Flaubert descreve a surpresa do rapaz ante a experiência erótica da amante, que conhecia palavras e beijos que lhe incendiavam. Onde havia ela aprendido tais carícias?
Por fim, Pinard apresenta uma última prova da imoralidade de Madame Bovary, a primeira que parece não inculpar diretamente a personagem, mas o autor. É a cena da extrema-unção, em que o padre percorre com os santos óleos o corpo de Emma, enquanto o narrador recorda os pecados cometidos através dos olhos, da boca, do olfato, dos ouvidos, das mãos e dos pés. Para que fazer o leitor rememorar, em cores “lascivas”, toda uma vida de pecados? Pinard conclui a peça de acusação solicitando ao autor a colocação de limites à sua Emma Bovary diante da fraqueza dos personagens masculinos do romance. Afinal, ela domina e reina soberana até depois de sua morte.
O defensor de Flaubert era fraquíssimo. Ele argumentou que Emma era uma personagem ficcional. Disse que o livro condenava a educação das mulheres através de romances, poemas e relatos românticos. Mais: o defensor avaliou que a culpa era, na verdade, da “autoridade imprudente de um pai que decidiu mandar educar em um convento uma garota nascida na fazenda e que deveria casar-se com um fazendeiro ou um camponês”… Hoje, é claro, não seria possível defender ninguém com um argumento tão misógino… A defesa também afirmou que Flaubert era um moralista.
E, com estes argumentos pífios — de acusação e defesa –, Flaubert venceu. Talvez a melhor frase do processo seja mesmo “Madame Bovary sou eu”.
Fontes:
— Opera Mundi: Hoje na História: 1857 – Madame Bovary, de Gustave Flaubert, é publicado.
— Sopro: Julgamento do autor.
— GTPOS: O processo de Bovary.