Nesta quarta-feira (8), fomos assistir ao concerto da Salzburg Chamber Soloists no velho Theatro São Pedro. Conhecia o grupo apenas através de alguns excelentes CDs que possuo. Já seu fundador e diretor artístico, o violinista e regente Lavard Skou-Larsen, é meu conhecido de outros carnavais. Já vi Lavard regendo a Ospa — entrevistei-o na época — e tocando com grupos menores no próprio TSP. O programa era ótimo, bastante afastado daquele mais do mesmo habitual:
Ernest Chausson: Concerto para Violino, Piano e Cordas, Op. 21
Solo: Lavard Skou-Larsen – Violino
Phillippe Raskin – Piano
Wolfgang Amadeus Mozart: Divertimento em Ré Maior, KV 136
Maurice Ravel: Quarteto de cordas em fá maior
(arranjo para orquestra de cordas: Lavard Skou Larsen)
A orquestra é a coisa mais linda que eu já vi passar. Não por Lavard, mas pelos outros, ou outras, pessoas cheias de graça num doce balanço a caminho do mar. Como quase toda orquestra europeia, há uma maioria de mulheres. Elas são jovens, belas e, no conjunto de 16 membros, há 13 nacionalidades diferentes, vindas de 4 continentes. Há apenas um violinista com passaporte austríaco, só que ele nasceu na Colômbia. Suponho que tenha casado com uma nativa.
Antes de tocar o Chausson que abria o programa, Lavard contou a história da morte do compositor. É uma tragédia cômica ocorrida quando o compositor tinha 44 anos de idade. A gente lamenta, mas ri. Certo dia, depois da chuva, ele vinha de bicicleta descendo por Montmartre, um dos bairros mais charmosos de Paris, quando se desequilibrou, bateu de cabeça num muro e perdeu a consciência. Só que, casualmente, caiu com o nariz numa poça d`água de uns 10 centímetros. A consequência é que morreu afogado no meio da rua, bem longe do Sena.
Sua música é muito boa, de uma gravidade e dramatismo muito particulares. Se Proust fosse compositor, talvez soasse como Chausson: lírico, apaixonado, mas sem grandes gestos. Chausson escreveu bem e pouco, pois, antes de bater a cabeça, passava a maior parte de seu tempo nos salões de Paris, com artistas célebres como Odilon Redon e Vincent d’Indy. Como os poetas que frequentava, parecia buscar a palavra perdida sob a onda invasora do cientificismo da virada do século. A Chausson só faltou tempo para que se tornasse um dos mais importantes autores de sua época. Este Concerto, originalmente para piano, violino e quarteto de cordas, é sua obra-prima. A peça é longa, de mais de 40 minutos, e foi levada com grande senso de estilo e competência pela orquestra.
O Divertimento K. 136, de Mozart, tem três movimentos — rápido-lento-rápido, à maneira da sinfonia italiana. É o primeiro de um grupo de três divertimentos, também conhecidos como Sinfonias de Salzburgo. Essas obras se destacam das sinfonias restantes de Mozart na medida em que são escritas apenas para cordas. Um outro ponto que separa essas composições das outras Sinfonias de Mozart é que elas são compostas apenas em três, em vez dos quatro movimentos habituais. Aqui, não existe um minueto como terceiro movimento. E, finalmente, a forma compacta de três movimentos distingue ainda mais as Sinfonias de Salzburgo de outros Divertimentos e Serenatas de Mozart, que possuem mais movimentos ou formas mais livres. É Divertimento, é Mozart, então parece leve, mas é ousado e arrojado.
Lavard é um especialista em Mozart. A interpretação fluiu muito bem, com a orquestra animada, trocando sorrisos entre si, num clima de bom humor que parecia por si só empurrar a música.
Na área de quartetos de cordas, é fácil fazer a contabilidade de Ravel: tal qual Debussy, ele escreveu somente um, mas que quarteto! Ravel foi um daqueles raros grandes criadores que se revelam desde as primeiras obras: na Habanera dos Sites Auriculaires, por exemplo, escrita quando o compositor tinha apenas vinte anos de idade, a personalidade do autor já estava bem definida.
Ravel e sua geração contribuíram para que a música saísse do armário, de seu mundo isolado, para uma atmosfera mais ampla, onde pudesse se relacionar com outras artes. Ele foi um músico poeta, bastante incompreendido por seus contemporâneos. Já nossa época o colocou no merecido Olimpo. O maravilhoso e difícil Quarteto de Ravel é menos radical do que o de Debussy de dez anos antes. É puro Ravel, mas talvez ele não existisse a influência de “Debbie You See”. Aliás, mesmo caso do primeiro quarteto de Bartók. Mas o de Ravel é o meu preferido dos três, muito mais melodioso do que os outros. A transcrição de Lavard para orquestra é uma preciosidade.
Passando a régua, afirmo-lhes que a Salzburg Chamber Soloists fez um concerto de altíssimo nível. Os caras tocam com tesão, alegria, musicalidade e grande técnica. A sonoridade é muito bonita, os ataques são fulminantes e exatos. A cada obra foi dada sua personalidade. Chausson, Mozart e Ravel são muito diferentes entre si e foram tratados distintamente. Na orquestra, há músicos fantásticos como os violinistas Lavard Skou Larsen e Emeline Pierre, a violoncelista Marion Platero e outros que não saberia citar por desconhecimento. (O que foi aquilo que fez o Moisés Irajá dos Santos no bis de Piazzolla?). Foi inevitável sair feliz do TSP, quase comemorando o que raramente se ouve neste canto do mundo, tão esquecido da cultura.