O Constanze Quartet trouxe Mozart e Draeseke para invadir o quartel do StudioClio

O Constanze Quartet trouxe Mozart e Draeseke para invadir o quartel do StudioClio
O Constanze em Ouro Preto, dias antes de chegar a Porto Alegre | Foto: perfil do Facebook do grupo
O Constanze em Ouro Preto, dias antes de chegar a Porto Alegre | Foto: perfil do Facebook do grupo

Domingo passado (12) fazia um dia lindo. A temperatura também era agradável. Ao final da tarde, às 19h, para coroar o dia e o belo fim de semana cheio de encontros com gente legal, eu e Elena fomos ao StudioClio para ouvir o Constanze Quartet. O Constanze é formado por quatro mulheres da Salzburg Chamber Soloists. Elas tocaram na quarta-feira anterior com a orquestra no Theatro São Pedro e aproveitaram a estadia na cidade — a orquestra também tocou em Pelotas — para um recital do quarteto. E o dia continuou lindo.

Sem nunca tê-las ouvido, eu tinha sido consultado sobre onde poderiam tocar. Indiquei o StudioClio, lugar perfeito para Música de Câmara e, logo na entrada, vi a primeira violinista Emeline Pierre, que me agradeceu a sugestão após elogiar o local e sua acústica. Claro que fiquei feliz e fui sorridente receber nossos ingressos, quando dei uma gaitada.

Quartel e "sexta-feira"...
Quartel e “sexta-feira”…

Ficamos pensando no “Quartel”. Ora, o L fica bem longe do T no teclado. No que estaria pensando o autor nos ingressos no momento de emiti-los? Ou teria sido obra do maldito corretor ortográfico? Eu acho que o nome “Constanze” é uma homenagem a Maria Constanze Cäcilia Josepha Johanna Aloysia Mozart (née Weber), esposa de Mozart. Achei curioso dar o nome de uma mulher a um quartel, ainda mais sendo a de Mozart e não a mãe de um milico.

Surpreendentemente, o Clio estava lotado, apesar de que há gente que diz que neste horário só vão dez pessoas. OK.

Elas iniciaram pelo Quarteto K. 465, “Dissonâncias”, de Mozart. É uma obra-prima e as meninas eram mesmo tudo aquilo que prometiam.

Constanze Quartet (1)

O Quarteto Constanze é um grupo de transpira cultura musical, é bem trabalhado e tem uma sonoridade distinta, dessas que fazem a gente buscar outra posição na cadeira, uma que combine com o que se ouve. A coisa é muito refinada. Cada nota emitida por Pierre e pela violoncelista Platero parecem trazer séculos de conhecimento de estilo, mas o mais importante é que elas são um conjunto perfeitamente integrado, onde o virtuosismo de cada uma não atrapalha o todo. O Quarteto de Cordas é uma forma de arte bastante complexa, o campo preferido pelos compositores para suas experimentações. Mas é uma forma que não grita, estando mais conectada aos conhecedores da arte musical do que ao grande público, sendo uma espécie de símbolo de “bom gosto”. Com esta opinião, tento dizer que sempre tenho alta expectativa sobre os quartetos que ouço e o Constanze cumpriu todos os quesitos de alta qualidade.

Vocês sabem que eu escrevo meus absurdos de minha cabeça, mas sou um aluno da Elena. Ou seja, ela não somente me dá presentes musicais, como me ensina várias coisas da vida e da música. Uma das coisas que estou quase aprendendo é o sotaque dos músicos. Russos tocam como russos e, às vezes, tocam como russos não somente música russa. Cada etnia tem seu sotaque também na música. Assistimos em Londres, por exemplo, uma respeitada pianista russa interpretando Sonatas de um compositor que poderíamos chamar de Betovenov, pois Beethoven não era.)

Digo tudo isso para afirmar que o que as moças tocavam era puro Mozart. Todo o fraseado, a elegância, as sutilezas e a respiração de Wolfgang estavam presentes. Foi um momento muito especial. Eu e Elena nos olhamos e… puxa! A obra é chamada de Dissonâncias em razão da lenta introdução. Acho que vocês já adivinharam o que tem lá. Quando mostraram o Quarteto das Dissonâncias para Haydn, ele disse que era um equívoco, que aquilo não podia ser. Então, lhe disseram: “Mas é de Mozart”. E o velho respondeu: “Bem, neste caso, trata-se de um flagrante erro de minha parte. Eu é que não entendi.” Detalhe: o Quarteto, que é o melhor que Mozart escreveu, faz parte de um grupo todo dedicado a Haydn.

Constanze Quartet (x)

Depois foi a vez do Quarteto Nº 2, Op. 35, de Félix Draeseke (1835-1913), compositor romântico que compunha e combatia na trincheira de Brahms — se não me engano, ele depois se bandeou para a trincheira de Wagner, mas ele não engana ninguém: sua música é ultra Brahms-like, só que ainda mais densa e intrincada. E informamos a vocês que o Constanze Quartet vai gravar a integral dos Quartetos de Draeseke e que eu gostaria de ouvir, porque realmente gostei do cara. Seu quarteto Nº 2 é denso e belo como Brahms, longo e difícil como Bruckner. Ou seja, fica entre dois compositores que amo.

Constanze Quartet (2)

Foi uma noite realmente significativa o porto-alegrense amante da música. Você não foi? Lamento. E, das três fotos abaixo, a última me faz rir.

Constanze Quartet (3)

O Quarteto Constanze é formado por Emeline Pierre (violino), Esther Gutiérrez (violino), Sandra García (viola) e Marion Platero (violoncelo).

Constanze Quartet (4)

Constanze Quartet (5)

Fotos do iPhone de Elena Romanov.

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Ah, tempo! As fotos de Cláudia Beylouni Santos e/ou Norberto Flach:

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Uma grande noite: o concerto da Salzburg Chamber Soloists no TSP

Uma grande noite: o concerto da Salzburg Chamber Soloists no TSP

10685768_10152812945582398_2259737904797989998_nNesta quarta-feira (8), fomos assistir ao concerto da Salzburg Chamber Soloists no velho Theatro São Pedro. Conhecia o grupo apenas através de alguns excelentes CDs que possuo. Já seu fundador e diretor artístico, o violinista e regente Lavard Skou-Larsen, é meu conhecido de outros carnavais. Já vi Lavard regendo a Ospa — entrevistei-o na época — e tocando com grupos menores no próprio TSP. O programa era ótimo, bastante afastado daquele mais do mesmo habitual:

Ernest Chausson: Concerto para Violino, Piano e Cordas, Op. 21
Solo: Lavard Skou-Larsen – Violino
Phillippe Raskin – Piano

Wolfgang Amadeus Mozart: Divertimento em Ré Maior, KV 136

Maurice Ravel: Quarteto de cordas em fá maior
(arranjo para orquestra de cordas: Lavard Skou Larsen)

A orquestra é a coisa mais linda que eu já vi passar. Não por Lavard, mas pelos outros, ou outras, pessoas cheias de graça num doce balanço a caminho do mar. Como quase toda orquestra europeia, há uma maioria de mulheres. Elas são jovens, belas e, no conjunto de 16 membros, há 13 nacionalidades diferentes, vindas de 4 continentes. Há apenas um violinista com passaporte austríaco, só que ele nasceu na Colômbia. Suponho que tenha casado com uma nativa.

Antes de tocar o Chausson que abria o programa, Lavard contou a história da morte do compositor. É uma tragédia cômica ocorrida quando o compositor tinha 44 anos de idade. A gente lamenta, mas ri. Certo dia, depois da chuva, ele vinha de bicicleta descendo por Montmartre, um dos bairros mais charmosos de Paris, quando se desequilibrou, bateu de cabeça num muro e perdeu a consciência. Só que, casualmente, caiu com o nariz numa poça d`água de uns 10 centímetros. A consequência é que morreu afogado no meio da rua, bem longe do Sena.

Sua música é muito boa, de uma gravidade e dramatismo muito particulares. Se Proust fosse compositor, talvez soasse como Chausson: lírico, apaixonado, mas sem grandes gestos. Chausson escreveu bem e pouco, pois, antes de bater a cabeça, passava a maior parte de seu tempo nos salões de Paris, com artistas célebres como Odilon Redon e Vincent d’Indy. Como os poetas que frequentava, parecia buscar a palavra perdida sob a onda invasora do cientificismo da virada do século. A Chausson só faltou tempo para que se tornasse um dos mais importantes autores de sua época. Este Concerto, originalmente para piano, violino e quarteto de cordas, é sua obra-prima. A peça é longa, de mais de 40 minutos, e foi levada com grande senso de estilo e competência pela orquestra. 

O Divertimento K. 136, de Mozart, tem três movimentos — rápido-lento-rápido, à maneira da sinfonia italiana. É o primeiro de um grupo de três divertimentos, também conhecidos como Sinfonias de Salzburgo. Essas obras se destacam das sinfonias restantes de Mozart na medida em que são escritas apenas para cordas. Um outro ponto que separa essas composições das outras Sinfonias de Mozart é que elas são compostas apenas em três, em vez dos quatro movimentos habituais. Aqui, não existe um minueto como terceiro movimento. E, finalmente, a forma compacta de três movimentos distingue ainda mais as Sinfonias de Salzburgo de outros Divertimentos e Serenatas de Mozart, que possuem mais movimentos ou formas mais livres. É Divertimento, é Mozart, então parece leve, mas é ousado e arrojado.

Lavard é um especialista em Mozart. A interpretação fluiu muito bem, com a orquestra animada, trocando sorrisos entre si, num clima de bom humor que parecia por si só empurrar a música.

Na área de quartetos de cordas, é fácil fazer a contabilidade de Ravel: tal qual Debussy, ele escreveu somente um, mas que quarteto! Ravel foi um daqueles raros grandes criadores que se revelam desde as primeiras obras: na Habanera dos Sites Auriculaires, por exemplo, escrita quando o compositor tinha apenas vinte anos de idade, a personalidade do autor já estava bem definida.

Ravel e sua geração contribuíram para que a música saísse do armário, de seu mundo isolado, para uma atmosfera mais ampla, onde pudesse se relacionar com outras artes. Ele foi um músico poeta, bastante incompreendido por seus contemporâneos. Já nossa época o colocou no merecido Olimpo. O maravilhoso e difícil Quarteto de Ravel é menos radical do que o de Debussy de dez anos antes. É puro Ravel, mas talvez ele não existisse a influência de “Debbie You See”. Aliás, mesmo caso do primeiro quarteto de Bartók. Mas o de Ravel é o meu preferido dos três, muito mais melodioso do que os outros. A transcrição de Lavard para orquestra é uma preciosidade.

Passando a régua, afirmo-lhes que a Salzburg Chamber Soloists fez um concerto de altíssimo nível. Os caras tocam com tesão, alegria, musicalidade e grande técnica. A sonoridade é muito bonita, os ataques são fulminantes e exatos. A cada obra foi dada sua personalidade. Chausson, Mozart e Ravel são muito diferentes entre si e foram tratados distintamente. Na orquestra, há músicos fantásticos como os violinistas Lavard Skou Larsen e Emeline Pierre, a violoncelista Marion Platero e outros que não saberia citar por desconhecimento. (O que foi aquilo que fez o Moisés Irajá dos Santos no bis de Piazzolla?). Foi inevitável sair feliz do TSP, quase comemorando o que raramente se ouve neste canto do mundo, tão esquecido da cultura.

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